A função da alteridade frente ao desamparo nos primórdios da vida psíquica
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- Ian Assunção Palhares
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1 A função da alteridade frente ao desamparo nos primórdios da vida psíquica Natália De Toni Guimarães dos Santos O humano só advém a partir de outros humanos. O filho do homem é um ser absolutamente dependente e vulnerável, que não sobrevive sozinho, nem mesmo no registro da ordem vital. Assim, uma alteridade que porte um investimento psíquico particularmente endereçado ao infans é condição sine qua non para o processo de subjetivação. Neste trabalho, abordaremos a função da alteridade no processo de constituição subjetiva, segundo os referenciais de Freud, Lacan e Laplanche. Refletiremos, então, sobre as implicações dessa função para o sujeito, assinalando que a atividade de cuidar remete necessariamente a uma dimensão ética, isto é, ao campo da relação do sujeito com o Outro e da posição que o sujeito ocupa nesta relação. O ser humano é marcado por uma precariedade constitucional que o torna impotente diante da tarefa de manutenção da sua própria vida. No Projeto para uma psicologia científica, de 1895, Freud afirma que o que há no início da vida é um soma que precisa descarregar suas excitações endógenas e ter as suas necessidades satisfeitas. Ocorre um acréscimo da tensão, que não pode ser dominada pelo aparelho psíquico do infans, ainda em vias de estruturar-se, precisando da intervenção de outro ser humano para isso. Nas palavras de Freud (1985), Ela [a ação específica] se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via da alteração interna [por exemplo, pelo grito da criança]. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. (FREUD, 1895, p. 431). Nesse sentido, a criança depende de um objeto de satisfação, de uma alteridade que se ocupe dela. Esse fator biológico de desassistência do vivente estabelece as primeiras situações de perigo, na medida em que ele está totalmente desprotegido frente ao outro e a seu desejo. Isso engendra as primeiras formas de comunicação e, ao mesmo tempo, instaura a necessidade de ser amado, lançando as bases para a conduta ética. Essa alteridade, então, adquire uma condição de onipotência, influenciando de forma decisiva a estruturação do psiquismo. Quando a pessoa que o auxilia realiza
2 para ele essa ação específica, ele fica em condição de executar no interior de seu corpo a remoção do estímulo. Efetua-se assim uma descarga que suspende provisoriamente a urgência que causou o desprazer: eis a experiência de satisfação, configurando os primeiros registros psíquicos, que serão reinvestidos quando a tensão surgir novamente, instaurando o desejo. A partir daí o sujeito se implicará por toda a vida na busca pelo objeto perdido, sem jamais poder encontrá-lo. Também para Jacques Lacan, o infans, por sua precariedade e imaturidade constitucional, encontra-se desamparado. Como conseqüência imediata e indissociável, instaura-se a dependência em relação ao Outro, que é condição imprescindível para a constituição de um sujeito psíquico. Mas o que é Outro? Não é necessariamente a mãe biológica, já que essa tarefa pode ser realizada com igual eficácia por mãe substituta. O Outro deve estar presente como uma referência com certo grau de constância (cf. Cabas, 1982). Trata-se de um lugar simbólico e, nesse sentido, é anônimo. É imprescindível que essa função seja executada, pois dá alicerce a determinadas formações imaginárias. As próprias experiências infantis, as brincadeiras, as expectativas com relação a um filho, compõem esse campo do Outro no qual o infans já nasce inscrito. Essas formações imaginárias serão transmitidas à criança a partir da relação que se estabelece com ela desde o útero, na medida em que lhe seja concedido um lugar simbólico na economia psíquica do Outro. Tudo o que se passa na libido desse Outro, é marcado por um significante e introduzido no movimento natural do desejo. É somente nesse movimento desejante, mobilizado por uma falta constituinte do aparelho psíquico, que busca algum preenchimento a partir desse investimento no lugar simbólico atribuído à criança o lugar do falo, que um sujeito pode advir, inserido na linguagem e na cultura (cf. Lacan, 1995). O sujeito, nesse sentido, advém de uma antecipação simbólica e imaginária, alienado ao seu Outro primordial. Quando a tensão interna do infans aumenta, a única maneira de pedir ajuda não é justamente um pedido, uma mensagem, mas um simples índice objetivo (Laplanche, 1987, p. 104), como um grito, por exemplo. A mãe atribui às funções corporais o valor de uma mensagem, veredicto do verdadeiro e do falso do discurso pelo qual ela fala o infans... (Aulagnier, 1979, p. 112). Através dessa violência primária, necessária à entrada no sujeito na ordem do humano, o discurso materno dá sentido ao grito e, dessa forma, antecipa o sujeito, seu desejo. Assim, todo indivíduo nasce num espaço falante. O Outro é um lugar em
3 que se situa a cadeia significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se no sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer. (Lacan, 1995, p ). O discurso e o desejo do casal parental exercem ação estruturante por e sobre a psique do infans. A esse respeito, no texto sobre o estádio do espelho, Lacan fala de uma transformação produzida no sujeito ao assumir uma imagem (cf. Lacan, 1998). Nesse sentido, a função antecipatória da linguagem também é observada por Lacan no registro da pulsão escópica. A forma total do corpo que se vê refletida no espelho e nomeada pelo Outro é mais constituinte que constituída. A assunção jubilatória da imagem especular de um ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência manifesta a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial. O sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua potência, uma gestalt capaz de efeitos formadores sobre o organismo, possibilitando a simbolização da permanência mental do eu na estátua em que ele se projeta. Essa forma situa a instância do eu antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado. Assim, esse laço com o Outro é consensualmente entendido na psicanálise como fundamental para a constituição do sujeito. Esse processo de constituição psíquica, no entanto, é teorizado pelos psicanalistas de maneiras diversas. Uma importante divergência entre Lacan e Laplanche é o fato de que para o último há sempre espaço para algo do sujeito se produza, a partir de uma exigência de trabalho. Para Laplanche, o inconsciente da criança não é uma simples interiorização do discurso e do desejo do Outro, mas o resultado de um metabolismo que implica decomposição e recomposição (cf. Bleichmar, 1993). A criança é seduzida por um adulto, mas não se aliena completamente no campo do Outro, já que a pulsão introduzida a partir daí é por definição ativa e realiza trabalho. Segundo Laplanche (1987), os cuidados corporais dispensados ao filho pela mãe ou substituto provocam pela primeira vez sensações prazerosas, que são enigmáticas para a criança, pois veiculam fantasias do desejo inconsciente do adulto, ignoradas até por ele mesmo. A criança é então impelida a procurar compreendê-las, dar um sentido e uma resposta. Elas lhe impõem trabalho psíquico, instaurando a pulsão e instigando, assim, a produção de seu psiquismo. Essa situação originária, nesse sentido, é um trauma estruturante. Chamaremos de ética a esta dimensão da disposição do mundo humano em receber seus novos membros. (Figueiredo, 2009, p. 133). Na medida em que a satisfação das necessidades vitais passa pelo apelo dirigido ao Outro, a satisfação está é inteiramente suspensa à alteridade, que pode ou não prover os objetos. Essas
4 desproporções são ameaças contínuas de sem-sentido, que exigem do sujeito um trabalho para fazer sentido, um solo para existir, propiciado pelas práticas de recepção. Nesse sentido, a função de cuidar remete a dimensão ética, pois toda relação que se estabelece com a criança produz efeitos na sua subjetivação. Não há garantias para existência humana, a criança não sabe quem é. Ser sujeito é uma ocorrência que se produz no Outro (cf. Nasio, 1991). A criança se verá infeliz, comediante, irresistivelmente engraçada, antes de ter tido a calma de procurar ser o quer que seja. (Schneider, 1993, p.47). Bibliografia AULAGNIER, Piera. (1979) A Violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago. BIRMAN, Joel. (1991) Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. BLEICHMAR, Silvia. (1987). O conceito de neurose na infância a partir do recalcamento originário. IN:. Nas origens do sujeito psíquico: do mito à história. Porto Alegre: Artes Médicas, CABAS, Antonio Godino. (1982) Curso e Discurso da obra de Jacques Lacan. São Paulo: Moraes. FIGUEIREDO, L. C (2009). A metapsicologia do cuidado. In:. As diversas faces do cuidar. São Paulo: Escuta. FREUD, Sigmund. (1990 [1895]) Projeto para uma Psicologia Científica. In:. Obras Completas vol. I, Rio de Janeiro: Imago Editora, 3 a edição.. (1990 [1911]) Formulações sobre os dois princípios de funcionamento psíquico. In:. Obras Completas vol. XII, Rio de Janeiro: Imago Editora, 3 a edição. LACAN, Jacques. (1998 [1966]) O estádio do espelho como formador da função do eu. IN:. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.. (1995) O Seminário: livro 4: relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.. (1997) O Seminário: livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. LAPLANCHE, J. (1987). Fundamentos: para a teoria da sedução generalizada. IN:. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70.
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