DELIBERAÇÃO. II Fundamentação

Transcrição

1 P.º n.º C. P. 51/2012 SJC-CT Omissão de registo de hipoteca legal a efetuar oficiosamente com o registo de aquisição baseado em partilha. Processo de retificação. Emolumentos devidos. DELIBERAÇÃO 1 A senhora Adjunta do Conservador vem consultar o Setor Jurídico e de Contencioso a propósito da omissão de um registo de hipoteca legal para garantia do pagamento de dívidas de tornas, que deveria ter sido realizado oficiosamente aquando da inscrição de aquisição feita com base na escritura de partilha de herança que instruiu o correspondente pedido de registo, a que coube a ap. / Opina no sentido de que o registo em falta deve ser efetuado no âmbito do processo de retificação de registos previsto nos artigos 120.º e segs. do Código do Registo Predial, abrindo várias hipóteses tendentes a essa finalidade. Suscita, depois, uma questão de técnica registral atinente à apresentação que deve caber à inscrição da hipoteca legal e outra relativa à taxa de juro a inserir no extrato da aludida inscrição. Por fim, apresenta várias sugestões concernentes à quantia emolumentar a cobrar, cujos termos aqui se dão por reproduzidos, na sua integralidade. 2 O supra referido SJC propôs a audição deste Conselho sobre os assuntos suscitados na consulta, proposta que foi superiormente sancionada, pelo que cumpre apreciar e emitir deliberação. II Fundamentação 1 Como nos diz o artigo 704.º do Código Civil, a hipoteca legal resulta imediatamente da lei, sem dependência da vontade das partes, podendo constituir-se desde que exista a obrigação a que serve de garantia. Resultando embora da lei carece de ser, posteriormente, constituída, o que ocorre mediante o registo, que é efetuado com base no título de que resulte a garantia 1. 1 Veja-se, adrede, ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, in Código Civil Anotado, Volume I, págs. 650 e segs., bem como MENEZES LEITÃO, in Garantias das Obrigações, 2009, págs. 208 e segs., e PINTO DUARTE, in Direitos Reais, pág. 208, que salienta que as hipotecas legais «afinal não resultam imediatamente da lei», já que, para a sua constituição, é exigível o registo. 1

2 Nas hipotecas legais, segundo ensina Antunes Varela 2, o ato de registo é que constitui o berço da garantia, porque a hipoteca não tem existência jurídica antes do registo, no qual se especificam os bens onerados e se fixa a identidade, especialmente o montante, do crédito assegurado. Dentre os credores que beneficiam de hipoteca legal, e se encontram elencados no artigo 705.º do citado Código Civil, figuram os co-herdeiros, sobre os bens adjudicados ao devedor de tornas, para garantir o pagamento destas [alínea e)]. A seleção legal dos credores com direito a hipoteca legal tem manifestamente por base a necessidade especial de assegurar o cumprimento de certos créditos, tendo em consideração a qualidade [alíneas a) e b)] ou a posição [alinea c)] dos credores em face do devedor, ou a natureza da dívida. 2 No que concerne ao registo predial, decorre do disposto no n.º 1 do artigo 97.º do CRP que o registo de aquisição acompanhado da constituição de outro facto sujeito a registo ou da extinção de facto registado 3 determina a realização oficiosa do registo desses factos 4. Em face desta disposição legal, o interessado não necessita de acionar o princípio da instância para obter o registo do facto constituído simultaneamente com o de aquisição ou mera posse, visto combinar-se com a facti species plasmada na parte final do artigo 41.º do CRP, impendendo, portanto, sobre o conservador o dever de lavrar oficiosamente tal facto 5. Assim, sempre que aquele comando legal seja preterido levando a que a decisão (implícita) dos serviços de registo seja no sentido de omitir um registo que dele deveria ser objeto, tal omissão deve ser imediatamente superada mediante a instauração do competente processo de retificação previsto nos artigos 120.º e segs. do CRP, aí se 2 In Das Obrigações em Geral, II Volume, 1990, págs. 540 e segs. 3 Após a Reforma do Registo Predial levada a efeito com a publicação do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, a norma do n.º 1 do artigo 97.º do CRP passou a incluir também na sua previsão a extinção de factos registados. 4 Cfr., a este propósito, os pareceres proferidos nos proc.ºs n.ºs R.P. 243/2010 SJC-CT e R.P.20/2012 SJC-CT, disponíveis em 5 A oficiosidade, como nota MOUTEIRA GUERREIRO, in Noções de Direito Registral, 1983, pág. 219, escapa ao princípio da instância segundo o qual só se regista o que é pedido, ou seja, a publicação do ato depende da iniciativa dos interessados. Só que esta publicidade registral, que tem como escopo a inteira correspondência entre a realidade jurídica e a realidade tabular, com vista à defesa do interesse público, não pode, em determinados casos, ficar na dependência, exclusiva, da iniciativa dos particulares vd., para mais desenvolvimentos, ROCHETA GOMES, in Instância e Oficiosidade no Registo Predial, separata do BRN de Maio de 1984, págs. 3 e 4. 2

3 suscitando os termos concretos da inexatidão do registo que não envolveu, como devia, a elaboração dos registos pretensamente em falta, ou dito de outra forma, dos registos oficiosos. Sendo a decisão proferida nesta sede desfavorável ao interessado na retificação, assiste-lhe, então, a possibilidade de a impugnar judicialmente nos termos e por força do preceituado nos artigos 131.º e 140.º, n.º 2, do CRP. 2.1 Em situação normais, vale por dizer, observando-se as prescrições legais pertinentes, na dependência da apresentação do pedido (e elaboração) do registo de aquisição deve ser efetuado oficiosamente não só o registo do usufruto como também o registo da hipoteca legal ambos subordinados à apresentação que coube ao registo de aquisição, sendo cobrado o emolumento devido pela prática de tais atos. Por conseguinte, a apresentação correspondente ao registo oficioso da hipoteca legal, a efetuar ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 97.º do CRP, será a que corresponde à apresentação do pedido de aquisição ou de mera posse, uma vez que, nesta perspetiva, não tem dela qualquer autonomia 6. Porém, na situação configurada nos autos, o número da apresentação e a data da hipoteca legal a lavrar na sequência do processo de retificação há de ser a que corresponde à anotação do pedido ou do auto de verificação da inexatidão no diário, consoante a retificação tenha ou não sido requerida pelo interessado. Com efeito, não lhe pode agora ser atribuída uma ordem e data anterior sob pena de violação do princípio da prioridade do registo consagrado no n.º 1 do artigo 6.º do CRP, que tem por base a data dos registos, segundo a ordem temporal da apresentação considerada a partir do momento da anotação do pedido (ou do auto), e do seu conteúdo, no diário. Acresce, por outro lado, que é preciso ter presente que o registo predial tem como fim dar publicidade à situação jurídica dos prédios com vista à segurança do comércio jurídico imobiliário, como é proclamado logo no artigo 1.º do CRP. Ora, tal finalidade seria gravemente ferida se a informação prestada acerca da situação jurídica dos prédios sofresse alterações inusitadas resultantes, designadamente, da eventual interposição de um registo com data retroativa, uma vez que os terceiros 6 Cfr. o exemplo congeminado por ISABEL PEREIRA MENDES, in do Código do Registo Predial Anotado, de 2006, 15.ª edição, pág. 605, relativamente à elaboração de uma inscrição oficiosa de hipoteca legal constituída simultaneamente com a aquisição baseada em partilha judicial. 3

4 jamais poderiam confiar na informação registral para determinar as suas relações jurídicas. Sublinha-se, contudo, que em sede de retificação, no contexto previsto no artigo 122.º do CRP, a contrario sensu, os direitos de terceiros adquiridos a título gratuito ou de má fé podem sair prejudicados. 2.2 Em «campo aberto», como aliás é alvitrado pela consulente numa das suas hipóteses, deve esclarecer-se que a inscrição em apreço é elaborada na sequência da retificação do registo efetuado a coberto da ap. / No que respeita aos elementos questionados relativos à inscrição da hipoteca legal acompanhamos Seabra de Magalhães 7, segundo o qual da rubrica fundamento (isto é, a causa de que emerge o direito ou, doutro modo ainda, o facto jurídico que lhe dá origem), deve constar a referência à partilha que originou o crédito de tornas, através da identificação do autor da herança, sendo o valor a mencionar o correspondente ao quantitativo das tornas asseguradas. 3.1 Ora, em face do regime especial da hipoteca legal afigura-se de concluir que o valor a mencionar na respetiva inscrição há de coincidir com o quantitativo das tornas 8. 4 Finalmente, em relação ao emolumento devido pelo registo de hipoteca legal, efetuado agora na sequência de processo de retificação desencadeado ao abrigo do prescrito no n.º 1 do artigo 121.º e no artigo 125.º do CRP, para suprir omissão própria dos serviços reportada ao momento do registo de aquisição, afigura-se-nos que deve ser cobrado o emolumento que no momento da realização do ato de registo em causa lhe corresponderia, uma vez que se insere no âmbito do processo de retificação mediante o qual se pretende atingir, tanto quanto possível, a reconstituição da situação omissa. 7 In Formulário do Registo Predial, 1972, págs. 107 e segs. 8 Tal não significa porém que o crédito de tornas não possa vencer juros. Esclarecedor é o entendimento expresso por Quirino Soares no acórdão do STJ, relatado em 28 de Junho de 2001: «A intenção que subjaz ao n.º 4 do artigo 1378.º do CPC foi a de atribuir juros de mora a partir da sentença de partilhas aos credores que não tenham reclamado tornas, não foi o de as negar aos que as reclamaram no momento próprio porque, quanto a esses, o seu direito aos juros está garantido pelas normas dos art.ºs 805.º, n.º 1, e 806.º, n.º 1, do Código Civil». E, mais adiante, o distinto Conselheiro salienta que do facto de os juros de mora não constarem do registo duma hipoteca legal apenas se poderá extrair que a garantia os não abrange; tal registo não constitui, porém, qualquer presunção de que o crédito do titular se resume ao constante do registo, em natureza e quantidade. 4

5 A retificação de registo errado dá lugar à elaboração de nova conta sempre que se verifique que os emolumentos da conta inicial não eram os devidos por o registo em falta (o oficioso) não ter sido ab initio lavrado nem, por isso, considerado para efeitos emolumentares 9. 5 Em jeito de síntese conclusiva, diremos que deve ser elaborado oficiosamente o registo de hipoteca legal para garantia do pagamento das tornas, em singelo, na sequência de processo de retificação de registos, sendo-lhe atribuído o número de apresentação que couber ao auto de retificação, cobrando-se agora os emolumentos que ao ato caberiam se tivesse sido oportunamente efetuado 10. Deliberação aprovada em sessão do Conselho Técnico de 22 de novembro de Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, relator. Esta deliberação foi homologada pelo Exmo. Senhor Presidente em Este entendimento é desde há muito subscrito pelo Conselho Técnico, designadamente, no parecer proferido no proc.º n.º 62/90 RP 4. Em termos práticos, segundo informação prestada pelo responsável do SIRP, a conservatória deve utilizar, mediante a indispensável colaboração do IGFEJ, I.P., a funcionalidade informática que permite incluir a disposição legal do regulamento emolumentar que vigorava ao tempo no lugar da tabela agora vigente, atribuindo-se, porém, à verba aplicável uma designação distinta da atual para não criar confundibilidade, designadamente, quanto ao modo de distribuição da receita arrecada. 10 Chamamos, contudo, a atenção para o facto de o apoio jurídico solicitado envolver uma retificação do registo e a sindicância desta matéria caber exclusivamente aos tribunais Cfr. o disposto nos artigos 131.º e 140.º, n.º 2, do CRP. 5

6 FICHA Proc.º n.º C.P. 51/2012 SJC-CT Súmula das questões abordadas Omissão da realização oficiosa de um registo de hipoteca legal artigo 97.º do CRP e artigos 704.º e segs. do Código Civil. Processo de retificação de registos artigos 120.º e segs. do CRP. Menções a inserir no extrato da inscrição de hipoteca legal artigos 93.º do CRP. Emolumentos devidos pela elaboração do registo em falta retificação da conta inicial. 6