A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós
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- Célia Minho Pinto
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1 A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós A obra traz como protagonista um entusiasta da corrente filosófica do positivismo e é vista como uma reconciliação de Eça de Queirós com seu país, Portugal, antes alvo de duras críticas Último livro de Eça de Queirós, A Cidade e as Serras foi publicado em 1901, um ano após a morte do autor português. A obra não estava inteiramente acabada. Faltava a meticulosa revisão que Eça dedicava a seus romances antes de publicá-los. Ainda assim, é considerado um dos mais importantes livros do escritor, concentrando as principais características do período de sua maturidade artística. Nessa fase, Eça ameniza o rigor do método realista e reconcilia-se com seu país, Portugal, tão duramente criticado em romances anteriores, como O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. TEMPO E ESPAÇO O narrador-personagem, José Fernandes, é quem conta a história do amigo Jacinto. A narrativa se passa no século XIX, quando Paris era considerada a capital da Europa e o centro do mundo. Portugal, no entanto, mantinha-se como um país agrário e decadente. Havia grande entusiasmo, nos meios intelectuais da época, pelas teorias positivistas de Augusto Comte, criador do sistema que ordena as ciências experimentais, considerando-as o modelo por excelência do conhecimento humano, em detrimento das especulações metafísicas ou teológicas. ENREDO A narrativa inicia-se com a história de dom Galião, grande proprietário que, ao escorregar numa casca de laranja, é socorrido pelo infante dom Miguel. Desse dia em diante, o rechonchudo velho torna-se partidário fanático do príncipe. Em 1831, dom Pedro retorna do Brasil para assumir o trono português, destronando seu irmão, dom Miguel. Indignado, dom Galião muda-se de Portugal para Paris, levando consigo Grilo, futuro criado de Jacinto. Em Paris, o filho de dom Galião, Cintinho, torna-se uma criança doente e tristonha. Quando adulto, seu aspecto não melhora. Em sua única decisão mencionada no livro, prefere
2 ficar em Paris e casar-se com a filha de um desembargador a ir tratar-se no campo. Conclusão: morre três meses antes de nascer Jacinto, seu único filho. Jacinto cresce como um menino forte, saudável e inteligente. Na faculdade, seu colega Zé Fernandes (o narrador) o apelida de Príncipe da Grã-Ventura. Em Paris, andavam em voga as teorias positivistas, das quais o protagonista se revela entusiasta. Jacinto elabora uma filosofia de vida: A felicidade dos indivíduos, como a das nações, se realiza pelo ilimitado desenvolvimento da mecânica e da erudição. O resultado desse entusiasmo de Jacinto por Paris, porém, se revela desastroso. Zé Fernandes retrata dessa forma a decadência do protagonista, de quem se havia separado durante sete anos: Reparei então que meu amigo emagrecera; e que o nariz se lhe afilara mais entre duas rugas muito fundas, como as de um comediante cansado. Os anéis de seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a antiga serenidade de mármore bem polido. Não frisava agora o bigode, murcho, caído em fios pensativos. Também notei que corcovava. Zé Fernandes, então, também se deixa levar por Paris, ao ser dominado por uma paixão carnal pela prostituta Madame Colombe. O caso contraria as teorias de Jacinto, expostas no começo do livro, segundo as quais o homem se tornava um selvagem no campo. Nesse caso, foi a cidade de Paris que transformou Zé Fernandes num escravo de seus instintos. Segue-se uma série de episódios que ilustram o ridículo que se escondia sobre a pretensa superioridade dos parisienses. Jacinto torna-se entediado, doente, chega a lembrar seu pai, Cintinho. Então ocorre uma reviravolta: a igreja onde estavam enterrados os avós de Jacinto vem abaixo durante uma tormenta. Ele manda que se reconstrua tudo, sem se importar com os gastos. Na viagem de volta a Portugal, Jacinto perde quase toda a bagagem. Seu país, no entanto, devolve a saúde ao protagonista, que, revigorado, promove diversas melhorias em Tormes. Finalmente, ele se casa com Joaninha, camponesa e prima de Zé Fernandes. Na última cena do livro, Zé Fernandes, também enfastiado de Paris, parte para Tormes o castelo da grã-ventura com Jacinto e Joaninha. CAMPO E CIDADE A temática do campo versus cidade recorrente nas obras do escritor português é o cerne do romance A Cidade e as Serras, como o próprio título indica. Na tradição da literatura ocidental, o gênero bucólico ou pastoral sempre tratou da oposição entre a vida tranquila e sábia do camponês e a vida urbana, cheia de agitação fútil. Para diferenciar o que ocorre no gênero pastoral e nesse romance, é preciso entender os pressupostos daquela oposição. Por que a vida no campo seria mais sábia que a vida na cidade? O gênero bucólico, cultivado por inúmeros autores desde a Antiguidade, caracteriza-se pela criação de um personagem lírico um pastor fictício cujo conhecimento provém da contemplação minuciosa da natureza. Sua expressão poética será tanto mais eficaz quanto mais transmitir o efeito de possuir duas qualidades principais: sabedoria e simplicidade. O conceito de sabedoria mudou muito no decorrer da história. Sem a pretensão de aprofundar aqui os vários significados que a palavra teve, é interessante mostrar como esse conceito se torna problema na obra de Eça. O teórico Walter Benjamin definiu sabedoria como a teoria entretecida na experiência, fórmula que desvaloriza tanto a ação que se promove sem o governo da razão, limitada pela
3 ignorância (simbolizada na figura do selvagem), quanto a teoria desvinculada das ações e da vida sensível (simbolizada principalmente pela informação). MODERNIDADE No romance, um exemplo de como a questão aparece está na cena em que Zé Fernandes, após ter passado sete anos em Portugal, reencontra Jacinto em Paris. Depois de verificar que o amigo parecia mais magro e abatido e admirar-se com as inovações do 202 (número da casa de Jacinto na capital francesa), Zé Fernandes observa espantado o funcionamento de um telégrafo, que transmite a Jacinto a informação de que a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria. Enquanto isso, Jacinto está ocupadíssimo ao telefone. O visitante pergunta então ao anfitrião se o prejudicava diretamente aquela avaria da Azoff. A resposta do entediado Jacinto é: Da Azoff?... a avaria? A mim... Não! É uma notícia. Trata-se de um dado que não tem importância para Jacinto, pois sua existência está completamente afastada do destino da embarcação russa. A informação, porém, estabelece um falso vínculo entre ambos os eventos. Jacinto assiste a tudo, mas não pode tomar nenhuma atitude. A constatação é que o homem informado assiste a um jogo complexo de acontecimentos que se desenrolam por todos os lugares do mundo, muitos sem nenhuma relação aparente entre si, e fica como Jacinto diante do telégrafo: agoniado e entediado. Quando o protagonista volta a Portugal, encontra o mundo da experiência alheia à teoria. Se em Paris ele tinha um milhão de instrumentos incapazes de proporcionar uma vida saudável, em Portugal falta-lhe até uma cama confortável, sendo preciso improvisar uma entre as pedras. Vale lembrar que Jacinto fora chamado a Tormes sua propriedade em Portugal para reconstruir o túmulo de seus ancestrais, o que pode ser interpretado como uma religação do protagonista com suas origens, citadas no início do livro. Porém, o Jacinto que retorna é um homem muito informado e pode agora aplicar parte da grande carga teórica que adquiriu ao contexto português. É preciso primeiro livrar-se da complexidade inútil do jogo das informações e articulá-las de modo eficiente. Em resumo: agir com simplicidade. O protagonista, então, torna-se sujeito de uma ação bem direcionada, conseguindo promover muitas melhorias em Tormes, lugar atrasado e pobre. A ideia de sabedoria encontrada nesse romance, portanto, se desvincula do que determina o gênero bucólico, em que a contemplação da natureza é a responsável pela produção do saber. O que vemos aqui é uma ideia muito mais próxima de nossa modernidade, na qual há uma ruptura entre a informação e a experiência pessoal. CONCLUSÃO As obras de Eça de Queirós podem ser agrupadas em três fases: a primeira, experimental, em que o autor publicou artigos irregulares em folhetins; a segunda, fortemente realista, que vai desde a publicação de O Crime do Padre Amaro, em 1875, até a de Os Maias, em 1888; e a terceira, pós-realista, na qual o autor se reconcilia com a sua Portugal. Nessa, destaca-se A Ilustre Casa de Ramires, de 1900, além de A Cidade e as Serras. A temática tratada, campo versus cidade, vem de uma longa tradição literária e é recorrente na obra do autor. Nesse romance, ele se dedica a mostrar a futilidade reinante em Paris e a satirizar as ideias positivistas que deslumbravam a juventude intelectual da época.
4 Personagens JACINTO O protagonista, português residente em Paris, entusiasta da vida urbana, das inovações tecnológicas e da ciência; características que vão se alterar drasticamente durante a história. JOSÉ FERNANDES Narrador-personagem, amigo de Jacinto desde os tempos de estudante, quando os dois moravam em Paris. JACINTO GALIÃO Também chamado dom Galião. Avô de Jacinto. CINTINHO Pai de Jacinto, homem de saúde frágil e temperamento sombrio. GRILO O mais antigo criado de Jacinto, negro que desde a infância acompanha o patrão. Havia sido levado a Paris por dom Galião. JOANINHA Prima de Zé Fernandes, camponesa portuguesa saudável e rústica. Exercícios 1. (UNICENTRO) A única passagem que NÃO encontra apoio em A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, é A) Em A Cidade e as Serras, José Fernandes, de rica família proveniente de Guiães, região serrana de Portugal, narra a história de Jacinto de Tormes, seu amigo também fidalgo, embora nascido e criado em Paris. B) A Cidade e as Serras explora uma grave tese sociológica: ser-nos preferível viver e proliferar pacificamente nas aldeias a naufragar no estéril tumulto das cidades. C) Para Jacinto, Portugal estava associado à infelicidade, enquanto Paris associava-se à felicidade; ao longo do romance, contudo, essa opinião se modifica. D) No romance dois ambientes distintos são enfocados ao longo das duas partes em que o livro pode ser dividido: a civilização e a natureza. E) Já avançado em idade, Jacinto se aborrece com as serras e tenciona reviver as orgias parisienses, mas faltam-lhe, agora, saúde e riqueza. 2. (FOVEST) O romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, publicado em 1901, é desenvolvimento de um conto chamado Civilização. Do romance como um todo pode afirmarse que A) apresenta um narrador que se recorda de uma viagem que fizera havia algum tempo ao Oriente Médio, à Terra Santa, de onde deveria trazer uma relíquia para uma tia velha, beata e rica. B) caracteriza uma narrativa em que se analisam os mecanismos do casamento e o comportamento da pequena burguesia da cidade de Lisboa. C) apresenta uma personagem que detesta inicialmente a vida do campo, aderindo ao desenvolvimento tecnológico da cidade, mas que ao final regressa à vida campesina e a transforma com a aplicação de seus conhecimentos técnicos e científicos.
5 D) revela narrativa cujo enredo envolve a vida devota da província e o celibato clerical e caracteriza a situação de decadência e alienação de Leiria, tomando-a como espelho da marginalização de todo o país com relação ao contexto europeu. E) se desenvolve em duas linhas de ação: uma marcada por amores incestuosos; outra voltada para a análise da vida da alta burguesia lisboeta. 3. (FUVEST) Já a tarde caía quando recolhemos muito lentamente. E toda essa adorável paz do céu, realmente celestial, e dos campos, onde cada folhinha conservava uma quietação contemplativa, na luz docemente desmaiada, pousando sobre as coisas com um liso e leve afago, penetrava tão profundamente Jacinto, que eu o senti, no silêncio em que caíramos, suspirar de puro alívio. Depois, muito gravemente: Tu dizes que na Natureza não há pensamento... Outra vez! Olha que maçada! Eu... Mas é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o sofrimento! Nós, desgraçados, não podemos suprimir o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e impedir que ele se estonteie e se esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se realizam, aspirando a certezas que nunca se atingem!... E é o que aconselham estas colinas e estas árvores à nossa alma, que vela e se agita que viva na paz de um sonho vago e nada apeteça, nada tema, contra nada se insurja, e deixe o mundo rolar, não esperando dele senão um rumor de harmonia, que a embale e lhe favoreça o dormir dentro da mão de Deus. Hem, não te parece, Zé Fernandes? Talvez. Mas é necessário então viver num mosteiro, com o temperamento de S. Bruno, ou ter cento e quarenta contos de renda e o desplante de certos Jacintos... Eça de Queirós, A cidade e as serras. Considerado no contexto de A cidade e as serras, o diálogo presente no excerto revela que, nesse romance de Eça de Queirós, o elogio da natureza e da vida rural a) indica que o escritor, em sua última fase, abandonara o Realismo em favor do Naturalismo, privilegiando, de certo modo, a observação da natureza em detrimento da crítica social. b) demonstra que a consciência ecológica do escritor já era desenvolvida o bastante para fazêlo rejeitar, ao longo de toda a narrativa, as intervenções humanas no meio natural. c) guarda aspectos conservadores, predominantemente voltados para a estabilidade social, embora o escritor mantenha, em certa medida, a prática da ironia que o caracteriza. d) serve de pretexto para que o escritor critique, sob certos aspectos, os efeitos da revolução industrial e da urbanização acelerada que se haviam processado em Portugal nos primeiros anos do Século XIX. e) veicula uma sátira radical da religião, embora o escritor simule conservar, até certo ponto, a veneração pela Igreja Católica que manifestara em seus primeiros romances.
6 4. (PUC) O romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, publicado em 1901, é desenvolvimento de um conto chamado Civilização. Do romance como um todo pode afirmarse que A) apresenta um narrador que se recorda de uma viagem que fizera havia algum tempo ao Oriente Médio, à Terra Santa, de onde deveria trazer uma relíquia para uma tia velha, beata e rica. B) caracteriza uma narrativa em que se analisam os mecanismos do casamento e o comportamento da pequena burguesia da cidade de Lisboa. C) apresenta uma personagem que detesta inicialmente a vida do campo, aderindo ao desenvolvimento tecnológico da cidade, mas que ao final regressa à vida campesina e a transforma com a aplicação de seus conhecimentos técnicos e científicos. D) revela narrativa cujo enredo envolve a vida devota da província e o celibato clerical e caracteriza a situação de decadência e alienação de Leiria, tomando-a como espelho da marginalização de todo o país com relação ao contexto europeu. E) se desenvolve em duas linhas de ação: uma marcada por amores incestuosos; outra voltada para a análise da vida da alta burguesia lisboeta. GABARITO: 1.E 2.C 3.C 4.C
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