PN. 919.98 Apelante Apelada recurso interposto no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Acordam no Tribunal da Relação de Évora 1. O Apelante pediu a condenação da Apelada a satisfazer o montante, acrescido de juros desde a citação até integral pagamento, de PTE 2 515 000$00, sendo 1 800 000$00 de indemnização por dores físicas sofridas até ao momento da propositura, 700 000$00 pelos danos não patrimoniais e 15 000$00 pelos danos patrimoniais, respeitante ao custo de um velocípede, porquanto foi interveniente num acidente de viação, ocorrido em 92/10/12, pelas 14:30H, em águas de Moura, Marateca, em que colidiram o velocípede-a-pedais (sem número de matrícula), por ele tripulado, e o motociclo de matrícula, conduzido pelo menor de quinze anos de idade,, tendo o dono deste último veículo transferido a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação rodoviária do mesmo para a Apelada: o menor por ser inexperiente na condução perdeu o domínio do motociclo e foi embater no velocípede conduzido pelo Apelante que, em consequência do sinistro, sofreu politraumatismos e coma vigile. 2. A Apelada defendeu a improcedência do pedido, já que o condutor do LV circulava pela direita da bicicleta, tendo portanto prioridade de passagem; foi o Apelante afinal quem foi imprudente na condução, devendo-se-lhe por isso a ocorrência do acidente. 3. Ficou provado: 1
(a) no dia 92/10/12, pelas 14.30H, em Águas de Moura, Marateca, Palmela, ocorreu um acidente em que intervieram o velocípede (sem número de matrícula), conduzido por, e o motociclo de matricula conduzido por Miguel; (b) o Miguel levou o motociclo da residência de, sem qualquer autorização deste, que não lho emprestara; (c) o LV transitava na rua Heróis do Ultramar, no sentido S/N, e o velocípede-a-pedais na rua da Independência, no sentido Poente/Nascente; (d) ao chegarem ao entroncamento das referidas ruas, o motociclo embateu no velocípede-a-pedais, quando este se encontrava próximo do lancil do passeio do lado direito da rua; (e) foi de imediato projectado no chão; (f) tendo o velocípede ido parar a vários metros do local do embate, que é um entroncamento, com boa visibilidade; (g) não tinha experiência no exercício da condução, e conduzia o LV sem estar legalmente habilitado com a respectiva licença de condução; (h) pôs-se em fuga após o acidente; (i) em consequência deste, ficou politraumatizado, em coma superficial, sofrendo traumatismo craniano com perda de conhecimento, feridas no couro cabeludo, pálpebra superior direita, escoriações múltiplas, fractura do terço médio do fémur direito, fractura do terço médio da tíbia direita, complicada com ferida, e edema cerebral difuso; (j) tendo sido internado no Hospital de São José, foi depois transferido para o Hospital de D. Estefânia, onde esteve internado no Serviço 3-2, de 92/10/17 a 92/11/05; (k) a última consulta do Hospital de D. Estefânia teve lugar no dia 94/10/27; (l) o apresenta dificuldades a nível da memória auditiva e da capacidade da representação simbólica, por virtude das quais foi solicitado para ele apoio escolar suplementar; 2
(m) necessita de muito apoio psicológico, familiar e escolar, com vista a um melhor desenvolvimento; (n) esteve sujeito a ventilação assistida por três dias; (o) fez crise convulsiva Jacksoniana, em 92/10/15; (p) sofreu dores no momento do acidente, bem como com os tratamentos a que foi sujeito; (q) experimentou medo e angústia no momento do acidente, (r) o velocípede ficou completamente inutilizado, e valia no mínimo PTE 12 000$00. 4. A sentença recorrida absolveu a Apelada: Falecem desde logo quer a ilicitude quer a demonstração de qualquer comportamento culposo causal do dano por parte do condutor do motociclo, cuja responsabilidade civil emergente da respectiva circulação se encontrava transferida para a R., ficando prejudicada a análise do disposto no Art. 8º DL 522/85, 31.12. 5. Concluiu o Apelante: (a) 1. O LV transitava na rua Heróis do Ultramar, no sentido S/N, e o velocípede-a-pedais na rua da Independência, no sentido Po/Nasc, sendo que os pontos cardeais mencionados indicam que se trata de um entroncamento em forma de T, representando a rua da Independência, em que seguia o velocípede, a parte superior da letra; 2. Ao chegarem ao entroncamento das referidas ruas, o motociclo embateu no velocípede-a-pedais: 3. Quando este se encontrava próximo do lancil do passeio do lado direito da rua; 4. O Apelante foi de imediato projectado no chão; 5. Tendo o velocípede ido parar a vários metros do local do embate; 6. Que é um entroncamento com boa visibilidade; 7. O condutor do motociclo não tinha experiência da condução; 3
8. E conduzia o LV sem estar legalmente habilitado; 9. Pôs-se em fuga após o acidente; (b) perante estes factos comprovados, tem de concluir-se que o condutor do LV não observou as indispensáveis precauções, não ficando assim prejudicada a análise do Art. 8º CE (DL 39672, 54.05.20, vigente à data do sinistro); (c) ao Apelante, para cumprir o ónus da prova de culpa, bastar-lhe-ia demonstrar que o motociclo não pôde parar no espaço livre e visível à sua frente, e sendo que ficou provado (b) 2., 3., 4., 5., 6., 8; (d) ora, atendendo ao que é normal, ao id quod plerumque accidit, o excesso de velocidade é devido a condução negligente ou transgressiva; (e) e nas acções de indemnização por facto ilícito embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, essa sua tarefa está aliviada com o recurso à chamada prova de primeira aparência (presunção simples), procedendo com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, causa danos a terceiros, competindo ao lesante contrariar essa prova de primeira aparência, demonstrando ser a culpa do lesado, o que não sucedeu; (f) o julgador bastou-se com a conclusão de o embate se ter verificado próximo do lancil do passeio direito da rua Heróis do Ultramar para aceitar que o velocípede se encontrava na mão de trânsito do motociclo quando se verificou o choque, mas provou-se (b) 3., 5.; (g) ora, estando em causa a responsabilidade civil extracontratual, com a inerente obrigação de indemnizar, verificam-se os pressupostos estabelecidos no Art. 483 CC.: a culpa do condutor do LV está apurada; (h) Assim, a matéria de facto descrita na sentença recorrida não coincide, numa interpretação contextual, com a conclusão sentencial: o A. não demonstrou que o condutor do LV não observou as indispensáveis precauções; (i) afigura-se-nos portanto que a posição do tribunal, na valoração da prova, no exame crítico da prova, é de censurar, como é possível, pelo tribunal do recurso; 4
(j) na verdade, não pode dizer-se que falecem a ilicitude, bem como a demonstração de qualquer comportamento causal do dano por parte do condutor do motociclo ; (k) e estando os fundamentos em oposição com a decisão, a sentença recorrida enferma da nulidade do Art. 668/1 c. CPC; (l) deve em consequência ser revogada e substituída por decisão que condene a Apelada no pedido. 6. Não houve contra alegações. O recurso está pronto para julgamento. 7. Em face das posições havidas pelas partes e do particular regime do Seguro obrigatório, à matéria comprovada tem de ser aditado de ofício: (a) o veículo LV estava na disponibilidade de; (b) este transferiu para a Apelada, através de Apólice de Seguro obrigatório, a responsabilidade pelos danos emergentes da circulação rodoviária do referido veículo. 8. A primeira crítica da recorrente tem a ver com o juízo sobre a culpabilidade aceite na sentença recorrida. Afirma-se que os dados comprovados indicam antes uma maior viabilidade do juízo de culpa responsabilizante do condutor do motociclo. Insiste-se no excesso de velocidade, porque não pôde deter o veículo no espaço livre e visível em frente. No entanto, não tendo sido apurado qual teria sido a posição relativa dos veículos na sequência imediatamente anterior à colisão, não pode certamente aceitar-se esta crítica: é concebível um surgimento inopinado, e demasiadamente próximo, da bicicleta. Não se segue que a sentença possa convencer. Na verdade, não tendo sido apurado o local exacto do embate, nomeadamente se na direita ou na esquerda da embocadura da rua por onde circulava o motociclo, se mais próximo ou menos do eixo da via, e não tendo sido apurado também qual a direcção que aquele tomaria, justamente se o condutor intentava voltar para a direita ou para a esquerda, não pode também ficar a saber-se, através de 5
uma trajectória definida, se houve ou não bom cumprimento, por qualquer dos condutores, das normas estradais. Desde logo, para saber-se se o velocípede contrariou a regra da prioridade de passagem, atenta a muito menor velocidade a que poderia deslocar-se, era de sobremaneira importante ter-se determinado em que posição no cruzamento surgiu aos olhos do motociclista (com boa visibilidade), antes do sinistro. Por outro lado, e insiste-se nas diferenças relativas da aceleração, nem sequer a perda de prioridade será tema importante para aferir da culpa. Mais importaria o desenho legal da manobra de mudança de direcção, inevitável para o motociclista, dado o perfil rodoviário. Também quanto a esta matéria nada nos diz o comprovado. E é certo que tratando-se de veículos de largura subestimável, adentro de uma trajectória legal, poderia sempre o motociclo seguir um caminho que evitasse a colisão. A maior velocidade de ponta permitir-lho-ia outrossim, acaso tivesse sido tomada a prudência e perícia exigíveis a um condutor normal. É perante todas estas dúvidas que nos convencemos não poder for mular-se um juízo de culpabilidade com o material apurado em audiência. 9.O art. 8/2, DL 522/85, 31.12 estende a garanti de seguro obrigatório à satisfação das indemnizações devidas pelos autores de condução não consentida pelo tomador. Ora estes respondem nos termos do art. 503/3 CC, última parte, pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo. Em caso de colisão de veículos em que resultem danos nas pessoas, e nele, em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um houver contribuído para os danos, tendo a indemnização como limite máximo o montante correspondente ao dobro da alçada da Relação, arts.506, 508 CC (Costa, Almeida, Obrigações, 34º/417; Ac. STJ, 92.10.15, BMJ 420/468. Perante a matéria provada, dadas as características dos veículos intervenientes no acidente, e as condições concretas do tráfego, deve fixar-se em 80% a medida da contribuição do motociclo. É também razoável o cálculo, apresentado pelo Ap.te na PI, quando estima o preço da dor sofrida e o quantum dos danos não patrimoniais emergentes do sinistro. Por outro lado, este tipo de danos é indemnizável, em face da 6
correlação que há-de fazer-se entre o disposto nos arts. 499 e 508 (483/1, 495, 496) CC. Mas o valor da bicicleta cai para PTE 12 000$00. Também o limite fixado no art. 508 CC só funciona depois de determinado concretamente o montante da indemnização que seria devida, abstraindo desse limite, Ac. STJ, cit. Por isto mesmo a indemnização pedida deve fixar-se pelo montante de 2 012 000$00 E a condenação com base em responsabilidade civil fundada no risco cabe na estruturação dada à causa de pedir. Na medida do que ficou exposto, procedem portanto as conclusões do recurso. 10.Vistos os arts. 483/1.2, 499, 503/3, 506 e 508 CC, decidem revogar a sentença recorrida e substitui-la por esta decisão em que se condena a Apelada no pagamento ao apelante de uma indemnização no montante de 2 012 000$00. 11. Custas na proporção. x Voto separado Não se tendo provado que um ou outro dos condutores deu causa, por culpa dele, ao acidente, ainda assim não funciona de imediato a regra geral de repartição do ónus da prova, ou o sistema de ressarcimento pelo risco. Conduzindo o motociclo outrem que não o proprietário, ou o detentor, aquele que normalmente tira o benefício do veículo (o segurado in casu), mesmo tendo-se adquirido a convicção de este não ter sido ouvido nem achado na decisão de o pôr a circular, teremos de investigar se a problemática da culpa presumida não se instala ainda no plano da boa decisão da 7
causa. Surge então a questão do entendimento sistémico a dar ao art. 8º DL 522/85, 31.12. E ao alargar-se a posição de garante da Seguradora aos casos de condução não querida pelo segurado, com o respectivo direito de regresso sobre terceiros, e remetendo-a ainda a lei para um especial papel processual em que litiga desacompanhada, parece que no âmbito do Seguro obrigatório, foi posta entre parênteses a norma do Código Civil que regulamenta a presunção de culpa, indexada à relação comitente/comissário. Se assim é não compete à Apelante o ónus de provar a culpa do condutor do veículo segurado, mas à Seguradora ilidir a presunção, como não aconteceu. O condutor do motociclo é portanto responsável pelos danos emergentes do sinistro a título de culpa presumida, que é culpa para todos os efeitos e desencadeia o sistema de ressarcimento correspondente; a Seguradora tem a posição de garante, ex lege; o usurpador da direcção efectiva (terceiro não autorizado) pode muito bem ser compelido à mais difícil posição do comissário, não há razão para menos. Por esta via, procederiam então, de pleno, as conclusões da Apelante, tanto mais que se concorda, como no vencimento, com a correcta avaliação dos danos emergentes do sinistro, excepto quanto ao valor comprovado do velocípede-a-pedais. 8