Questões teóricas sobre a anorexia em bebês psicossomática fobia ou inibição? Leda Mariza Fischer Bernardino 1

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1 Questões teóricas sobre a anorexia em bebês psicossomática fobia ou inibição? Leda Mariza Fischer Bernardino 1 Muitos autores discutem a lugar da anorexia na nosografia. Maldavsky aponta a este respeito a desorientação nosográfica, a imprecisão conceitual, a ambigüidade, no que se refere à descrição da lógica que anima os vínculos familiares que determinam esta manifestação clínica (MALDAVSKY, 1997, P. 130). Ele retoma esta discussão citando autores como Sperling (1978), que pensam a anorexia como sintoma neurótico; outros autores que a pensam como uma psicose ou, mais especificamente, uma defesa contra ela, como Melanie Klein ( ); e outros ainda que a situam como um transtorno psicossomático, como Kreisler (1987). Maldavsky aponta, contudo, que todos estes autores são unânimes quanto a atribuir importância à fixação em uma decepção precoce no vínculo oral com a mãe (p. 131). Maldavsky contribui em seu estudo com mais uma possível localização nosográfica para a anorexia: propõe-na no campo das adições, em que há um elemento tóxico, mas afirma que diferentemente das afecções psicossomáticas, em qu e a intoxicação está relacionada com um vínculo com o outro, na anorexia há um aspecto auto-erótico. Então, embora reconheça a afinidade da anorexia com as estruturas neuróticas, psicóticas e psicossomáticas, localiza-a no segmento clínico das adições, em que confluem o auto-erótico e o tóxico com uma apresentação similar às neuroses obsessivas, conversivas ou fóbicas (MALDAVSKY, 1997, P. 134). Já para um autor lacaniano como François Ansermet (1999), o distúrbio anoréxico não é uma estrutura psíquica em si (p. 165). Para ele, a anorexia seria uma defesa contra um sofrimento vivo (idem), ao qual estaria subjacente uma das grandes estruturas cl ínicas, neurose, psicose e perversão. Para este autor a anorexia precoce assinala um impasse na emergência do sujeito (p. 161). Ele assinala ainda um elemento paradoxal neste quadro: A anorexia, patologia do desejo, seria também uma patologia da vontade. Uma vontade que vai contra um desejo (p. 159). Ansermet aponta que na anorexia precoce não se trata apenas de um distúrbio, mas que, através desta recusa primordial, é a constituição do sujeito que está em jogo (p. 162). O que nos remete a várias situações clínicas que nos são apresentadas quando trabalhamos com bebês e seus pais. Na minha experiência clínica pessoal e de supervisão no contexto da primeira infância, pude observar quatro situações que localizam a anorexia diferentemente: 1 Psicanalista, analista membro d a Associação Psicanalítica de Curitiba. Membro d a Associação Universitária de Pesquisa em Psicop atologia Fundamental. Pesquisadora do Laboratório d e Psicop atologia Fundamental d a UFPR, coordenadora d a linha de pesquisa Preven ção, pro moção e atuação em saúde mental. End.: Av. do Batel, 1920/ CURITIBA PR. ledber@terra.co m.br

2 1) A questão do medo do alimento: sobretudo quando ocorre a passagem, após o desmame, do alimento líquido para o semi -sólido e para o sólido. A ingestão do alimento como algo novo, vivido como ameaçador e angustiante, remete à questão da fobia e ao binômio devorar/ser devorado das fobias precoces. Seria então uma questão neurótica por excelência, pois estaríamos naquilo que Lacan denomina placa giratória da definição estrutural: a localização de um objeto fóbico que representaria a questão da separação na relação com o outro/outro. O objeto oral estaria então superinvestido por um excesso de erogeneização e de significação, próprio do que ocorre com o sintoma neurótico. 2) A questão psicossomática envolvida na construção erógena do corpo, a anorexia denuncia que nesta reunião psique/soma algo falha radicalmente. Como sinaliza Crespin (2004), estes estados de sofrimento devem ser compreendidos como dependentes do somático e do relacional ao mesmo tempo (p. 48, grifo da autora). Entretanto, na anorexia não encontramos um órgão que sinalize esta falta de articulação, não se trata de um órgão que adoeça manifestando pelo sofrimento físico a impossibilidade de situar na linguagem o sofrimento psíquico. O que ocorre é, muito mais, uma função que se desorganiza, o que nos leva ao po nto três. 3) Na organização da função alimentar, ocorre uma inibição desta função, seria então uma manifestação egoica e não sintomática. Freud refere-se a isto: a função da nutrição é, com a maior freqüência perturbada por uma falta de inclinação para comer, acarretada por uma retirada da libido (FREUD, 1926, 1976, p. 109). Freud é enfático ao dizer que a inibição é a expressão de uma restrição de uma função do ego (idem, grifo dele) e difere de um sintoma porquanto um sintoma não pode mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele (FREUD, 1926, 1976, p. 111). Vemos que se trata do movimento contrário ao da situação descrita no ponto 2, pois aqui ele se refere à ausência de libido, à falta de erogeneização, ou seja, o objeto pulsional oral não se constitui ou se constitui com falhas. 4) A defesa contra a posição dessubjetivante e, portanto, psicotizante de ser situado como tubo digestivo e não como sujeito antecipado. Neste sentido, a anorexia seria como situaram Silva e Ba stos (2006, p. 100) manobra de separação do sujeito em relação ao Outro. Aí onde o Outro parece sufocar toda falta, a recusa surge como desejo. Estas autoras subscrevem a posição de um autor lacaniano, Recalcati (2001), de que o movimento presente no sintoma da anorexia pode ser considerado uma pseudo -separação, e não uma separação do Outro (Silva e Bastos, 2006, p. 105). Crespin (2004), ao referir-se à anorexia severa do bebê, quadro grave e pouco freqüente, de prognóstico letal em curto prazo, existe para nos provar, para desnudar o que está subentendido na relação alimentar: um sujeito pode recusar muito cedo, e até a morte, a satisfação da necessidade em nome de seu reconhecimento como ser de desejo (p. 33), mostra a radicalidade deste movimento, por parte do bebê. Ela enfatiza, desta forma, o que a

3 leitura lacaniana sobre a diferença entre necessidade e desejo e a introdução da dialética da demanda permite compreender o humano como falasser: a existência, no sentido simbólico, tem primado sobre a sobrevivência (CRESPIN, 2004, p. 24) Anos atrás, ao discutir um caso clínico, pareceu -me pertinente propor algo desta ordem, também sustentada no pensamento lacaniano: Ao fechar a boca enquanto puro orifício real de alimentação, o bebê tenta convocar o Outro a sustentar o objeto em sua dimensão libidinal (Bernardino, 2005, p. 166). Sendo assim, diferentemente de um mecanismo próprio a uma estrutura específica (recalque neurose; renegação ou desmentido perversão; forclusão psicose), o mecanismo utilizado pelo bebê anoréxico seria muito mais a denegação (Verneinung): o não que vem como afirmação subjetiva, a serviço da existência. Esta afirmação vem marcar uma posição também quanto ao representante do Outro, pois a organização da função ocorre nest e plano relacional, tendo como pano de fundo a referência à linguagem. Em um mesmo movimento, há a tomada do corpo real em um circuito p ulsional (neste caso, oral) e a entrada no campo da demanda, que convoca a linguagem. Quando algo aí falha, o não do bebê atinge narcisicamente este que faz este papel e isto tem uma função terapêutica, como mostra Crespin (2004): a recusa ativa do bebê, se é tolerada, poderá então operar como um ato descompletante do Outro, de sua onipotência original (p. 54, grifo da autora). Na discussão do presente caso clínico, algumas questões se apresentam. A primeira delas mostra que, realmente, quando um bebê se depara com uma fragilidade no acolhimento daquele que se apresenta para ele como seu Outro, o que ele tem à disposição para enfrentar o desamparo físico e simbólico em que se encontra por condição é seu próprio corpo. Sabemos como as infecções de repetição são indícios de problemas no laço mãe/bebê. No entanto, na anorexia algo diferente se dá, pois é a função que se acha perturbada. Pensar em inibição, contudo, pressupõe que já temos um ego organizado, já que é nesta instância que Freud situa a questão. Ora, não se trata disto no bebê, cuja instância egoica é ainda representada por seu Outro. Poderíamos então pensar em inibição da função alimentar na mãe, que se acha impedida de facilitar a organização desta função em seu bebê, pois é para ela que a questão oral está deserotizada. Isto é bem evidente no caso clínico que ora discutimos. Do lado do bebê e retomando as idéias de Maldavsky, poderíamos situar um funcionamento auto-erótico, algo que, em termos lacanianos, poderíamos chamar de campo das pulsões parciais. O bebê ainda na vivência de corpo fragmentado, não unificado pelo Estádio de Espelho, o que daria a base para a constituição do eu, alienado à imagem unificada do espelho e avalizada pelo Outro. Haveria então fracasso no circuito pulsional oral, já que apenas o primeiro tempo se produz e ainda com a atividade representada muito mais pela oposição ao comer do que pela busca ativa do objeto. Seria então sintoma, pois haveria um

4 superinvestimento da função pela negativa. Com seu sintoma, o bebê obriga a mãe, mesmo inibida e desinvestida quanto à questão oral, a focar a atenção neste ponto. Por outro lado, se considerarmos a anorexia como uma defesa do bebê contra a psicotização, em que a oposição ao comer suporia uma recusa de ser satisfeito em um apetite da ordem da necessidade e uma indicação de que a fome é do dom de amor e não do objeto, uma questão de vulto se nos apresenta: quem faria esta oposição, considerando que ainda não há sujeito neste momento tão precoce? Quem se manifesta não querendo o alimento? Que instância seria esta? Haveria então no humano um apetite à interação tal, e tão primitivo, que suportaria esta atividade de vontade opositiva? Esta é a hipótese de Crespin, que propõe o conceito de apetência simbólica, designando-o como o formidável apetite que tem o recém-nascido de boa saúde para entrar em relação com o Outro [...] assinalando assim a primazia do simbólico sobre o estado de necessidade" (CRESPIN, 2007). Para esta autora, é esta apetência simbólica, que torna o bebê capaz, desde o nascimento, de participar ativamente da relação, numa posição atenta e desejante diante do que o outro geralmente sua mãe transmite-lhe ao cuidar dele. Neste caso que discutimos, parece que toda a sequência do trabalho analítico permitida pela oferta de um outro lugar e pela circulação do elemento lúdico e erógeno, somos levados a supor que sim, que havia neste pequeno sujeito, que estava sob risco psíquico, algo deste proto sujeito que se presentificava, situando entre ele e sua mãe o vazio, o nada, que permitiu a interrogação sobre a falta e o desejo. O bebê foi afetado pela estrutura e fez atuar a função paterna, conforme Crespin afirma: O bebê é ativo na relação, e pode -se dizer que ele toma para si a garantia da função paterna débil ou ausente: ao se recusar, ele põe um limite à onipotência originária da mãe e dispõe assim do espaço no qual ele pode advir (p. 53). Ao dar lugar a isto, a inibição em que esta mãe se encontrava, de passar da literalidade da alimentação para o investimento no dom de amor, pode se destravar no contexto transferencial e a função alimentar pode se organizar. A reação fóbica ao alimento, fobia no sentido préedípico, pois situada no temor à devoração, pode ser encenada e elaborada pelo elemento lúdico introduzido como objeto intermediário na cena transferencial. Diante do exposto e retomando a questão inicial que ensejou este trabalho, pode-se concluir concordando com todos os autores psicanalistas que propõem a anorexia na primeira infância como uma maneira de a criança se defender do lugar que recebe de seu Outro primordial. Esta maneira demonstra que a criança é afetada pela estrutura simbólica, pois busca assegurar um vazio entre ela e seu Outro, ao mesmo tempo em que encena uma demanda de vazio, ao apontar seu apetite para outra coisa que não o objeto da necessidade. Mostra ainda que encontramo-nos com componentes psicossomáticos, neste momento tão arcaico em que é o corpo que responde na ausência de sujeito; e com componentes fóbicos pré-edípicos que denotam o desamparo simbólico no qual o bebê está e sua angústia de aniquilamento; bem como com um

5 quadro de inibição da função, que se situa muito mais do lado materno, pois é a mãe que não põe em funcionamento a dialética da demanda e do desejo. Vemos que é precocemente que a referência paterna, referência à lei, se presentifica neste proto sujeito que denuncia a falha do circu ito pulsional ao mesmo tempo em que apresenta sua vontade no sentido opositivo. Oposição que entendemos como denegação, no sentido freudiano de um não que representa a possibilidade de o sujeito inconsciente ser reconhecido em seu ato, em seu dizer. Por isso a importância de haver um psicanalista disposto a escutar o bebê em seu apelo e a acolher a mãe em sua inibição. REFERÊNCIAS ANSERMET, François. Clinique de l origine. Zurich : editions Payot Lausanne, BERNARDINO, Leda Mariza Fischer. «Anorexia e luto». In : SALES, Léa (org.). Pra que essa boca tão grande? Questões acerca da oralidade. Salvador (BA): Ágalma, CRESPIN, Graciela Cullere. A clínica precoce: o nascimento do humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, CRESPIN, Graciela Cullere. L epopée symbolique du nouveau-né. Paris: Erès, FREUD, Sigmund. (1926) Inibições, sintomas e ansiedade. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, KLEIN, Melanie (1930). La importância de la formación de símbolos em el desarrollo del yo. In: Contribuiciones al psicoanálisis. Buenos Aires: Hormé, KREISLER, Léo. Le nouvel enfant du désordre psychosomatique. Toulouse : Privat, MALDAVSKY, David. Anorexia na infância: met apsicologia e clínica. Uma contribuição ao estudo das dependências precoces. In: BERNARDINO, Leda Mariza Fischer (org.). Neurose infantil versus neurose da criança. Salvador (BA): Ágalma, RECALCATI, Massimo. Os dois nada da anorexia. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 32, São Paulo, SILVA, Alinne Nogueira & BASTOS, Angélica. Anorexia: uma pseudo - separação frente a impasses na alienação e na separação. In: Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 18, n. 1, p , 2006.

6 SPERLING, M. Psychosomatic Disorders in Childhood. New York: Jason Aronson, 1978.