Sobre Arte e Ciência

Transcrição

1 Sobre Arte e Ciência Palestra do Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira Projeto Desaba 11/2008 "Desaba no planetário com Jorge de Albuquerque Vieira" Palestra com Jorge Albuquerque Vieira no Planetário de São Paulo, dentro do projeto DESABA Palestra Utilizada na Disciplina "Jogos e Produção do Conhecimento" da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), disciplina desenvolvida pelo NexT Núcleo de Estudos em Xadrez & Tecnologias Vídeo Dividido em 11 partes (começa na parte 01): Link para toda palestra (em um único vídeo): A seleção transcrita abaixo foi realizada pelo Prof. Dr. Kariston Pereira especialmente para a disciplina Jogos e Produção do Conhecimento, para a discussão de temas como Epistemologia, Arte e Ciência, Ética, Estética e Produção de Conhecimento, Ficcionalismo, dentre outros temas.

2 Parte 1: O Universo como um todo é a maior arte dentro da realidade. Charles Sanders Peirce (filósofo americano) : 1º) Paixão => Estética; 2º) Atitude compatível com o seu amor => Ética; Preparado para conhecer... 3º) Conhecimento... todo o resto vem depois disso (Filosofia, Arte, Ciência); - Não há uma departamentalização do conhecimento. O que conta é uma totalidade; o conhecimento é uma coisa bastante íntegra e ampla; - O universo é evolutivo e por ser evolutivo é Universo Criador. Este universo cria; - O processo criativo do universo criou os seres vivos, criou sistemas; - Peirce: a ciência não seria possível se não houvesse a estética primeiro; - A realidade é complexa (1º presssuposto). O universo é mais que harmonia, ele é inovação, criação e também catástrofe. O universo não é bem comportado o tempo todo; - Nós somos emergências dentro deste universo (2º pressuposto). Nós herdamos a arte da complexidade universal que nos gerou. Seres humanos são extensões do universo. É o único valor intrínseco do ser humano (nós somos o universo manifestado). Nós emergimos da realidade, mas, não conseguimos absorver, do ponto de vista cognitivo, toda a realidade. Parte 2: - É necessário dimensionar uma maneira eficaz de ver o mundo; - O que vemos não é a realidade em si mesma; é apenas o resultado, uma filtragem, de nossa percepção e da bolha na qual estamos inseridos; - Jacob Johann von Uexküll (da Estônia) => Umwelt ("bolha"). Para entender como uma espécie compreende o mundo é necessário recriar a bolha dela, tentar situar-se na bolha dela, para entender como ela vê o mundo e não interpretar o comportamento do animal pelo seu comportamento (pela sua bolha). Também vale para a cultura; - Saber a verdade é saber a realidade em si mesmo. Nosso conhecimento sobre a verdade é parcial, mas, é eficiente. Há um critério de eficiência no conhecimento que nós carregamos, por mais limitado que ele seja. O critério de verdade baseado na eficiência e que se chama de pragmatismo (em Teoria do Conhecimento). O pragmatismo não deve ser entendido como apologia à prática. Aos "praquês" no lugar dos "porquês". Pragmatismo significa ação eficiente sobre o mundo para poder entender e lidar com esse mundo. É algo mais sofisticado. É a proposta de Peirce.

3 Parte 3: - É possível conhecer o que está fora da "bolha" indiretamente, usando signos que são índices. Signos que você encontra na realidade e que falam dela de maneira indireta (pistas, sintomas do real). O conhecimento humano que é construído desta maneira, que pretende perfurar o Umwelt e atingir a realidade, chama-se ciência. A hipótese norteadora de todo o pensamento científico em termos de teoria do conhecimento, chama-se objetivismo realista crítico; - A realidade é dinâmica, é evolutiva. A capacidade de chegar na possibilidade do real, é o tipo de conhecimento chamado Arte. A Arte permite perceber a realidade como ela pode vir a ser. A ciência tenta captar o que a realidade é; - A Arte trabalha com as possibilidades do real. Artista é um produtor de conhecimento que trabalha com as possibilidades do real. Arte é forma de conhecimento! Toda forma de conhecimento é um processo evolutivo. A história da evolução é a história da aquisição de conhecimento. A Arte faz parte do jogo da evolução. Arte é um processo adaptativo, ciência é adaptativo, conhecimento do senso comum é adaptativo, filosofia é adaptativo... - A Arte permite ao ser humano pensar num possível futuro. É muito mais importante se adaptar às possibilidades do real do que à realidade em si mesma, como definida em um certo instante de tempo (a realidade está evoluindo e mudando muito rapidamente... advento das tecnologias, etc.). Neste sentido, a Arte é fundamental como instrumento adaptativo de evolução; - A grande diferença entre Arte e ciência, está no fato de que a ciência tenta perfurar o Umwelt e ver o que está do lado de fora, e a Arte simplesmente pressupõe um Umwelt e explora as possibilidades da realidade contidas neste Umwelt. Explorar o seu próprio Umwelt é, de maneira indireta, explorar também a realidade. Parte 4: - Arte e ciência se complementam. E sempre foi assim. Existe um conhecimento não reduzível ao discurso, chama-se conhecimento tácito. A Arte trabalha muito o conhecimento tácito, além do discursivo; - A cabeça do ser humano é capaz de captar exatamente o que é mais importante da realidade, por ser seletiva (diferentemente de uma foto); - A interseção entre Arte e ciência sempre existiu no passado, mas agora está ficando mais forte. A arte deixa de simplesmente ser um instrumento de ajuda para a ciência e começa a nortear trabalhos científicos; - É só o artista que cria? Não necessariamente. Cientistas criam também. Tanto a ciência quanto a arte, são processos criativos (é um ponto de confluência). Só que a tradição científica, que é uma tradição objetivista, ou pelo menos de inter-subjetividade, prega que só se pode falar das coisas logicamente estabelecidas pelo discurso. Quando um cientista está tendo uma ideia ou uma inspiração, ele é igual a um artista, mas quando ele desenvolve o trabalho dele em um artigo/livro/congresso/simpósio, este texto tem que satisfazer às exigências do conhecimento discursivo e não do conhecimento tácito. Ele tenta reduzir seu conhecimento ao discurso, mas paga o preço de não conseguir representar no discurso o conhecimento tácito adquirido; - Quando há um consenso sobre uma teoria (criticada e testada pelos pares), você consegue acreditar que aquilo que é aceito por consenso não é a obra de um indivíduo, mas é reflexo de algo que não depende de ninguém. E esse algo que não depende de ninguém é a realidade. Então, a construção da objetividade científica é um processo social, é um mecanismo de natureza pública. Ou seja, ciência é

4 conhecimento social e público. Como o experimento não contém o elemento tácito do indivíduo, ele nunca é bem sucedido, ele nunca é integral. Portanto, a objetividade científica fica limitada por não levar em consideração o conhecimento tácito. Parte 5: - Cientistas se guiam por critérios de estética, de ética e de valor. E, por fim, critérios racionais. Os grandes cientistas são os mais tácitos, profundamente envolvidos com o que fazem, profundamente apaixonados pelo que fazem. Há uma componente de paixão no ato da criação científica (isso é conhecimento tácito). E no meio desse conhecimento tácito existe o componente estético; - Como é possível falar de coisas que estão fora do Umwelt biológico? Devido à uma sutileza própria do ser humano, por meio de um processo cerebral não linear, houve uma dilatação de nosso Umwelt biológico. É possível sofisticar o seu Umwelt biológico, é possível refinar seu Umwelt biológico. Como? Criando extensões de seus sentidos. Pela construção de signos que estão além do domínio do seu Umwelt biológico, que poderiam ser chamados de hipersignos. Se faz isso na ciência o tempo todo. Parte 6: - Nosso Umwelt deixou de ser meramente um Umwelt biológico; agora ele é um Umwelt psicológico, psicossocial, social, cultural. É um novo Umwelt dilatado. Mas, todos os hipersignos são baseados no que o Umwelt biológico fornece. Você não consegue efetivamente imaginar algo totalmente novo; - Fenomenológico => "caixa preta"; - Para criar não basta deter conhecimento racional. Tem que inventar uma realidade. Tem que delirar sobre a realidade. Ele tem que ser um artista. É inseparável fazer boa ciência de fazer boa arte. Não dá para separar estes tipos de conhecimento. Eles são conectados um ao outro; - Essa capacidade de criar além do próprio Umwelt, em teoria do conhecimento é chamado ficcionalismo ("Hans von Hingerl"). É possível conhecer por meio de ficções, muitas delas conscientemente projetadas. Não é que você esteja se enganando, mas é que você esteja fazendo um processo analógico inconsciente. É que você conscientemente cria ficção e o problema depois é mostrar que a ficção inventada é coerente com a realidade. Isso é um problema do método científico. Ex.: o conceito de centro de gravidade é uma ficção altamente eficiente; funciona que é uma beleza; - Existem dois níveis ficcionais: a) a ficção livre, pura, aparentemente não compromissada com a realidade; b) e a ficção compromissada com a realidade, que é eficiente, que serve para descrever a realidade e serve para descrever os tais hipersignos. Qual o limite entre as duas? Esse é o grande problema... Parece que não há. A cabeça do ser humano é capaz de inventar a realidade e, de vez em quando, ela acerta. Da mesma forma que artistas, que lidam com a possibilidade do real, de vez em quando acertam com algum aspecto do real, sim. Artistas atingem a realidade de vez em quando, de uma maneira tão ou mais eficiente que um cientista consegue atingir. Não dá para separar esses tipos de conhecimento! Só há uma esperança para a espécie humana: é pegando todos os conhecimentos que se dispõe e amalgamando em uma teoria geral, isso que os filósofos chamam de ontologia. Os atos de afetividade e de bondade são também processos cognitivos. Nós estamos aprendendo ainda (a ciência está primitiva, a filosofia também...). Só a fusão disso tudo é que pode garantir a sua sobrevivência no planeta. Só que agora é urgente fazer isso (antes se poderia apenas filosofar...).

5 Parte 7: - Temas tratados como ficção científica, ao longo dos anos podem ganhar status de modelo científico. Qual é o limite entre a ficção descompromissada e a ficção eficiente? A cabeça do ser humano é capaz de inventar realidades e de vez em quando ela acerta. Da mesma forma, artistas que lidam com as possibilidades do real de vez em quando acertam com algum aspecto do real sim; - Artistas atingem a realidade de vez em quando de uma maneira tão ou mais eficiente que um cientista consegue atingir. Esse é o ponto fundamental que eu quero frisar: não dá para separar esses tipos de conhecimento. Só há uma esperança para a espécie humana: pegar todos os tipos de conhecimento de que você dispõe e amalgamá-los em uma teoria geral (em uma ontologia). Não dá para separar o conhecimento artístico, do conhecimento científico, do conhecimento filosófico, do conhecimento do senso comum, da tradição e da religião; - Os atos de afetividade são processos cognitivos, os atos de bondade são processos cognitivos e tem uma série de formas de conhecimento que nós ainda não dominamos: ciência ainda é primitiva, filosofia ainda é primitiva, quanto mais os ato afetivos e os atos de tolerância psicossocial por exemplo. Só a fusão disso tudo é que pode garantir a sobrevivência da espécie humana no planeta. Antigamente, poderíamos filosofar sobre isso. Agora é urgente resolver isso. Nossa escala de tempo está diminuindo; - O problema concreto de hoje em dia é evitar a nossa auto-destruição. Parte 8: - A realidade existe para garantir a permanência do universo; - Alopoiese: produzir coisa que não são como nós, mas podem durar mais do que nós (ciência, arte, filosofia); - Autopoiese: um sistema cria um sistema do mesmo tipo que ele; - Os próprios gênios não são autônomos totalmente. Eles são permitidos pela grande massa da humanidade. E esse é que é o nosso papel, permitir, na nossa mediocridade, que a natureza humana sobreviva; - Existe uma inteligência de criação no universo? Sim. Eu sou um Peirceano,e para Peirce o universo é mental. O nome disso em teoria do conhecimento é idealismo objetivo. Sujeito (conhecimento) > Objeto Subjetivista (tudo é derivado das leis da Psicologia) Objetivista (tudo é derivado das Física) (Objetivismo realista) E se não houver diferença? Se houver uma continuidade?... Se o real tiver uma componente mental e o mental tiver uma componente real?

6 Aí teremos o Idealismo Objetivista. - Descartes diferencia o mental do material... - A natureza é matemática. A matemática não é um atribuito mental do ser humano. Parte 9: - É como se nós herdássemos um reflexo da mente do mundo e esse reflexo da mente do mundo está na nossa cabeça; - A matemática pura é um ato de arte. E isto sugere que no processo evolutivo você herde uma memória universal e essa memória universal contém matemática, lógica, mente! O mundo é mental! Ele sabe, ele conhece... Essa é a tese Peirceana; - Ontologia em Filosofia tem pelo menos dez concepções diferentes. Do ponto de vista científico, ontologia é ciência geral ou ciência do geral. Ontologia é aquela parte da Filosofia que estuda todos os pressupostos gerais que você aceita para compreender a realidade. Isso a gente absorve automaticamente... não é ensinado (tempo, espaço, matéria, mudanças, possibilidade, transformação, evolução, causalidade --> temas ontológicos). É muito tácito isso... É extremamente fundamental...; - Tese a formar da complexidade da realidade: um mesmo objeto pode ser facetado em suas ontologias regionais (ex.: física, biologia), a união das ontologias regionais (perspectivas) vai dar a ontologia geral (o fato da coisa ser em si mesma, de ela ser no mundo, de ela existir, que é o problema capital da Filosofia. Parte 10: - Há repetição de teorias com nomes diferentes, por não se conhecer as teorias anteriores. Conhecimentos estão sendo construídos de novo. Muito tempo está se perdendo assim. Existem dois motivos para isso. Um que é concreto, que é real, que hoje em dia não dá para a gente saber tudo. Mas existe também um problema de educação, de ignorância mesmo, de falta de cultura; - A linguagem organiza o pensamento. O Umwelt fecha uma organização a partir de que ele fecha uma organização, é meio difícil voltar atrás. A linguagem além de servir para comunicar, ela organiza nossa cabeça, buscand coerência com o mundo; - Como você mapeia a organização do mundo num sistema que já está parcialmente organizado? Como você concilia a dinâmica mental com a dinâmica do mundo? Isso é um problema do dia a dia... Por exemplo, no processo de ensino-aprendizagem. Como se faz um mapa isomórfico entre dois níveis de organização, a do mundo e a da sua cabeça? É complicado conhecer. Aprender é isso, conhecer é isso. Quando uma novidade acontece no mundo ela não entra trivialmente na sua cabeça. Ela entra se ela encontrar um lugar dentro da sua organização mental. Ou seja, se ganhar um grau de coerência (significação). É a base da semântica. Então nosso grande problema é viver de forma coerente (com significado). Às vezes não dá tempo. O cérebro fica em um estado latente. Ou seja, o cérebro guarda a informação em algum lugar, se valer a pena. Parte 11:

7 - Em um dia, quando se tiver uma nova forma de coerência na cabeça, de organização, aquele conhecimento guardado pode ser absorvido, aí é possível entender! "caiu a ficha!"; - O problema do ensino é sempre esse: primeiro você tem que apostar no potencial do outro; segundo, você temo que respeitar o potencial do outro; e, terceiro, você tem que tornar o ato de ensino o mais agradável possível. Porque ninguém pode entender tudo na hora; só um ou outro superdotado ou gênio. A maioria não entende... Deve-se dar um tempo para a cabeça ajustar as coisas (período de latência); - As grandes perguntas ontológicas são feitas pelas crianças... As pessoas passam a aprender o que é óbvio (o que é muito triste em termos de desenvolvimento mental); - Aqueles que conseguem "sobreviver", continuam perguntando. São geneticamente preparados para isso. Vão perguntar sempre. Eles fogem ao padrão. Ou seja, sobreviveram à educação convencional; - É preciso também alguns pontos de apoio na trajetória. Dificilmente uma pessoa sozinha abre caminho. Você precisa de alguns pontos de referência. Esses "pontos de apoio" são pessoas boas, mas existem, embora sejam muito poucas. Viver bem seria tentar ser uma pessoa dessas. O resto não conta.