ADOÇÃO E VIOLÊNCIA TRANSGERACIONAL: Relato de uma experiência
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- Vinícius Mendes Borja
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1 ADOÇÃO E VIOLÊNCIA TRANSGERACIONAL: Relato de uma experiência Maria Luiza Bustamante P. de Sá (Professora-Orientadora, UERJ). Andreia dos Santos Silva (graduanda de Psicologia, UERJ). Introdução Compreender as origens do sofrimento familiar, e de que forma ela é perpetuada entre seus membros, é de suma importância para compreensão das diferentes manifestações de patologias na família. Família e a transmissão entre as gerações. Tudo está ligado, como o sangue que une uma família. Todas as coisas estão ligadas. O que acontece a Terra recai sobre os filhos da Terra. Não foi o homem que teceu a trama da vida. Ele é só um fio dentro dela. Tudo o que fizer à teia, estará fazendo a si mesmo. Chief Sioux (1856)
2 A família constitui-se como um grupo específico, caracterizado por vínculos de aliança e de filiação; pelas proibições que regem estes vínculos (proibição de incesto e de assassinato). Ela tem como uma de suas missões a articulação entre os diferentes membros e entre as diferentes gerações, isto em função da sua história e de seus mitos próprios. Entretanto, a tarefa da família não se resume apenas à articulação entre os diferentes membros e as diferentes gerações, mas também promove a perpetuação, ela deve prolongar-se para além da morte dos indivíduos, conserva-se idêntica a si mesma, apesar das alianças com outras famílias. De acordo com Grajon E. (1990), o indivíduo não pode construir completamente a sua história: ele se ancora em uma história familiar que o precede, da qual vai extrair as substâncias das suas fundações narcísicas e tomar um lugar de sujeito. Uma herança psíquica é transmitida pelas gerações precedentes. Correa (2000) define o grupo familiar como a matriz básica que constitui o sujeito. O grupo familiar é o espaço privilegiado para transmissão psíquica geracional inconsciente que fundamenta a construção da subjetividade. O vínculo mãe, bebê e grupo familiar irá constituir o berço psíquico do sujeito. E será nesse espaço psíquico intersubjetivo, referido ao tecido grupal do psiquismo, que irá se processar a transmissão psíquica geracional, que deverá ser metabolizada e sofrer transformações. O trabalho de transmissão geracional envolve um processo psíquico que se refere ao sujeito e ao grupo. Fustier e Aubertel em Transmissão Psíquica Familiar pelo Sofrimento (1998) se referem à hipótese de um aparelho psíquico familiar, definindo-o como uma aparelhagem psíquica comum e partilhada por todos os membros da família, cuja função é articular o estar junto familiar com os funcionamentos psíquicos individuais de cada um dos membros da família. O aparelho psíquico familiar irá funcionar como uma matriz de sentido,
3 que servirá de sustentação primária às psiques dos indivíduos que nascem no seio de uma família. A transmissão entre as gerações envolve um trabalho psíquico que se refere ao sujeito singular e ao grupo. Transmitir é transvasar um objeto, uma história, os afetos, não só de uma pessoa para outra, como também de uma geração para outra, estabelecendo certa distância entre transmissor e receptor (CORREA, 2000). Ainda de acordo com Correa (2000), podemos distinguir dois tipos de transmissão psíquica interligados e complementares: o intergeracional e o transgeracional. A herança intergeracional é constituída de vivências psíquicas elaboradas, fantasias, imagos, identificações, etc. Organiza a história da família, constitui uma herança positiva de filiação que atravessará os vínculos intrasubjetivos familiares em que se inscrevem os processos de identificação, delimitando um reservatório fantasmático familiar. A herança transgeracional, por sua vez, refere-se a uma modalidade defeituosa na transmissão que inclui os objetos psíquicos de uma herança genealógica mais distante, onde são encontradas lacunas na transmissão. Essas lacunas se referem ao que não foi simbolizado, o que foi escondido, calado pelos ancestrais, bloqueando o processo de transformação psíquica. (CORREA, 2000). A herança transgeração é formada por elementos brutos, advindos de histórias marcadas por vivências traumáticas, de não ditos e lutos não elaborados. E por não terem sido elaborados pelas gerações precedentes, esses elementos brutos irrompem os herdeiros, atravessam seu espaço psíquico sem apropriação possível (FUSTIER, ALBERTEL, 1998). R. Kaes (1993) nos diz que as alianças inconscientes organizam a criação de todo vínculo. Dessa forma, toda família é fundada sobre as relações de aliança que os indivíduos da
4 filiação devem levar em conta para construírem sua própria identidade de sujeito individual e de sujeito do grupo. Adoção e a cultura do segredo da negação a revelação: relato de um caso clínico. A história desse grupo familiar é complexa, por isso será resumida nos seus dados mais importantes. A família em questão procurou o Serviço de Psicoterapia Infantil para um de seus membros, um menino a quem chamaremos de M., que na época estava com dez anos de idade e apresentava uma queixa de dificuldade escolar. M. desde que começou a sua vida escolar não conseguia ser alfabetizado, tendo que freqüentar a classe de alfabetização por mais de uma vez. Era uma criança tímida e não tinha amigos de sua idade. Sempre se relacionava com crianças bem mais novas. E no primeiro contato com o grupo familiar, vimos se tratar, na realidade, de uma adoção que a família evitava transparecer. A partir da informação, centramos o fato da adoção como real motivo subjacente da consulta, esclarecendo a família de que M. deveria saber a verdade sobre a sua história. Durante o atendimento à família, investigando sobre o que estaria fazendo com que os pais se opusessem à idéia de contar a verdade, deparamo-nos com uma história familiar comprometida, onde o sofrimento familiar não era metabolizado, e, por sua vez, era transmitido nas gerações. A manutenção do segredo sobre a adoção trouxe prejuízos para M., que reclamava de forma inconsciente pela verdade sobre a sua história através de outros conflitos. Esclarecê-lo sobre a suas origens se tornou o ponto fundamental no primeiro momento da terapia familiar.
5 O segredo pode comprometer na criança seu senso de pertencer à família que a adotou, e nos pais pode afetar seus sentimentos de competência e direitos adquiridos e negados (HARTMAN, 1994). O caso nos faz refletir sobre um aspecto que é inerente a todo ser humano, o sentimento de pertença, de filiação. E no caso da família assistida pelo nosso serviço, o sentimento de pertença era vivenciado de forma acentuada, já que o pai de M. passou pela experiência de adoção, pois foi legalmente adotado pela avó materna, já que a mãe, por ter constituído outra família quando este ainda era criança, não o quis. E o pai, por sua vez, era desconhecido. Já a mãe de M., a qual foi moradora de rua na infância, relata a experiência de ter tido vários irmãos adotivos, com os quais em sua maioria não mantém mais contato. Dessa forma, a partir do histórico dos pais, que cresceram em ambientes familiares pouco estruturados e violentos, com histórias de adoções, onde os referenciais não eram marcantes, verificou-se que ambos apresentavam a carência do sentimento de filiação, demonstrando uma intensa necessidade de pertença. O revelar para o filho sobre a sua adoção os sensibilizava no que ambos apresentavam de mais frágil, principalmente o pai, que na infância foi rejeitado pela mãe. Segundo os relatos do casal, a criança foi deixada ainda na maternidade, e nessa época eles já tinham duas filhas adolescentes, tendo o pai mais dois filhos de outra relação, com os quais não mantém qualquer tipo de vínculo. Ao saberem do abandono da criança, por um esforço muito maior da esposa, resolveram adotá-la. Desde então, M. cresceu sem ter conhecimento da sua adoção. Até o momento em que a família procurou ajuda especializada para os problemas de aprendizagem apresentados por ele. Dolto (1998) nos diz que certos pais adotivos desejam manter em segredo as origens dos filhos, o que parece derivar essencialmente do imaginário. Como se a ignorância de suas
6 origens aproximasse a criança mais dos pais adotivos, ou de outra forma, como se a criança que nada sabe dos pais de nascimento fosse filha biológica da fantasia dos pais adotivos. O mito familiar pode ser compreendido como conjunto de crenças presentes na família que são compartilhados por todos os membros. De acordo com Andolfi (1989), o mito situase na área onde a realidade se mistura à fantasia, para criar novas situações em que elementos novos são conectados entre si. Segundo Ladvocat (2002), os mitos podem ser entendidos como situações falsas que dão significados as histórias; são transmitidos através das gerações, assim como as lendas e os sonhos, servindo de eco às fantasias. E uma das funções da família é o de favorecer a transformação de um mito em uma fantasia adequada ao indivíduo. O segredo da adoção funcionava como uma espécie de ligante na família atendida, era o grande segredo que todos sabiam. O revelar da adoção, por parte dos pais, e a continuidade do tratamento possibilitaram a viabilização da palavra numa organização familiar atravessada por não ditos. Como foi possível perceber no caso citado, o tema adoção apresenta-se ainda hoje sob uma esfera delicada para as famílias envolvidas. Em primeira instância, é preciso compreender quais as motivações e expectativas geradas em torno da adoção. O entendimento de família está veiculado à noção de descendência, de transmissão, que será perfeitamente concretizada com o surgimento de um filho, aquele que deverá ser o perpetuador dos valores e das características dos pais.o papel da hereditariedade, por sua vez, será fundamental para transmissão dessas características. Essa compreensão fará com que muitas famílias envolvidas com a questão da adoção demonstrem um esforço na omissão das informações sobre o histórico das crianças adotadas, favorecendo o surgimento de uma série de crenças e mitos sobre as origens do adotado.
7 De acordo com Ladvocat (2002), a adoção, até alguns anos atrás, estava baseada na cultura do segredo, onde o mesmo era visto como um modo lógico de proteger a criança do estigma e do preconceito. Na realidade, essa negação do histórico pré-adotivo do sujeito representa o medo de muitos pais de lidarem com aquilo que eles preferem não conhecer, que permanece anônimo, e que permeia as crenças sobre as influências de uma hereditariedade desconhecida na vida do sujeito adotado. Salzer (1991) nos ensina que devemos compreender que o vínculo existente entre mãe e filho é como se fosse uma cola emocional, que ultrapassa o relacionamento consangüíneo. O grande poeta William Shakespeare já dizia que um pai sabe que o tempo é muito lento para os que esperam, muito rápido para os que têm medo, muito longo para os que lamentam, muito curto para os que festejam, mas, para os que amam, o tempo é eterno. Considerações finais. A criança que passa pelo processo de adoção tem o direito de saber a verdade sobre as suas origens. Tem o direito de saber sobre a sua história, pois o que não é verbalizado, esclarecido, é passível de sintoma. Os buracos, os não ditos, podem gerar repetições traumáticas. De acordo com Eiguer (1995), os segredos dão lugar aos não ditos, surgindo os mitos trasgeracionais. Aquilo que não passou pelo processo de elaboração. As conseqüências dos segredos podem ser danosas. Correa (2000) nos diz que se os acontecimentos que originaram os segredos numa geração tornam-se inconfessáveis, na geração seguinte passam a ser inomináveis, já que não puderam ser objetos de uma representação verbal. E embora seu conteúdo seja ignorado, pode ser pressentida a origem de algo que foi cuidadosamente guardado. O segredo pode se manifestar como um problema de aprendizagem, como no caso de M., e na geração seguinte alcançará a categoria do impensável, acentuando as patologias em função das perturbações presentes na transmissão.
8 De acordo com a autora o portador do segredo percebe dentro de si, sentimentos, aos quais não consegue atribuir um sentido. No processo terapêutico de M. e de sua família, os segredos sobre a sua filiação demonstravam a impossibilidade de sua família em dizer, de simbolizar, e na falta de meios de transmissão adequados, as transmissões eram feitas ainda que de maneira bruta. Percebendo a modalidade de funcionamento da família de M. nas sessões, trabalhamos a retomada do funcionamento familiar, no qual a família passou a organizar na representação aquilo que ficou bloqueado na experiência. O revelar da adoção de M. por seus pais e a discussão sobre a suas origens, possibilitou a ele se apropriar da sua história. E se sentir reconhecido pelos seus pares. M., em dez meses de processo terapêutico, foi alfabetizado e conseguiu avançar em seus estudos. Assim como, hoje, apresenta-se de forma mais articulada e se relaciona com crianças da sua idade. Bibliografia ABRAHAM, N.; TOROK, M. A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta, ANDRE FUSTIER, F; AUBERTEL, E. Transmissão Psíquica Familiar pelo Sofrimento. IN: EIGUER, a (org). A transmissão do psiquismo entre as gerações. São Paulo: Unimarco, 1998, p ANDOLFI, M; ANGELO, C. Tempo de mito em psicoterapia familiar. Porto Alegre,1989. DOLTO, F.; HAMAD, N. Destino das crianças.são Paulo: Martins Fontes, 1998 DOLTO, F. Tudo é linguagem. São Paulo: Martins Fontes, EIGUER, A. O parentesco fantasmático. São Paulo: Casa do Psicólogo, FREUD. S (1913). Totem e Tabu. Edição brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 13. FREUD. S (1914). Sobre o Narcisismo. Edição brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 14.
9 GRAJON, E. A elaboração do tempo genealógico no tratamento da terapia familiar psicanalítica. Revista de Psicoterapia Psicanalítica de grupo, nº , HARTMAN, A. Os segredos da adoção. In: Os segredos na família e na terapia de família. Porto Alegre: Artes Médicas, KAES, R. Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, KAES, R. O grupo e o sujeito do grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo, LADVOCAT, C. Mitos e segredos sobre a origem da criança na família adotiva. Rio de Janeiro: Book Link, LEVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, RUIZ CORREA, Olga. O legado familiar: a tecelagem grupal da transmissão psíquica. Rio de Janeiro: Contra-capa, SALZER, L. Adoption. IN: Survinving Infertily. New York, Happer Perennial Publishers.
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