VANESSA CASTAGNA THE RAVEN - O CORVO FERNANDO PESSOA E CABRAL DO NASCIMENTO TRADUZEM EDGAR ALLAN POE
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- Vítor Back Sousa
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1 Dentro ua intensa actividade de tradutor ue CabraI uo Nascimento, quase completamente consagrada à ficçao narrativa, especialmente relevante resulta a "recriaçao" do célebre poema The Raven de Edgar Allan Poe. A traduçao proposta por Cabrai do Nascimento aparece apenas na ultima versao de Cancioneiro (1976), com o subtitulo elucidativo Recriaçiio em portuguès do poema de Edgar Allan Poe l. O termo "recriaçao" parece afastar de imecliato o poema portugues do originai, apresentando aquelc como emulaçao mais do gue como traduçao deste. Mas um confronto dos dois textos acaba por contradizer essa interpretaçao, pois a traduçao de CabraI do Nascimento, longe de pretender criar um novo poema inspirado no de Poe, de facto é urna tradlh;ao bastante fiel aos prindpios e propòsitos em que se rege o texto fonte. Por isso, o terrno "recriaçao" devera ser interpretado como tentativa de criar na lingua portuguesa um poema o mais pr6ximo possivel do originai, tanto no plano semantico, como nos planos métrico, rimatico e fonoprosòdico. Na realidade The Naven nao é o unico poema traduzido por Cabrai do Nascimento, que, aliàs, do pr6prio Poe de facto traduziu mais poemas. A traduçao de The Raven aparece pela primeira vez na parte antol6gica do volume dedicado ao poeta norteamericano, intitulado Edgar Poe (1972), iuntamente com as traduç6es de Annahel Lee e Ulalume'. Portanto O Corvo incluido no Cancioneiro de 1976 nao tera sido traduzido por escolha aut6noma, mas sim por compromisso editorial, embora a inclusao deste poema e a exclusao dos outros seiam significativas quanto à relevancia dada em especial a esta "recriaçao". A versao que Cabrai do Nascimcnto deu dos poemas compete idealmente com outra, anterior de cerca de cinquenta anos e da autoria de um poeta (também tradutor) com quem periodicamente Cabrai do Nascimento parece ter tido de confrontar-se, ou seia fcrnando Pessoa. VANESSA CASTAGNA THE RAVEN - O CORVO FERNANDO PESSOA E CABRAL DO NASCIMENTO TRADUZEM EDGAR ALLAN POE l V jo;!o Cabrai ùo Nascimento, Obra Poética, Porto, Ecliçòes ASA, 2003, pp hip,ar Poe (versao de Cabrai do Nascimento c Vergllio Godinho), Lisboa, Editorial Verbo, 1972, pp. KO-K8. Ao lad() da traduçao de Cabrai do '4ascimento c' publicado o texto originai. 95
2 Pessoa tradllzira o Corvo de Edgar Allan Poe e publicara-o em 1925, na revista de arte Atbena, indicando que se tratava de urna versao "ritmicamente conforme com o originai" :l, A traclm;ao proposta por Cabrai cio Nascimento também parece orientada no sentido de urna reproduçao ritmica e estrutural do texto originai, com especial atençao para o plano fonopros6c1ico; no entanto a fidelidade no plano semàntico tao-pouco é desclliclada, mantendo-se ao longo do poema um bom equilibrio entre os dois aspectos " A divisao em dezoito estrofes de seis versos (cinco mais refrao) é mantida, ao passo que a homogeneidade dos versos nao é completa, embora se mantenha o recurso a versos de quinze silabas, O verso pode dividir-se em hemistiquios de sete e oito respectivamente, ou vice-versa, As estrofes do poema de Poe respeitam o seguinte esquema métrico e rimatico: A - A B C C C B B B - Como se pode notar, ha rimas externas e medianas bem definidas, que marcam esquemas de paralelismo que se repetem em todas as es trofes, Por um lado, as rimas externas constituem urna invariante fonopros6dica ao longo do poema; por outro, as rimas internas variam de estrofe para estrofe e influenciam o seu ritmo 'tanto num sentido horizontal (no mesmo verso), como num sentido vertical (na rima mediana dos versos terceiro e quarto), A rima externa aparece em todos os versos, à excepçao do primeiro e do terceiro, e abrange inclusivamente o refrao, Sendo este um elemento constante ao longo de todo o poema, a respectiva rima externa também se mantém sempre a mesma, Tanto Pessoa como Cabrai do Nascimento se esforçam por reprocluzir este com~ plexo esquema e ambos optam por manter tanto as rimas externas como as internas, menos a do quarto verso. É de notar, na traduçao de Cabrai do Nascimento, que em casos pontuais a rima interna pode estar deslocada em relaçao ao efectivo fim do primeiro hemistiquio, como se da no terceiro verso da estrofe IX: Pois hei-de crer que eu, um ser humano, possa ter j Edgar A11an Poe, Q Corvo e Qutros l'oemas, Lisboa, Ulmeiro, 1989, pp, 7-1L Sobre Fernando Pessoa tradutor de EA Poe cfr. também Idem, The Raven, Ulalume, Annabel Lee nella traduzione di Fernando Pessoa (ve1:çioni italiane di Antonio Bru11o, Gabriele Baldini, Elio Chinol), Torino, Einaudi, 1995 e Arnaldo Saraiva, Fernando Pessoa - Poeta 7hzdlltor de Poetas, Porto, Lello, 19%, Para urna reflexao sobre as possibilidades de traduçao do poema dc E,A l'oc para urna lingua romanica, cfr. Silvia Carnpanini, "La traduzione poetica dall'inglese iii italiano: Quot the Raven «Neverrnorc,,", in Traduzione, società e cultura, n,o 1, Udine,
3 onde, no entanto, essa irregularidade é compensada pela duplicaçao da rima, que ocorre entre crer, ser e ter. O refrao, eixo centrai do poema nas intençoes do proprio Poe, distingue-se pela brevidade e por um marcado efeito sonoro. Tanto Pessoa como CabraI do Nascimento recorrem a um verso de oito silabas, rematado pela palavra mais. A abertura sugericla pela vogai a contrasta com o efeito melancòlico evocado pelo more que encerra toclas as estrofes; mas pelo menos o nada mais e mmca mais que se sucedem nas duas traduç6es portuguesas compartilham com as combinaçoes do originai que incluem more um efeito de persistencia e de prolongamento do som, em virtude dos sons nasais e do ditongo final. O nevermore no texto fonte surge como desfecho a partir da oitava estrofe, depois do aparecimento do corvo na estrofe anterior. Das estrofes iniciais, seis concluem-se com nolhing more e uma com evermore. Pessoa preselva a distribuiçao das trés variantes, traduzindo-as, respectivamente, com nunca.mais, nada mais e jamais. Cabrai do Nascimento opta por uma distribuiçao mais livre, isto é, opta por traduzir o nevermore como nunca mais, com uma excepçao na estrofe XIII e no verso final, onde opta porjamais. Na traduçao de CabraI do Nascimento, o nunca mais ocorre também na segunda estrofe, em correspondencia do ingles evermore, mas nesta ocorrencia é introduzido por pra. A decisao de recorrer aojamais noutras estrofes poderi ser interpretada como urna tentativa de compensaçao, que porém acaba por alterar a frequencia de cada variante. No entanto a variante no verso tìnal do poema, apos uma sequencia de repetiç6es, produz um efeito de surpresa, embora parcialmente anunciada na estrofe XIII, onde o jamais aparece pela primeira vez. Mais irregular, em ambas as traduç6es, resulta a reproduçao de aliteraçoes, que no poema de Poe sao muito frequentes, sobretudo na primeira parte; nao faltam, todavia, exemplos de traduçao bem sucedida desse ponto de vista. Em certos versos, a versao de Pessoa mantém o recurso maciço à aliteraçao ao passo que CabraI do Nascimento descuida este aspecto; noutros acontece o inverso. Assim, por exemplo, no quinto verso da nona estrofe do poema originai hà uma densa sucessao de Oclllsivas tanto surdas como sonoras: Eird or beast upon the sculptured bust above his chamber door Ao traduzir este verso, Pessoa propoe uma série, ainda que menos densa, de aliteraçoes, dada sobretudo pela repetiçao da oclusiva bilabial sonora e das fricativas surdas IsJ e Ifl: Ave ou bicho sobre () busto que hà por sobre seus umbrais A traduçao de Cabrai do Nascimento deste ponto de vista, neste caso, é menos eficaz, nao obstante a repetiçao da vogai [u] ou semivogal [w], por uma lado, e a repetiçao alternada de oclusivas bilabiais surdas e sonoras: Ave ou quadrupede, num busto, em meus poisos habitllais Situaçao inverticla veritìca-se no segundo verso da ultima estrufe. O verso de Poe é: On pallid bust of Pallas just above my chamber door 97
4 Neste verso' sao de destacar urna alta frequencia de oclusivas, sobretudo bilabiais, e a paronomasia pallid / Pallas. O verso correspondente da traduçao de Pessoa neutraliza a paronomasia e abranda o efeito das aliteraç6es: No alvo busto de Atena que ha por sobre os meus umbrais Diferentemente, traduz Cabrai do Nascimento: No busto palido de Palas, em meus patrios locais mantendo a paronomasia e as aliteraç6es das bilabiais, além da repetiçao do [I]. Porém, no verso imediatamente anterior Cabrai do Nascimento afasta-se do originai, nao mantendo urna repetiçao no segundo hemistiquio (stili is sitting, stili is sitting). As traduç6es de Pessoa e de Cabrai do Nascimento sao, respectivamente: E o Corvo, na noite infinda, esta ainda, esta ainda E o Corvo, sem se afastar, continua nesse lugar Cabrai do Nascimento talvez tenha optado por urna soluçao desse tipo para nao ter de recorrer à mesma soluçao de Pessoa. Nesse sentido, é significativa a comparaçao dos termos usados para traduzir o ingles door, pois Pessoa recorre a umbrais, que mantém no final do verso, ao passo que Cabrai do Nascimento, possivelmente para evitar urna semelhança marcada entre as duas traduç6es, utiliza porta no interior do verso ou, episodicamente, taipais. Urna analise abrangente das duas traduç6es confirmara que, por meio de escolhas pontuais diferentes e soluç6es diversas caso a caso, Pessoa e Cabrai do Nascimento conseguem realizar o mesmo prop6sito, ou seja actuar a mesma estratégia tradutiva, visando um texto de chegada que mantenha o esquema métrlco e rimatico do originai. As diferenças dependem principalmente do recurso a sin6nimos diferentes dentro do mesmo verso e da deslocaçao dos mesmos lexemas ou sintagmas dentro do mesmo verso ou dentro de pares de versos 6 É o que se pode observar, dando apenas um exemplo, na segunda estrofe, nos versos terceiro e quarto (Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow / From my books surcease ofsorrow - sorrow for the lost Lenore -). As traduç6es propostas por Fernando Pessoa e Cabrai do Nascimento sao, por ordem, as que se seguem: Como eu qu'ria a madrugada, toda a noi te aos livros dada P'ra esquecer Cem vao!) a amada, hoje entre hostes celestiais 5 Sobre este verso em particular e, em geral, sobre o poema de Edgar Allan Poe e a importancia do facto de palavras parecidas fonematicamente estarem ligadas no plano semantico, cfr. em especial Roman ]akobson, "Linguistica e Poética", in Linguistica e Comunicaçao, 15a ed., Sao Paulo, Cultrix, 1995, pp Cfr. Giuseppe Sansone, "Traduzione ritmica e traduzione metrica", in Franco Buffoni Ca cura di), La traduzione del testo poetico, Milano, Guerini e Associati, 1989, pp
5 J Quanto eu ansiava o dia! Aos livros eu pcdia Me fizessem esqueccr a que os anjos, seus iguais Chamam Lenore r... ] Por um lado, nos dois casos a mençao dos livros é antecipada de um verso, assim como a referencia aos anjos; por outro, na "recriaçào" de Cabrai do Nascimento Lenore é adiada ao verso sucessivo. Cabe aqui salientar que Pessoa, que nas suas traduç6es de poesia costumava eliminar os nomes ingleses, evita qualquer referencia ao nome de Lenore e substitui-a por perifrases que evocam a mulher amada. Este aspecto é importante, porque se inserc na pràtica habitual de Pessoa de permitir, em funçao da manutençao da estrutura métrica e rimàtica, que elementos semanticos, mesmo importantes, caiam eque os sentidos se simplifiquem, além de recorrer (por ve:.-:es excessivamente) ao enchimento. Este fenomeno, aliàs, é sugerido no primeiro clos dois versos da traduçao acima citada, nomeadamente na introduçao de toda a noite, que chega a ser pleonàstica. Nessa perspectiva a relaçao entre fidelidade formai e fidelidade semantica, portanto, é clispar nas cluas traduç6es. No conjunto, porém, ambas as traduç6es respondem de forma interessante e satisfatoria a prindpios anàlogos cio ponto de vista formai. Os pequenos desvios semariticos cle Pessoa devem-se principalmente ao proposito de neutralizar o texto de partida. Por outro lado, os desvios pontuais de Cabrai do Nascimento podem ser interpretados a partir da dupla relaçào da sua tracluçao, que se propunha de transferir o poema de Poe na lingua e cultura portuguesas, mas simultaneamente tinha de se diferenciar e distinguir da traduçao assinada por Fernando Pessoa. Tanto Fernando Pessoa como Cabrai do Nascimento, de facto, transferiram para portugues o poema de Poe respeitando, com soluç6es originais, as suas caracteristicas semanticas, ritmicas e fonicas, cliferentemente de um autor como Machado de Assis, que, inspiranclo-se na traduçao de C. Baudelaire, optara, alé m do mais, por transformar as estrofes de seis versos em estrofes de oito e recorrer a rimas emparelhadas 7 7 Cfr. FA Poc, "O corvo" in ]oaquim Maria Machado de Assis, Ohra completa, Rio de ]aneiro, Editora José Aguilar Ltda., 1962, val. 3, pp
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