A mulher e a polimorfia da perversão
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- Carlos Eduardo do Amaral Aldeia
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1 A mulher e a polimorfia da perversão Women and perversion polymorphy Rosa Jeni Matz Resumo: Este trabalho pretende pensar a mulher na contemporaneidade, aproximando-a do conceito de criança perversa polimorfa discutido por Freud. Analisa a crescente dimensão do Gozo no mundo atual, e o enfraquecimento da categoria do Simbólico. Palavras-chave: simbólico; imaginário; real; sexualidade; desejo; gozo; objeto a; perversão; pulsão; inconsciente; recalque; recusa; Outro; lei. Abstract: This essay regards women in contemporary culture, approaching them to the concept of polymorphous perverse child as discussed by Freud. It analyzes the increasing dimension of the Jouissance in the present world, and the weakening of the category of the Symbolic. Key words: symbolic; imaginary; real; sexuality; desire; jouissance; object a; perversion; drive; unconscious; verdrängung; verleugnun; Autre; law. A Polimorfia da Perversão implica nas múltiplas formas de manifestação da perversão. Freud se refere à criança como perversa polimorfa após a observação de uma disposição sexual infantil universal que se apresenta num momento do processo do desenvolvimento sexual infantil, Cad. Psicanál., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 25, n. 16, p , 2003 Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 91
2 Seção Temática: A Polimorfia da Perversão onde há uma busca de satisfação centrada nas pulsões parciais. As dificuldades surgem quando há uma fixação, estagnação, uma ancoragem num determinado ponto deste desenvolvimento, gerando a estrutura perversa. Este trabalho é uma tentativa de reflexão sobre a questão da mulher no mundo contemporâneo, examinando a característica perversa polimorfa descrita por Freud que surge na mulher atualmente, seguindo um percurso que não implicaria numa montagem de uma estrutura perversa, mas acompanhando certos traços perversos polimorfos presentes na sociedade atual, essenciais para um laço social mais flexível, e que contribuiu positivamente para a emancipação feminina, e também, a outros grupos que eram marginalizados, como os homossexuais. Quando se fala em perversão a figura da mãe fálica surge em nossos pensamentos. O perverso é aquele que recusa (verleugnung) a percepção da falta do falo na mulher. Ele percebe a falta, mas imediatamente a recusa. Sobre esta falta é colocado um falo, um fetiche, algo que tampe esta falta. Surge, então, a mãe fálica, que permite ao perverso manter, através da clivagem do eu, a percepção desagradável da castração na mãe, e concomitantemente, sem conflito, a recusa desta percepção, ao colocar o falo no lugar da falta. Hoje, a nossa cultura é apontada como perversa. A lei do pai, a função paterna está em descrédito, e um campo social perverso domina. Muitas vezes se afirma que a mulher está ditando a lei do pai. A mulher hoje não é mais a histérica analisada por Freud. O tempo atual do inconsciente atemporal difere do tempo do recalque da cultura freudiana. Através do afrouxamento de uma época repressiva vitoriana, a mulher pode sair de casa, da casca, e fazer nascer a sua palavra. Esta palavra é logos, é saber, conhecimento sobre o mundo e sobre si. A mulher ocupa maior espaço na sociedade, exerce funções que antes pertenciam aos homens. Filhos são criados por mães solteiras, descasadas... Nestas casas só convivem mãe e filhos, podendo privilegiar a formação de uma sociedade perversa, pela ausência paterna (pai real). Mas, mulher trabalhar fora, ganhar dinheiro implicaria em decadência da função paterna? Há uma confusão... O que prevalece é uma identidade, o querer ser igual ao homem, através do desenvolvimento da cultura narcísica, e não uma Identificação que aponta para a diferença, para a função paterna. A identidade, através do domínio imaginário, estaria ocultando a identificação simbólica. O pai simbólico aponta em outra direção, é uma função simbólica que determina a lei. Lacan afirma que o fundamental é a mãe passar a palavra do pai ao filho, não importando a presença do pai real. Num 92 Cad. Psicanál., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 25, n. 16, 2003
3 determinado momento, a criança percebe que ela não completa a falta da mãe totalmente, que o desejo da mãe se dirige para um Outro, o pai. Esta operação é simbólica, não necessita de um pai real. Mas, apesar disso, constatamos atualmente o enfraquecimento da lei. Lacan diz que a lei funda o desejo. O que ocorre no perverso é o apagamento do seu desejo conforme à lei do desejo do Outro, fazendo do seu desejo lei, desafiando a lei. Sobre a mãe fálica: a mulher se tornou mãe fálica? Pois, ao se falar que estamos num mundo perverso, consequentemente, a mãe ocupa este lugar! Numa estrutura perversa a mãe é uma mulher sedutora, que geralmente efetua carícias reais em seu filho, zomba e desqualifica a palavra do pai. Há um gozo permissivo, a barreira da lei é ultrapassada, e a vontade de gozo impera sobre a lei do desejo. Sabemos que vivemos hoje num mundo de prevalência de Gozo. Lacan já via isto, pois seu próprio estudo no final de sua vida se dirigiu predominantemente para a categoria do Real. A mulher para Lacan tem um gozo a mais, já que ela não apresenta a exceção numa construção lógica universal, como o conjunto homem: todos são castrados, menos um (o pai da horda). Já as mulheres, todas são castradas, logo não há a exceção, a não castração, como a sofrida pelo homem. Assim, Lacan afirma que a mulher não existe, pois não faz parte de um conjunto universal possível. O seu recalque aberto permite uma situação maior de gozo. A nossa cultura é dita perversa, onde a vontade de gozo comanda. Poderíamos pensar a seguinte hipótese: a mulher ao gozar mais, a ter esta possibilidade de gozo a mais, e também um recalque mais maleável, pôde, através da dissolução da cultura repressiva vitoriana, se aproximar de uma polimorfia da perversão, isto é, houve o emergir de um momento cultural anterior ao recalque, momento onde o gozo predomina, que possibilita um crescimento de liberdades em campos antes socialmente marginalizados e sem voz, campos de prevalência de gozo, onde objetos a, objetos de gozo se pronunciam mais. Freud em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna 1 afirma que a nossa civilização repousa sobre a supressão (unterdrückung) das pulsões 2. Durante o desenvolvimento da pulsão sexual, uma parte da excitação sexual do indivíduo é inibida ou sublimada. Freud diz que grande parte das forças suscetíveis de utilização em atividades culturais são obtidas pela supressão dos chamados elementos perversos da excitação sexual 3. Distingue três estádios de civilização, considerando a evolução da pulsão sexual: Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 93
4 Seção Temática: A Polimorfia da Perversão 1 - A pulsão sexual pode se manifestar livremente sem considerar os objetivos da reprodução. 2 - Toda pulsão sexual é suprimida, exceto quando está a serviço da reprodução. 3 - Só a reprodução legítima é admitida como meta sexual. Afirma que a moral sexual civilizada de sua época corresponderia ao terceiro estádio, através da legitimação da sexualidade pelo casamento. Sobre o segundo estádio diz que muitos indivíduos não podem cumprir as suas exigências, devido as falhas no desenvolvimento das pulsões sexuais com objetivo da união dos genitais, o que possibilita desvios da sexualidade normal, que não são úteis à civilização. Após a leitura deste texto podemos observar alterações na civilização descrita por Freud denominada moderna. Estamos num momento nomeado pós-moderno. A cultura contemporânea pode ser situada no segundo estágio, onde Freud estabelece no texto a perversão, e até no primeiro estádio de evolução. O mundo atual, denominado perverso, efeito de dissolução de uma cultura repressiva vitoriana, não mais sustentada pelo recalque, pode ser pensado como uma conseqüência da característica fundamental do dualismo pulsional (pulsões de vida e de morte), que é o seu caráter conservador, a restauração de um estado anterior. Assim, já que ocorreu uma dissolução da época de prevalência do recalque há um retorno das pulsões a um momento anterior. Nietzsche já assinalava este movimento ao falar com voz de Zaratustra 4 sobre o eterno retorno. Este declínio do estádio três, a admissão da reprodução legítima como meta sexual, primado da genitalidade e do casamento, trouxe vantagens para a mulher. Freud analisa no texto citado a submissão da mulher ao matrimônio, a abstinência até o casamento, e as desilusões matrimoniais que propiciam o surgimento das neuroses. Hoje, a sexualidade é desvinculada do casamento. A maior parte das jovens mulheres não casam virgens. Seguindo a proposição de Freud da criança perversa polimorfa, e também, do paralelismo traçado entre a ontogênese e a filogênese, podemos deduzir que a humanidade numa determinada fase de sua evolução pode se tornar perversa polimorfa. Uma cultura perversa, com predominância de uma fase fálica social, onde todos teriam um falo, tanto o homem como a mulher, implicaria na anulação da diferença entre os sexos. Isto possibilitaria confusão nas identificações. Mas, há uma diferença entre uma cultura perversa polimorfa, próxima da criança, onde a criatividade 94 Cad. Psicanál., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 25, n. 16, 2003
5 está presente, e uma estrutura perversa onde a mãe é fálica, sedutora, que teve ou induziu contatos, carícias físicas com o seu filho, e desqualificou a palavra do pai, tornando-se ela a portadora da lei. Preferiria inserir muitos de nós nesta característica perversa polimorfa. O perverso sabe do desejo da mãe pelo pai, mas recusa este saber, negando a diferença dos sexos como causa significante do desejo. Postula uma unissexualidade, contestando a lei do pai, apesar de reconhecê-la, como instância legisladora da dinâmica do desejo. A única lei que reconhece é a lei imperativa do seu desejo, recusando a lei do desejo do Outro, responsável pela introdução da diferença entre os sexos. Muitas mulheres não são mães perversas, não seduzem ativamente seus filhos, mas mesmo assim, apresentam esta questão da palavra do pai confusamente. Algumas portam a lei, não apontando para a figura do pai simbólico, enquanto outras apontam o seu desejo para o pai (simbólico), possibilitando a entrada da dimensão da lei. Esta função fálica, pode ser pensada, também, através do homem atual, que também é desqualificado, sofrendo efeitos do afrouxamento da lei, do recalque. Todos estes dados possibilitam o incremento de uma sociedade perversa, que para alguns, como os neuróticos, apresentam traços perversos polimorfos, enquanto que outros, desmentindo o recalque, apresentam comportamentos perversos. A clínica contemporânea reflete estas mudanças. Surgem analisandos com sintomas que não podem ser lidos numa referência a uma teoria baseada em conflitos. Muitos desses analisandos apontam para mecanismos de clivagem do eu, que Freud traz em sua teoria sobre o fetichismo. Assim, creio que se faz necessário um estudo mais profundo sobre este mecanismo para a compreensão da clínica atual, e inclusive do homem e da mulher hoje. No Esboço de Psicanálise 5 Freud salienta que em vez de uma atitude psíquica, há duas, coexistindo lado a lado: uma delas, a normal, que leva em conta a realidade, e outra que, sob a influência das pulsões, desliga o eu da realidade 6. Estas são algumas reflexões, abertura para um porvir. Rosa Jeni Matz Psicanalista, Membro Efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 95
6 Seção Temática: A Polimorfia da Perversão Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rua Eduardo Guinle 60 apt 502, Botafogo, Rio de Janeiro. CEP: tel.:: (021) rosajmatz@aol.com Notas: 1 - Freud, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9). 2 - Ibid., p Ibid., p Nietzsche, F. W. Assim falava Zaratustra. Curitiba: Hemus Editora S. A., Freud, S. (1940). Esboço de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23). 6- Ibid., p. 231 Referências DOR, J. Estrutura e perversões. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991 FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9).. (1920). Além do Princípio de Prazer. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).. (1940). Esboço de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23). LACAN, J. O Seminário: Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Cad. Psicanál., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 25, n. 16, 2003
7 MANNONI, O. Clefs pour l imaginaire ou l autre scène. Paris: Seuil, NIETZSCHE, F.W. Assim falava Zaratustra. Curitiba: Hemus Editora S. A., Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 97
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