Por que se (in)disciplina o desejo?
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- Igor di Azevedo de Andrade
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1 Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 Por que se (in)disciplina o desejo? Justina Franchi Gallina (Associação Educacional Vale do Itajaí Mirim ASSEVIM) Palavras-chave: Desejo; Agência; Judith Butler ST 36 Vulnerabilidade e condições lingüísticas de sobrevivência Os estudos de gênero valem-se de inúmeras categorias de análise para discutir as construções culturais coletivas que levam os indivíduos a caracterizarem-se como masculinos ou femininos. Nesse ínterim, emerge a discussão sobre o sujeito e a maneira como somos sujeitadas/os a assumir posições de acordo com as estruturas padrões de sexo/gênero. Porém, a partir da ressignificação discursiva ancorada no caráter performático da linguagem, o sujeito (disciplindado pelo discurso), torna-se agente e pode transformar a realidade, dado que a ontologia é a linguagem. Partindo desses pressupostos teóricos e ancorada nas discussões trazidas por Judith Butler 1, destaco outra categoria central em sua obra, a qual sustenta o desenvolvimento de sua teoria: a questão do desejo. De acordo com Butler, o desejo foi domesticado dentro da filosofia através de várias estratégias formuladas para silenciá-lo ou controlá-lo, priorizandose uma racionalidade moral na filosofia. Mas em que circunstância a questão do desejo teria sido suscitada como categoria de estudos na filosofia? De acordo com a autora, Baruch Spinoza foi quem postulou que o desejo é própria essência do homem, sendo seguido por Hegel, para o qual o desejo é o motor da história. Ancorada nos pressupostos hegelianos de desejo e a partir do das interpretações realizadas por alguns filósofos franceses como Kojève, Hyppolite e Sartre, Butler sustenta que somos movidos/as pelo desejo, o qual é produtivo na medida em que constrói seus objetos de desejo. Dessa forma, o sujeito do desejo não precede ou contém desejo, mas é fabricado pelo trabalho do desejo 2. Em Hegel, o desejo é a busca pelo devir. Para Butler, o desejo é um ímpeto que leva o sujeito à ação e por isso necessita ser disciplinado. Assim, o sujeito constitui-se através do processo de disciplinamento e da sujeição. De acordo com Butler, o desejo pré-fixado é o desejo animal. O desejo humano é construído, por isso é considerado produtivo. Para a filósofa não há separação entre o desejo e o objeto de desejo. É justo porque há desejo que existem seus objetos de desejo. Assim, o
2 2 sujeito é agente na produção dos objetos de desejo, podendo modificá-los. É esse espaço de consciência sobre a ação do desejo que gera a liberdade para agir e para transformar. Segundo Butler, o sujeito é sempre sujeitado e o desejo é o que o leva a agir. Então de que maneira o sujeito disciplinado toma consciência de sua condição (de disciplinamento) para transformar-se em agente de ressignificação? Qual é o lugar do desejo nesse processo? Se o sujeito constitui-se em subordinação a um poder que não escolhemos (das estruturas discursivas) e essa subordinação é a condição de existência desse sujeito, como a sujeição pode converter-se em uma forma de agência? O sujeito unificado, com sua vida filosófica unificada tem servido de suporte à filosofia desde Platão e Aristóteles. Sem um sujeito com desejos consistentes, a vida moral 3 permanece indefinida. Porém se o sujeito é ambíguo, isso dificulta sua localização e nomeação dentro das estruturas discursivas. O nomear define e coloca um limite ao contorno dos sujeitos, dificultando sua conversão em sujeitos agentes. De acordo com Butler, a agência é a apropriação da sujeição para a autodisciplina. Assim, o desejo constrói e é produtor da agência. Mas como o sujeito pode ser entendido como um ser dotado de agência se ao constituir-se passa pelo processo de sujeição, compreendido como a privação da agência? Somos herdeiros de uma linguagem que determina limites arbitrários para a conformação de sujeitos coerentes, perfeitamente sujeitados a uma estrutura. A sujeição consiste precisamente em esa dependencia fundamental de un discurso que nunca eligimos pero que, paradójicamente, inicia y sostiene nuestra agencia 4. Pensando nas categorias sexo e gênero, os discursos nos confinam a uma inteligibilidade que rechaça a possibilidade da ambivalência, da ambigüidade. Como a linguagem é um jogo regrado, somos sujeitados a assumir determinadas posições para tornarmos sujeitos inteligíveis 5. Entretanto, como na percepção de Butler o desejo é algo que nos faz mover e que tem a possibilidade de criar e modificar seus objetos de desejo, podemos ressignificar a linguagem rompendo sempre com os significados pré-fixados dos sexos e gêneros, entre outras categorias. A teoria pós-estruturalista centra suas críticas no modelo Iluminista de sujeito racional e autônomo e coloca seu foco na linguagem, compreendendo-a como instauradora de realidades. A partir dessa perspectiva compreende-se que a linguagem é constituída por um conjunto de ações que possuem caráter performático. Utilizando-se da assertiva proposta por John Austin ( Dizer é fazer 6 ), Butler afirma que ao nomear o desejo, o estamos constituindo. Através da performatividade da linguagem é o sujeito quem fala; é ele o ator a ação. Como a linguagem é a realidade, não existe nada fora dela.
3 3 A linguagem é uma estrutura que circunscreve nossas ações, vivências e possibilidades a algo previamente estruturado, definido, condicionado, sujeitado. Quando nascemos, já somos sujeitados a um sexo e a um gênero estipulados a priori (heterodesignação), ou seja, antes de tomarmos consciência de nossa sujeição e termos a possibilidade de nos tornarmos agentes. A sujeição é necessária para a ressignificação e para a agência. Esse espaço de consciência gera a liberdade para agir e para transformar a realidade (através da linguagem). Um exemplo de ação voluntária de ressignificação positiva da linguagem é a utilização para designar indiscriminadamente interlocutores de quaisquer sexos e/ou gêneros. Esse símbolo procura não privilegiar um gênero em detrimento do outro e intenciona diminuir as hierarquias entre os opostos binários. Porém, ao ressignificarmos as palavras constantemente estamos rompendo com o propósito da definição que é enunciar com exatidão o significado de uma palavra fato que gera resistências a essa prática. Os limites dos discursos taxativos impõem fronteiras e dificultam o processo dos sujeitos (sujeitados) converterem-se em sujeitos agentes (que ocorre somente a partir do momento que reconhecemos nossa sujeição). A linguagem tende a nos aprisionar e a nos condicionar a práticas, atitudes e gestos já prescritos. Pensando na linguagem como ontologia e no desejo como algo produtivo, a agência do sujeito pode levar a transformações nessa estrutura discursiva limitante, a partir das desestruturações através de práticas do cotidiano que Butler confere o caráter de performance, principalmente porque nos obriga a repensar as nomenclaturas existentes na linguagem que nos aprisionam. O uso contínuo de um significado vai cristalizando seus termos, mas nunca o fecha. É essa possibilidade de ressignificação dos termos que busca Butler, entre outras, através de uma escrita subversiva. De acordo com Butler, o desejo é disciplinado pelo discurso e é indisciplinado através da constante ressignificação da linguagem. Assim, umas das formas contemporâneas de colocar-se em prática esse pressuposto de Butler são as identificações dos sujeitos queers. No contexto desse trabalho, entendo por queer tudo aquilo que se manifesta com uma postura desafiante à heteronormatividade e que por desestabilizar essa lógica dos opostos binários, é rejeitada, enxergada como desvio, estranhamento. Dessa forma, o termo não pode ser compreendido como sinônimo das palavras gay ou homossexual, que se referem às práticas/desejos homoeróticos. Queer é um termo político que procura desafiar o patriarcado heteronormativo, estando ou não presentes as relações afetivas e/ou sexuais entre pessoas do mesmo sexo/gênero.
4 4 As identificações queers são auto-construídas, portanto, mutáveis, e se opõem à padronização e ao essencialismo de uma única identidade a qual vêem como uma forma de dominação cultural que tenta impor um padrão à diversidade das experiências afetivas e sexuais. Resumidamente, a tônica da teoria queer, representada por essas identificações, reside no fato de congregar toda uma comunidade que se opõe, de diferentes maneiras, à heterossexualidade compulsória previamente estabelecida e a qualquer tipo de enquadramento identitário limitador. Sua contingência parece ser impossível de ser identificada justamente porque seus significados podem adquirir uma substituição discursiva cujos usos não estão previamente estabelecidos. Essa indeterminação e mobilidade na concepção das identificações constituem noções férteis que remetem ao questionamento da própria estrutura da linguagem, que muitas vezes nos aprisiona em nossas formulações e posicionamentos. Partindo da assertiva de que toda a palavra ou identidade impõe uma definição, limita os desejos e as práticas sexuais e implica em uma disciplina, assumir a identificação queer transforma o sujeito (disciplinado pelo discurso) em agente de ressignificação, através do caráter performativo da linguagem. A partir dessa perspectiva, através das ressignificações constantes dos termos podemos transformar a realidade, dado que a ontologia é a linguagem. E sendo a linguagem um jogo com regras implícitas, só podemos transformá-la através dela mesma. Por isso não há um local de modificação fora da linguagem, assim como não há um local de desestabilização da heteronormatividade compulsória fora de um devir performático de sexos, gêneros, práticas e desejos sexuais, contemplados pelas ressignificações constantes dos sujeitos identificados como queers. Na lógica heteronormativa, o desejo é disciplinado no sentido de construir objetos coerentes à permanência dualista dos pares homem/mulher, masculino/feminino, homossexual/heterossexual, etc. Porém, muitos sujeitos como os identificados com a insígnia queer indisciplinam seus desejos ao romperem constantemente com essa ordem. A agência refere-se a esse aspecto ativo de um sujeito. Entretanto, essa constante ressiginificação do desejo para criarmos outros objetos de desejo gera a quebra de uma ordem que direciona a um desejo único reiterado, gerando uma zona de indefinição, um não-lugar. No pensamento de Butler em Subjects of Desire, aparentemente o desejo é a única categoria que parece não se esgotar nos limites da linguagem, podendo ser transformado infinitamente em novos objetos de desejo, dado que nunca estamos satisfeitos/as. Assim, o desejo na concepção de Butler é algo pré-lingüístico, metafísico, sendo também anterior à construção da linguagem que o subscreve.
5 5 1 BUTLER, Judith. Subjects of Desire. New York: Columbia University Press, Entretanto, é importante ressaltar que o desejo é mais que seus objetos de desejo, por isso sempre surgem outros objetos que se desejam porque não se tem. 3 Para Emmanuel Kant, a moralidade é uma imposição sobre uma personalidade resistente e mais que expressar a autonomia do sujeito moral, ela reafirma a necessidade de uma autoridade externa. 4 BUTLER, Judith. La vida psíquica del poder. Teorías de la sujeción. Feminaria. Año X, n 22/23. Buenos Aires, julio de 1999, p Entendo a inteligibilidade de gênero como a exigência de uma coerência entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. 6 AUSTIN, John. How to do Things with Words. Oxford: Oxford University Press, 1975.
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