PN 97.95 Acordam no Tribunal da Relação de Évora 1., Analista Programador, residente na, em Setúbal, intentou, no Tribunal da Comarca, a presente acção declarativa de condenação com processo sumário contra o a, comerciante, residente na, em Setúbal, para o fazer convencer a entregar-lhe a quantia em numerário de 740 000$00, acrescida de juros moratórios contados de 92.07.17, até inteira satisfação, fundado em que tendo ambos chegado a acordo quanto à obtenção dum empréstimo bancário daquele montante destinado a cobrir o preço de diverso equipamento de informática que ficaria ao serviço do R., logo depositado o dito montante na conta bancária deste último e passado a ser debitadas mensalmente as prestações respeitantes ao juro e ao reembolso do capital mutuado na conta bancária do A., o R. deixou de contra-entregar-lhe os montantes respectivos enquanto utiliza para si e por si só o equipamento informático recebido de terceiro que em nada interessa ou alguma vez interessou ao A. 2. O R. contestou afirmando que na verdade lhe foi creditado o produto líquido de um empréstimo bancário no montante do pedido, contraído embora pelo A. para custear parte apenas do preço de equipamentos informáticos que lhe havia encomendado e que recusou receber com o pretexto de já não necessitar dele, mas que tem tido à disposição. 3. Na resposta o A. manteve a posição assumida na p. i. 4. Com esta e com a contestação foram juntos documentos: 1
a) factura pró-forma emitida pelo R., em 92.07.11, e dirigida ao A., respeitante a diverso material informático (descriminado) com o preço global de 919 880$00 (incluindo IVA); b) carta do R. para o A., datada de 92.09.23, dizendo respeito à factura pró-forma antecedente, da qual se retira "... a 17 de Julho de 1992 lhe foi aprovado o processo de empréstimo para a aquisição de material informático... com base na factura mencionada em epígrafe...; [ na] mesma data... prescindiu da respectiva entrega do material constante da factura... tendo, posteriormente, solicitado o reembolso... da quantia [mutuada]: em resposta a [esta] solicitação... foi informado de que estava eu na disposição de lhe restituir a quantia que me foi creditada, embora a tal não seja obrigado, sob forma de prestações mensais não inferiores a pte. 25 000$00 até à sua liquidação total, solicitando ainda que para o efeito... assinasse uma declaração de que prescindia da entrega do material e onde eu me comprometeria a efectuar as entregas mensais referidas... : continuo a aguardar vossa decisão..., entenda-se por decisão... proceder à assinatura da declaração... ou requerer por escrito a entrega do equipamento constante da factura pró-forma... procedendo para o efeito ao depósito na minha conta... da quantia de 179 880$00... que corresponde à diferença entre o total da quantia que me foi creditada... e o total da factura". 5. Perante a matéria alegada pelas partes e o que resulta do conteúdo aceite dos documentos transcritos, foi elaborado saneador sentença no qual se deu como assente a seguinte matéria de facto: a) o A. é Analista Programador, dedicando-se à criação e comercialização de programas informáticos e afins; b) o A. concordou com o R. em contrair o empréstimo no montante de 740 000$00 junto do BTA, para adquirir material informático; c) no dia 92.07.17, o BTA aprovou o empréstimo em causa e creditou a quantia de 740 000$00 na conta do R.; 2
d) na sequência deste empréstimo, na conta do A. passou a ser debitada, todos os meses, uma prestação mensal correspondente; e) em 92.07.17, o A. recusou a entrega do material informático para que lhe foi concedido o empréstimo, reclamando de seguida o pagamento dos valores debitados pelo banco na sua conta; f) em 92.09.13, o R. enviou ao A. a carta junta com a p. i. cujo conteúdo é, no essencial, o seguinte: "... recordar-se-á também que em mesma data [92.07.17] V. Exª prescindiu da respectiva entrega do material constante da factura pró-forma nº 31/91, tendo solicitado posteriormente o reembolso da supra mencionada quantia. Em resposta à v/ solicitação, V. Exª foi informado de que estava eu na disposição de lhe restituir a quantia que me fora creditada, embora tal não seja obrigado, sob forma de prestações mensais não inferiores a pte. 25 000$00, até à sua liquidação total, solicitando ainda que para o efeito V. Ex.ª assinasse uma declaração em que prescindia da entrega do material, e onde eu me comprometeria a efectuar a entrega mensal das referidas prestações, declaração essa que V. Ex.ª possui respectivo original para que viabilize, através da sua assinatura, o procedimento a que me proponho". 6. Com base neste material, comprovado segundo a decisão recorrida, foi julgado improcedente o pedido do A. já que se tratou de uma compra e venda sem motivo válido de rescisão, obrigando portanto ao pagamento do preço, correspectivo do senhorio sobre o material informático encomendado ao R. e que este pôs à disposição do A. 7. Este interpõe a presente apelação, recurso recebido na espécie e com o efeito da lei, nada obstando ao conhecimento do objecto do mesmo, corridos que são os vistos legais. 8. Concluiu: a) o A. apresenta a sua versão de que nada quis comprar ao A. e de que nem um nem outro quiseram qualquer contrato de compra e venda entre si; 3
b) o R. contesta dizendo que houve entre ambos um contrato de compra e venda; c) os elementos cariados para os autos não permitem uma decisão de fundo ainda que do documento junto pelo A. e não impugnado pelo R. (faz prova plena art.º 376 CC) se possa extrair alguma fundamentação para a pretensão do A.; d) assim, e a não se entender que a pretensão do A. deve desde já proceder, devem os autos prosseguir com o saneador e demais termos; e) a decisão recorrida violou o disposto nos art.º s. 510/1 c., 511 e 668/1 c., d. CPC. 9. Não houve contra alegações. 10. A decisão recorrida arranca da noção de contrato de compra e venda dada no art.º 871 CC - "compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço", para concluir, frente à matéria que considerou provada, "dúvidas não subsistem de que entre A. e R. foi celebrado um contrato de compra e venda de material informático". Pelo contrário, o recorrente diz não haver acordo entre as partes donde se possam retirar factos alegados e aceites por ambas que subsumam a perfeição da compra e venda. 11. Decerto que nem implicitamente os factos dados como provados na decisão recorrida integram a compra e venda pretendida pelo R. e negada pelo A.. Na verdade, não está estabelecido que o A. se tenha comprometido a entregar ao R. o preço do material informático para que este passasse a pertencer-lhe, dele passando a ser dono e senhor. Ora só este núcleo fundamental da facticidade é que poderia impor a solução dada ao pleito na 1ª instância. 12. Todavia, pode pôr-se a questão, na sequência doutro tópico da justificação do saneador sentença recorrido - aquele que diz respeito à não vinculação do Juiz à qualificação jurídica dos factos alegados por banda de qualquer das partes - de saber se ainda assim será possível, perante o material trazido à discussão pelo A., ter como assentes outros factos que, então esses, integrem a compra e venda defendida pelo R. 4
13. Basicamente a posição do A. é esta: nenhum queria comprar e vender fosse o que fosse, ambos pretendiam que o R. obtivesse um financiamento bancário, informado com uma factura de favor respeitante a um fornecimento ao A. de material informático por parte do R. que, depois, beneficiaria da utilização exclusiva do mesmo, comprometendose a cobrir mensalmente o débito bancário das prestações referentes ao saldar do mútuo. A compra e venda teria sido portanto simulada e nula, oponível entre os simuladores por haver escrito documental, subscrito por um deles (o documento referido em 4. b)). E nula a compra e venda, subsiste o mútuo bancário (res inter alios acta), devendo a quantia mutuada reverter a favor daquele a quem o banco quis beneficiar tanto que lhe exige directamente o reembolso. 14. Independentemente da questão, que foge ao objecto do recurso, de saber se estamos ou não perante um contrato trilateral em que A., banco e R. intervêm em pé de igualdade, exigindo o mutuante que o produto do empréstimo fosse creditado ao fornecedor das mercadorias e o reembolso corresse por um efectivo beneficiário-outro da entrega do material informático, sistema que normalmente implica a aceitação de uma taxa de juro diferenciada e mais favorável para o cliente que a normalmente praticada no comércio bancário, certo é que o problema posto pelo A. não depende apenas da hermenêutica do documento que juntou com a p. i., posto que ambos os litigantes lhe dão sentido e intenção diversas. 15. Não pode portanto ter-se por assente matéria que dê base a uma decisão conscienciosa no saneador. A lide terá de prosseguir não tanto com o objectivo de se fazer a prova do perfil exacto do consenso estabelecido entre A. e R., mas do verdadeiro sentido do documento subscrito por este último que no entanto só poderá estabelecer-se através da maior ou menor medida de adesão real que possa nele ser surpreendido, segundo a intenção do subscritor (vd. art.º s 242/2 e 394/1.2. CC). 16. Deste modo, porque procedem as conclusões do recorrente no sentido da solução apontada, o que prejudica do ponto de vista lógico a apreciação duma eventual imediata 5
procedência do pedido, visto o disposto no artº510 CPC, decidem revogar a decisão recorrida para que se siga a elaboração de especificação e questionário em ordem ao debate oral da causa, segundo os parâmetros acima discutidos. Custas pelo recorrido. 6