Assédio moral: um delicado campo de batalha em xeque

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1 Assédio moral: um delicado campo de batalha em xeque Professora Magda Vulcano alerta para a necessidade de evitar a banalização das ações movidas por trabalhadores Fábio Gallacci DA AGÊNCIA ANHANGUERA gallacci@rac.com.br Quando a saudável relação entre as pessoas no ambiente de trabalho principalmente, envolvendo chefe e subordinado cede espaço para ofensas, perseguições, isolamento e humilhações, cria-se aí um delicado campo de batalhas, em que todos saem derrotados. Cansados de certas situações e buscando ser mais conscientes de seus direitos, muitos trabalhadores brasileiros têm procurado cada vez mais a Justiça com ações por danos morais contra seus empregadores. Contudo, a professora e psicóloga Magda Senna Vulcano, que criou e implantou o Programa de Proteção às Práticas Abusivas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde atuou por cinco anos coordenando a área de Desenvolvimento da Diretoria Geral de Recursos Humanos (DGRH) da instituição, afirma que é preciso saber exatamente o que é assédio moral para evitar que uma corrida aos Fóruns provoque a banalização daquela que foi uma importante conquista trabalhista no País. Ela ressalta, ainda, que um ambiente de trabalho no qual existam abusos pode ser tóxico tanto para a saúde dos funcionários quanto para o bolso das empresas. As pessoas só querem respeito e dignidade. As consequências do assédio moral do ponto de vista psicológico são imensas, muito graves, explica a psicóloga, que também lecionou por 30 anos na Pontifícia Universidade Católica (PUC- Campinas) e, atualmente, é consultora da empresa Elos - Gestão de Pessoas ( Eu diria até que nós não deveríamos mais falar em assédio moral, mas em violência moral. O termo assédio é muito mais individualizado; o termo violência deixa claro que a responsabilidade é de todos. Vale ressaltar que aquele que assedia teve permissão para fazer isso. Então, o

2 ambiente, o clima organizacional como um todo precisa ser cuidado, comenta Magda. Ela aponta uma pesquisa que é referência no Brasil e foi realizada pela médica e psicóloga Margarida Barreto, da PUC de São Paulo/Unicamp, na qual foram ouvidos dois mil trabalhadores, entre os anos 2000 e Na pesquisa, 42% das pessoas entrevistadas disseram ter sofrido violência moral no trabalho e 60% delas garantiram ter entrado em depressão em decorrência do assédio. Quanto às mulheres, 64% delas afirmaram ter enfrentado abusos sendo que, para 12%, os problemas começaram com o assédio sexual. Leia, a seguir, a entrevista concedida pela consultora e psicóloga Magda Vulcano à Agência Anhanguera. Agência Anhanguera O que é considerado assédio moral? Magda Senna Vulcano Para que possamos compreender bem o significado do assédio moral, é importante discutirmos o que não é assédio. A questão do estresse, por exemplo. Só no limite é que ele pode ser configurado assédio. Condições de trabalho precárias, também, são normalmente confundidas com tal prática. Nesse caso, pode se chegar ao assédio se, intencionalmente, forem colocadas condições precárias para um determinado trabalhador ou grupo de trabalhadores. Avaliação de desempenho é outro exemplo. Alguns trabalhadores consideram assédio uma avaliação negativa de seu trabalho. Só pode ser considerado assédio se, nessa avaliação, o feedback for dado de maneira a humilhar o funcionário; a mostrar que ele tem menos valia ou que ele não consegue ser igual aos demais; enfim, uma prática mais discriminatória. Também é importante salientar que tudo isso deve ocorrer de forma prolongada para se configurar o problema. Um único ato não pode ser considerado assédio, a não ser que esse ato tenha sido muito violento e que possa ser verificado pelos danos psicológicos à pessoa. Um único ato até pode ser configurado, já previsto em lei, como dano moral. Mas, no caso do assédio, o problema precisa ser sistemático, por um período considerável de tempo. O assédio moral é um tipo de violência que se concretiza em intimidação, em ironias, em humilhação contra o trabalhador como forma de controle sobre ele.

3 Agência Anhanguera - Algumas pessoas, então, não entendem o que é realmente assédio moral? Magda Senna Vulcano - Há, hoje, infelizmente, uma confusão e, por isso, uma banalização dessa ferramenta que o trabalhador conseguiu a duras penas. Isso nos preocupa muito. Qualquer coisa está sendo vista como assédio e isso é ruim para o próprio trabalhador. Ele vai banalizar a questão e, consequentemente, poderá perder a possibilidade de ter o reconhecimento da Justiça quando de fato for vítima de um assédio real. Agência Anhanguera - Qual o motivo dessa questão estar tão em voga? Magda Senna Vulcano - O assédio moral não é uma prática abusiva que está surgindo no momento atual. A questão é tão antiga quanto a própria divisão do trabalho. Mas a manifestação desse problema jamais se deu de forma tão contundente quanto hoje. Então, qual é a razão disso? Basicamente, três fatores têm se mostrado como significativos. O primeiro é que está havendo um destaque maior do tema na mídia, nos meios jurídicos e nos políticos. O segundo é que tem se popularizado um prognóstico realizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que aponta as consequências que nós vamos ter nos ambientes de trabalho deteriorados daqui a duas décadas, naqueles locais que não promovem a qualidade nas relações interpessoais. São as depressões, as angústias e os danos psicológicos graves se acumulando. Temos observado, nas últimas pesquisas, que os problemas psicológicos têm respondido por muitos dos afastamentos pela Previdência Social. O terceiro é que há, hoje, uma pressão muito grande no mundo corporativo. O mundo profissional se impulsiona pela urgência. É tudo para ontem. O trabalhador não tem tempo para o diálogo com o seu colega de trabalho. Não há tempo para escutar o outro; para permitir encontros verdadeiros e para valorizar o companheirismo, a solidariedade. Então, vivemos em uma sociedade na qual cada ser humano é um adversário do outro. É isso que essa globalização, essa competição tem feito e que está mudando o paradigma nas relações de trabalho. O individualismo exacerbado reduz as relações afetivas e sociais saudáveis. O lema é: cumprir metas. Vale lembrar que um dos fatores do assédio é exigir do trabalhador metas superiores àquelas que ele é capaz de

4 cumprir. Mas a competição é tão acirrada, que se joga para o trabalhador essa pressão automaticamente. Além disso, não podemos esquecer que é preciso ter produtividade e qualidade, outra marca que configura as relações de trabalho hoje. Esse cenário é oportuno para a humilhação, para a desqualificação e para o constrangimento do trabalhador. São os ingredientes básicos para a questão do quadro de assédio moral. Agência Anhanguera - A senhora diz que o assédio é a doença da solidão. Por quê? Magda Senna Vulcano - Com a pressão, o trabalho vai perdendo o significado para o indivíduo. Ele acaba isolado. Começa a se sentir inútil e, o que é pior, culpado por essa situação. Vai se desqualificando como pessoa até se tornar um objeto e não suportar mais. Tudo isso é levado para fora. Ele não separa o mundo do trabalho do pessoal. Fica agressivo; somatiza muitas doenças, como a hipertensão, a obesidade ou a magreza excessiva. Vai sofrendo o que nós chamamos de psicoterrorismo até sentir a necessidade incontrolável de pedir demissão. Esse isolamento, até o momento da saída, eu chamo de doença da solidão. Agência Anhanguera - Aquela história de que para conhecer uma pessoa verdadeiramente basta dar poder a ela faz sentido? Magda Senna Vulcano - O poder, realmente, é algo muito complexo; muito difícil de administrar. As relações de poder, normalmente, trazem conflitos. Se você, numa situação de comando, não souber administrar o conflito, pode passar a adotar uma gestão por opressão, pela perseguição, e acaba indo buscar aquele que é mais fraco e, por intermédio dele, dá uma lição coletiva. O grupo, então, pode ter uma reação de medo, de recuo. Os indivíduos passam a não ter resistência; eles recuam mesmo. Isso é muito triste... Normalmente, o coletivo não costuma apoiar aquele que está sendo assediado; o mais fragilizado.

5 Agência Anhanguera - Quais as áreas mais suscetíveis ao assédio moral? Magda Senna Vulcano - Embora todas as áreas sejam suscetíveis, pesquisas apontam a área da comunicação, principalmente, o jornalismo. Apontam, também, para a área da Saúde; as relações de trabalho, por exemplo, dentro dos hospitais são tensas. A luta de classe que ocorre dentro dessa área é bastante séria e preocupante. A Educação, também, é uma área problemática, com o professor sendo oprimido por resultados e contando com pouquíssimas possibilidades de atingir essas metas por causa das circunstâncias sociais em que ele está inserido. Não podemos nos esquecer das instituições financeiras. Nessas áreas de atuação, o índice de absenteísmo passa a ser altíssimo. As pessoas vão perdendo o sentido do trabalho e o seu prazer de estar ali. Agência Anhanguera - Sendo assim, há proteção legal para as vítimas? Magda Senna Vulcano - A legislação no Brasil sobre esse tema ainda está em fase de construção. Ainda não há uma lei de âmbito nacional relacionada a isso. Temos diversos municípios já com leis, mas que cobrem apenas a questão do funcionalismo público, no caso, o municipal. Americana, Bauru, Campinas e São Paulo têm legislação. No âmbito estadual, Rio de Janeiro e Sergipe têm leis próprias. Em outros estados, a questão está em tramitação. O Estado de São Paulo não tem. No cenário federal, uma proposta de alteração do Código Penal está em curso prevendo a questão do assédio moral, mas ainda está em propositura. Apesar disso, se o trabalhador se sentir assediado ou injustiçado, ele tem direitos e deve buscá-los. Só insisto que ele não deve banalizar a questão do assédio. É importante que ele tenha provas; que conheça o que é assédio e que identifique quais são os momentos em que ele está sendo assediado realmente. Se ele estiver muito fragilizado por causa do assédio, é preciso que busque ajuda psicológica para se fortalecer e, então, entrar na empreitada de buscar seus direitos. Não é preciso, necessariamente, ter testemunhas. Depende muito do ato ocorrido e da forma como ele foi praticado.

6 Agência Anhanguera - Do ponto de vista do empregador, o que é preciso fazer, então? Magda Senna Vulcano - Eles devem criar programas de prevenção. Programas educativos de conscientização com seus líderes. É preciso que as organizações entendam que, se elas abrem o caminho para a prevenção, os colaboradores ficam mais motivados, porque vão entender que há o interesse em outras formas de administração e não, apenas, naquela antiga, de opressão. É importante que as organizações se eduquem. Se nelas houver um espaço para ouvir o indivíduo de forma qualificada, poderão evitar graves conflitos. A existência de conflitos é saudável desde que saibam administrá-los. Agência Anhanguera - Quando a questão do assédio moral ganhou força no Brasil? Magda Senna Vulcano - A questão do assédio moral começou a ser abordada no Brasil com Margarida Barreto em Ela realizou a pesquisa já mencionada aqui. Nesse trabalho pioneiro, Margarida elaborou o conceito do que é o assédio e levantou estatísticas importantíssimas. Isso gerou uma série de outros trabalhos que deixou psicólogos e juristas muito preocupados com a questão. Infelizmente, só as organizações parecem não estar muito preocupadas com isso. Eu acredito que ficaria muito mais barato e, acima de tudo, mais ético para as organizações se elas educassem e desenvolvessem comportamentos saudáveis. Agência Anhanguera - Em uma organização em que as pessoas são respeitadas, o ambiente e os resultados tendem a ser melhores? Magda Senna Vulcano - Uma organização com um ambiente melhor é muito mais produtiva. As pessoas se sentem bem ao trabalhar para ela, porque percebem que há respeito pelo seu trabalho. Hoje, é difícil haver companheirismo nas relações de trabalho, porque o mercado está cada vez mais restrito e competitivo.

7 Agência Anhanguera - O bullying pode ser comparado com o assédio moral? Magda Senna Vulcano - Na escola, hoje, o bullying é um comportamento muito mais real e frequente no cotidiano do que se imagina. Ele nada mais é do que uma forma de assédio dentro das relações interpessoais do pré-adolescente e do adolescente. Não há como negar que a internet facilita esse tipo de agressão/violência. Isso, no universo do jovem, é uma marca muito danosa para a autoimagem que está sendo formada. Nos dois casos bullying e assédio temos provas claras de como as relações interpessoais estão deterioradas e precisam ser discutidas e trabalhadas hoje em dia. Agência Anhanguera - Há mais algum tema que a senhora gostaria de abordar nesta entrevista? Magda Senna Vulcano - Não poderia terminar essa entrevista sem enfatizar que, nas últimas décadas, deu-se muita atenção apenas à competência técnica e nenhuma à formação da competência interpessoal. Ser profissional que faz a diferença no cenário atual significa desenvolver-se nessas duas competências. As organizações precisam ter uma visão integrada e sistêmica do ser humano na sua relação de trabalho. (Jornal Correio Popular Caderno Cidades - Campinas, 5 de setembro de 2010)