Rabdomiólise e Injúria Renal Aguda (IRA) Introdução
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- Sabina Leal Sabrosa
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1 Rabdomiólise e Injúria Renal Aguda (IRA) Introdução A rabdomiólise é caracterizada pelo extravasamento do conteúdo da célula muscular para a circulação. A injúria renal aguda é uma complicação potencial da rabdomiólise grave, independentemente da causa, traumática ou não - nas formas menos graves ou em casos de destruição muscular crônica ou intermitente, os pacientes, em sua maioria, são pouco sintomáticos e não apresentam insuficiência renal. Em geral, a rabdomiólise aguda ocorre em pacientes com miopatia estrutural submetidos a exercícios extenuantes, anestesia, uso de drogas tóxicas ao músculo ou infecções virais. Há 8 categorias de causas de rabdomiólise: trauma (síndrome do esmagamento), esforço (exercícios extenuantes), hipóxia muscular (compressão por imobilização), defeitos genéticos (desordens da glicólise/glicogenólise), infecções (influenza A e B, EBV), alterações da temperatura corporal (hipertermia), alterações metabólicas e eletrolíticas (hipocalemia, hipofosfatemia), drogas e toxinas (estatinas, fibratos) e idiopáticas. O mecanismo patogênico da rabdomiólise é a injúria direta ao sarcolema (trauma) ou redução de ATP no miócito, levando ao aumento desregulado do cálcio intracelular. O cálcio sarcoplasmático é regulado por bombas, canais e transportadores, que mantém o nível citoplasmático desse íon baixo quando o músculo está em repouso e elevado na contração muscular. O déficit de ATP prejudica o funcionamento dessas bombas, causando aumento do cálcio intracelular e contração persistente, além da ativação de proteases dependentes de cálcio e fosfolipases, culminando no desarranjo celular. Epidemiologia da Mioglobinúria por IRA
2 A incidência de IRA na rabdomiólise varia entre 13-50%. Embora a rabdomiólise por qualquer causa possa levar à IRA, a evidência literária sugere que essa ocorrência é mais comum em usuários de drogas ilícitas, abuso de álcool e trauma, quando comparado a portadores de doenças musculares. Em relação aos pacientes internados em unidades de terapia intensiva (UTI) com rabdomiólise, a taxa de mortalidade é de 59% entre aqueles que apresentam IRA e 22%, nos casos que não evoluem com essa condição. A maioria dos pacientes com IRA induzida por rabdomiólise recuperam a função a renal. Patogênese da IRA Induzida pela Mioglobina A mioglobinúria só ocorre no contexto de rabdomiólise e pode ser percebida como uma coloração vermelho-acastanhada na urina, indicando que a mioglobina plasmática alcançou 100mg/dL. Estudos experimentais sugerem que o mecanismo pelo qual a rabdomiólise causa o déficit da filtração glomerular está relacionado à vasoconstrição intrarrenal, injúria tubular direta/isquêmica e obstrução tubular. A mioglobina se concentra ao longo dos túbulos renais (processo aumentado na depleção de volume e vasoconstrição renal) e se precipita quando interage com a proteína Tamm-Horsfall, processo favorecido pela urina ácida. A mioglobina não apresenta efeito nefrotóxico tubular, a menos que a urina esteja ácida. O oxigênio molecular é capaz de oxidar o Fe +2 do grupo heme da mioglobina a Fe 3+, gerando um radical hidroxil, mas esse potencial oxidativo é eficientemente contido por moléculas antioxidantes intracelulares. Contudo, o extravasamento celular da mioglobina leva a uma liberação descontrolada de espécies reativas de oxigênio e radicais livres, causando injúria celular e, assim, acredita-se que o heme e radicais hidroxil são mediadores críticos do dano tubular. Estudos mostram que a mioglobina, por si só, é capaz de exibir atividade enzimática peroxidase-like, levando a oxidação descontrolada de compostos orgânicos.
3 A vasoconstrição renal, característica da IRA induzida por rabdomiólise, é resultante de diversos mecanismos. Primeiro, à depleção de volume intravascular, devido ao sequestro de fluido dentro do músculo lesado, leva a ativação do sistema reninaangiotensina-aldosterona, vasopressina e sistema nervoso simpático. Em segundo, ao déficit no óxido nítrico (vasodilatador), atribuído ao efeito sequestrador da mioglobina na microcirculação renal, que também tem papel na redução do fluxo renal. Tomados em conjunto, esses mediadores vasculares aparentemente são estimulados pela injúria oxidativa e inflamação, como resultado da disfunção endotelial. Manifestações renais da rabdomiólise Pacientes com rabdomiólise geralmente apresentam cilindros granulosos pigmentados, urina com sobrenadante vermelho-acastanhado e aumento marcante da CK sérica. Não há um valor de corte estabelecido para essa enzima a partir do qual o risco de IRA seja maior, mas esse risco é usualmente baixo quando os níveis de CK na admissão são inferiores a /L. A mioglobinúria pode ser inferida pelo teste urinário com fita reagente (dipstick) com resultado positivo para sangue (80% de sensibilidade para rabdomiólise). No entanto, podem ocorrer falsos positivos, já que esse teste não é capaz de distinguir mioglobina de hemoglobina. O pico sérico de mioglobina ocorre antes do aumento da CK, mas seu metabolismo é rápido e imprevisível, de modo que sua mensuração plasmática tem baixa sensibilidade para o diagnóstico de rabdomiólise. Pacientes com rabdomiólise frequentemente apresentam uma razão plasmática ureia/creatinina reduzida e, nos casos de IRA induzida por rabdomiólise, oligúria (ocasionalmente, anúria) e baixa fração de excreção de sódio (<1%), uma ocorrência frequente que a diferencia de outras formas de necrose tubular aguda e que talvez reflita a ocorrência primária de vasoconstrição pré-glomerular e oclusão tubular, em vez de necrose tubular.
4 A redução da fração de excreção de sódio na IRA é indicativo de uma relativa integridade da função tubular. Quando a necrose tubular aguda tóxica ou isquêmica se estabelece, a fração de excreção de sódio e sódio urinário se elevam. As anormalidades eletrolíticas são decorrentes da liberação de componentes celulares, que frequentemente determinam a severidade da IRA induzida por rabdomiólise. Uma vez que essas alterações precedem a IRA, os eletrólitos devem ser dosados assim que o diagnóstico é estabelecido. Dentre os distúrbios que podem ocorrer, estão : hipercalemia, hiperfosfatemia, hiperuricemia, acidose metabólica com ânion gap elevado e hipermagnesemia. o fosfato aumentado pode se ligar ao cálcio, levando ao depósito tecidual de complexos de fosfato de cálcio. Além disso, a hiperfosfatemia inibe a 1alfahydroxilase, limitando a formação de calcitriol. a hipocalcemia é resultante da entrada de cálcio na célula muscular lesada e da precipitação de fosfato de cálcio. A hipercalcemia associada a recuperação da função renal na IRA por rabdomiólise é resultante da mobilização do cálcio depositado previamente no músculo, normalização da hiperfosfatemia e aumento do calcitriol. a hipercalemia é uma manifestação precoce dessa condição e o potássio sérico pode se elevar rapidamente, alcançando níveis potencialmente fatais. a hiperuricemia é decorrente da liberação de nucleosídeos do músculo lesado e pode contribuir para a obstrução tubular, já que o ácido úrico é insolúvel e pode se precipitar na urina ácida. Abordagem Passos para o tratamento e prevenção da IRA induzida por rabdomiólise : i. Checar o status do volume extracelular, pressão venosa central (PVC) e débito urinário ii. Mensurar : 1. CK e outras enzimas musculares (mioglobina; aldolase; alanina e aspartato aminotransferases; lactato desidrogenase) 2. Creatinina (sérica e urinária)
5 3. Sódio, potássio, cálcio total e iônico, magnésio e fósforo 4. Ureia e ácido úrico 5. Albumina 6. Hemograma e coagulograma. iii. Avaliar equilíbrio ácido-básico iv. Realizar teste urinário com fita reagente (dipstick) e examinar sedimento urinário v. Iniciar reposição de volume com solução salina normal 400mL/h ( mL/h, dependendo da severidade), monitorando a evolução clínica ou PVC Manter débito urinário de aproximadamente 3mL/kg/h vi. Checar o nível sérico de potássio frequentemente vii. Corrigir a hipocalcemia, somente se o paciente estiver sintomático (tetania, convulsões) ou se houver hipercalemia grave viii. Investigar a causa da rabdomiólise ix. Checar o ph urinário : se <6.5, alternar cada litro de salina normal com 1L de dextrose 5% ou salina 0,45% associado a 100mmol de bicarbonato (evitar soluções contendo potássio ou lactato) x. Considerar tratamento com manitol, avaliando a osmolaridade e o gap osmolar do plasma. Descontinuar, se não houver diurese (>20mL/h) xi. Manter a reposição de volume até a resolução da mioglobinúria (evidenciada pela urina clara ou teste urinário com dipstick negativo para sangue) xii. Considerar terapia de substituição renal, se: hipercalemia refratária > 6.5 mmol/l e sintomática (avaliada por ECG), aumento rápido do potássio, oligúria, anúria, sobrecarga de volume ou acidose metabólica refratária (ph<7.1) Em relação à abordagem recomendada, algumas considerações devem ser pontuadas. A composição do fluido de reposição ainda é controversa. Alguns autores recomendam a administração de bicarbonato de sódio, o que resulta em alcalinização da urina. Há 3 vantagens empíricas dessa prática, baseadas em estudos com modelos animais de rabdomiólise : sabe-se que a precipitação da proteína Tamm-Horsfall é maior em urina ácida; a alcalinização inibe o ciclo redox da mioglobina e a peroxidação de lipídica na rabdomiólise, reduzindo a injúria tubular; e estudos evidenciaram que a
6 metamioglobina induz a vasoconstrição somente em meio ácido. No entanto, não há comprovação estabelecida de benefícios da alcalinização urinária e a principal desvantagem dessa prática é a redução do cálcio ionizado, o que pode exacerbar os sintomas de hipocalcemia. A infusão de grandes volumes de salina normal isolada pode contribuir para acidose metabólica, devido a diluição do bicarbonato sérico com uma solução contendo íons cloreto, o que leva a acidose metabólica hiperclorêmica. Assim, a administração de ambos, salina normal e bicarbonato de sódio, pode ser adequada para pacientes com rabdomiólise, especialmente nos casos de acidose metabólica. O uso de diurético também é controverso e deve ser restrito a pacientes nos quais a reposição de volume foi adequada. Estudos em modelos animais mostram diversos benefícios na administração de manitol, como a diurese osmótica, aumento do fluxo urinário e flushing de agentes nefrotóxicos. Como agente osmótico, esse diurético forma um gradiente favorável a extração do fluido acumulado músculo lesado, melhorando a hipovolemia, além de ser um sequestrador de radicais livres. No entanto, estudos clínicos não comprovaram esses benefícios e altas doses de manitol estão associadas a IRA por vasoconstrição e toxicidade tubular (nefrose osmótica). Apesar disso, muitos experts mantém a indicação do uso de manitol para prevenção e tratamento da IRA induzida por rabdomiólise e redução da pressão compartimental. Em relação a correção dos distúrbio eletrolíticos, o manejo da hipercalemia é de especial importância. Agentes que promovem o deslocamento do potássio do meio extra para o intracelular (solução polarizante glicose + insulina, bicarbonato) são temporariamente efetivos e a única maneira de se remover esse íon do organismo é por diurese, uso de ligadores intestinais de potássio ou diálise. Quando a injúria renal é grave a ponto de levar a hipercalemia refratária, acidose ou sobrecarga de volume, a terapia de substituição renal é indicada, principalmente a hemodiálise intermitente, a qual pode corrigir as alterações eletrolíticas de forma rápida e eficiente. A hemodiálise convencional não remove a mioglobina de forma efetiva, devido ao tamanho dessa proteína.
7 O uso de antioxidantes e sequestradores de radicais livres (pentofilina, vitaminas E e C) pode ser justificável para o tratamento ou prevenção de IRA mioglobinúrica, mas faltam estudos controlados para avaliar a eficácia dessa prática.
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