Sumário: Legado. Interpretação do testamento. Registo de aquisição. Declarações complementares e prova complementar.

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1 P.º n.º R. P. 122/2008 SJC-CT Sumário: Legado. Interpretação do testamento. Registo de aquisição. Declarações complementares e prova complementar. DELIBERAÇÃO 1 O presente recurso vem interposto contra a decisão de recusa do registo da nua propriedade do prédio a favor da legatária Ana Paula, que deu entrada na Conservatória do Registo Predial de em 21 de Abril de 2008, a coberto da apresentação n.º 3. Para instruir o aludido pedido foi apresentada, inter alia, uma certidão de habilitação de herdeiros que integra três testamentos, e duas cadernetas prediais respeitantes aos artigos matriciais 696 e 697, bem como uma certidão do serviço de Finanças a certificar que os artigos referidos são provenientes do artigo 2.º. 2 O despacho de recusa proferido sobre o aludido pedido funda-se no facto de o registo já ter sido lavrado como provisório por dúvidas e as mesmas não se mostrarem removidas. Os motivos das dúvidas prendem-se com a identidade do prédio. No testamento o prédio está identificado como uma casa de habitação com determinadas confrontações, sendo que na requisição e nas cadernetas prediais aquelas confrontações não coincidem com as indicadas no testamento, sendo este o único elemento que permite identificar o prédio em causa. No testamento o prédio, dos lados poente e sul, tem confrontações físicas uma ribeira e um caminho público, respectivamente, enquanto que nos documentos matriciais confronta com pessoas. Acresce ainda que do testamento consta apenas uma casa de habitação e quintal, sendo que na requisição temos, além desta casa, mais uma morada de casas, logradouros e dependências, com área e confrontações distintas entre si e artigos matriciais próprios, não bastando para dissipar as dúvidas a afirmação de que resultaram da 1

2 divisão de um artigo comum, tanto mais que os nomes dos titulares inscritos na matriz não coincidem com os nomes dos testadores. 3 A interessada vem insurgir-se contra esta qualificação deduzindo recurso hierárquico no qual expendeu os argumentos que aqui se dão por integralmente reproduzidos e dos quais destacamos, em síntese, os seguintes: 3.1 As confrontações declaradas aquando da abertura da descrição (ap.1/ ) respeitam a cada um dos artigos matriciais, individualmente considerados e não ao prédio no seu todo, tendo por isso de ser divergentes. No entanto, a harmonização nos prédios urbanos entre a descrição e a matriz é limitada apenas aos números dos artigos matriciais e à área, por força do disposto no n.º 2 do artigo 28.º do CRP. 3.2 Relativamente à alegada divisão do prédio está provado que tal não aconteceu, tendo apenas havido discriminação do artigo 2.º, que deu origem aos artigos 696 e 697, não se tratando de nenhum destaque, que aliás nem é o que se pretende nem tal se requereu. Pretendem sim é que de uma só descrição constem os dois artigos matriciais e não duas descrições cada qual com o seu artigo matricial próprio. Finaliza, salientando que os motivos que alicerçaram as dúvidas foram removidos e, assim, o registo deveria ter sido lavrado definitivamente, configurando a recusa uma ampliação ou modificação das dúvidas inicialmente aduzidas. 4 A Senhora Adjunta do Conservador proferiu despacho de sustentação aduzindo os argumentos que aqui se dão por integralmente reproduzidos e dos quais destacamos, em síntese, os seguintes: 4.1 Tem de haver um mínimo de correspondência entre o prédio mencionado no testamento e aquele que se pretende registar se este 2

3 faltar está em causa a identidade do próprio prédio. A verificação da identidade do prédio é fundamental para qualificar um pedido de registo. 4.2 Sendo certo que a harmonização das confrontações não é obrigatória em face do prescrito no n.º 2 do artigo 28.º do CRP, no caso vertente as confrontações são a única referência que nos permite identificar e individualizar o prédio e havendo divergências em confrontações físicas (como é o caso da ribeira e do caminho público) dúvidas se levantam quanto à própria identidade do prédio. 4.3 Do testamento consta uma casa de habitação e quintal, mas o que se pretende registar é uma casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar e uma morada de casas, dependências e logradouros, o que é coisa bem diversa. Ora, o intérprete na procura do sentido mais ajustado à vontade do testador, tem de encontrar um mínimo de correspondência no testamento, ainda que imperfeitamente expressa. 4.4 As dúvidas suscitadas aquando do pedido inicial não foram removidas na sua totalidade pelo que o registo tem de ser recusado nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea e), do CRP. 5 O processo é o próprio, as partes têm legitimidade, o recurso é tempestivo e inexistem questões prévias ou prejudiciais que obstem ao conhecimento do mérito do recurso. Sumariadas as posições em confronto, passamos à apreciação do mérito do presente recurso que vai expressa na seguinte Deliberação 1 O testamento é um negócio unilateral, não receptício e livremente revogável 1, pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da 1 Como salienta CAPELO DE S OUSA, in Lições de Direito das Sucessões, 1978, pág. 45, o testamento pertence à subespécie dos negócios não receptícios, isto é, para surtir os seus efeitos próprios a declaração negocial testamentária não necessita de ser dirigida e levada ao conhecimento dos herdeiros e legatários, valendo logo que é emitida na forma legal. 3

4 sua morte, de todos os seus bens ou de parte deles, devendo observar-se na interpretação das suas disposições a vontade do testador, conforme o contexto do testamento artigos 2179.º e 2187.º do Código Civil 2. 2 A prova complementar é admitida, mas para ser considerada tem de se encontrar uma repercussão literal, mínima que seja, da vontade do testador no contexto do testamento, ainda que imperfeitamente expressa 3. Com o intuito de garantir plena liberdade de manifestação de vontade ao autor do testamento a lei confere-lhe uma grande confidencialidade não permitindo, designadamente, que sejam emitidas certidões de tais actos, a não ser a pedido do testador ou seus representantes com poderes especiais para o efeito artigo 164.º, n.º1, alínea a), do Código do Notariado. 2 O artigo 2187.º fez prevalecer uma posição marcadamente subjectivista em matéria de interpretação das disposições testamentárias, seguindo, assim, a tradição provinda do Código de Seabra. O critério normativo enunciado no n.º 1 deste preceito aponta inequivocamente para a busca e determinação da vontade do testador atendendo ao texto e ao contexto da declaração dispositiva vertida no testamento, ainda que imperfeitamente expressa, mas tem de existir uma repercussão literal mínima que seja. Cfr., sobre o ponto, o acórdão do STJ, de 4 de Junho de 2002, disponível em A interpretação da disposição testamentária está subordinada, segundo PIRES DE L IMA e ANTUNES V ARELA em anotação ao referido preceito, in Código Civil, Volume VI, pág. 304, a quatro coordenadas fundamentais. Assim, o intérprete deve procurar o sentido mais ajustado à vontade do testador, atendendo ao contexto do testamento, admitindo-se prova complementar (n.º 2 do citado artigo), isto é, abrindo-se a porta a elementos exteriores à declaração testamentária, mas capazes de auxiliar a determinação da vontade real do testador. Por último, em nome do carácter formal do testamento estabelece-se um limite a vontade do testador tem de ter no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, no quadro do disposto no n.º 1 do artigo 238.º do Código Civil. Veja-se, no mesmo sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direito Civil e Sucessões, 5.ª edição, pág A intenção do testador tem de encontrar no testamento uma expressão reconhecível. Na pesquisa dessa vontade admite-se o recurso à chamada prova complementar ou extrínseca fundada em qualquer dos meios de prova geralmente admitidos. Cfr. MOTA P INTO, in Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição por ANTÓNIO P INTO M ONTEIRO e PAULO M OTA P INTO, págs. 450 segs. 3 A prova complementar, para efeitos de registo, terá necessariamente de ser documental. Veja-se, neste sentido, o parecer do Conselho Técnico proferido no proc.º n.º R.P.112/97DSJ-CT, in BRN n.º 3/98, II, pág

5 3 Embora a lei notarial não defina os requisitos a que deve obedecer a fixação do objecto do chamamento sucessório esta tem de resultar do contexto do testamento, sob pena de nulidade artigos 2182.º e 2184.º do Código Civil e artigo 61.º do Código do Notariado 4. 4 O interessado tem legitimidade para, através de declaração complementar, proceder à identificação completa do objecto do legado subordinado, porém, à vontade do testador ainda que imperfeitamente expressa 5. 5 Ora, considerando que o objecto do legado respeita a uma casa de habitação e quintal e que o pedido de registo incide também sobre uma morada de casas, logradouro e dependências, e não tendo sido devidamente esclarecido o aparecimento destas, as dúvidas inicialmente opostas ao registo em relação à identidade do prédio não se encontram removidas, pelo que o registo peticionado deve ser recusado ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 69.º do Código do Registo Predial. Em face do exposto, é entendimento deste Conselho que o presente recurso hierárquico não merece provimento. 4 Com efeito, o artigo 61.º do Código do Notariado consagra um regime especial para os testamentos, prescrevendo que não lhe é aplicável o disposto nos artigos 54.º a 58.º e no artigo 59.º, n.ºs 1 e 2. - Cfr. o parecer do CT constante do proc.º n.º R.P.120/2000DSJ-CT, in BRN n.º 11/2000, II, pág As declarações complementares previstas no artigo 46.º do CRP são perfeitamente aceitáveis no que respeita ao esclarecimento das divergências das confrontações do objecto da deixa testamentária, mas não consistem no documento que titula o facto cujo registo é pedido têm, portanto, uma função acessória, complementar e esclarecedora do título que, esse sim, comprova o facto e, por isso, tem de indicar com clareza o objecto da relação jurídica. Assim, desde que se esclareça devidamente que a deixa testamentária se reporta também a uma morada de casas para habitação, logradouros e dependências deixa de existir obstáculo à elaboração do registo em termos definitivos, devendo do seu extracto constar como causa de aquisição o legado de Manuel e não o da Isilda como constava do registo a que coube a ap.01/ e que, entretanto, veio a caducar. 5

6 Lisboa, 28 de Outubro de 2008 Deliberação aprovada em sessão do Conselho Técnico de 28 de Outubro de Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, relatora. Esta deliberação foi homologada pelo Exmo. Senhor Presidente em