Doença Policistica Renal na Criança. Formas Clínicas

Documentos relacionados
Abordagem de lesões quísticas renais na infância

Obrigada por ver esta apresentação Gostaríamos de recordar-lhe que esta apresentação é propriedade do autor pelo autor

Módulo 1 ABORDAGEM E OPÇÕES TERAPÊUTICAS NO DOENTE COM LITÍASE RENAL AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA CÓLICA RENAL 3 OBSERVAÇÃO 4 OPÇÕES TERAPÊUTICAS

DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL DAS ANOMALIAS CONGÊNITAS DO TRATO URINÁRIO CONTRIBUIÇÕES DE 20 ANOS DE ESTUDOS LONGITUDINAIS

ENFERMAGEM DOENÇAS CRONICAS NÃO TRANSMISSIVEIS. Doenças Renais Parte 1. Profª. Tatiane da Silva Campos

Imagem da Semana: Tomografia computadorizada (TC)

Dia Mundial do Rim 2019

Tumores renais. 17/08/ Dra. Marcela Noronha.

Após um episódio de ITU, há uma chance de aproximadamente 19% de aparecimento de cicatriz renal

RESUMO SEPSE PARA SOCESP INTRODUÇÃO

Malformações do trato urinário

Hematúria 1. DEFINIÇÕES 2. ETIOLOGIA. Revisão. Aprovação. Elaboração Joana Campos Dina Cirino Clara Gomes A Jorge Correia Data: Maio 2007

Glomerulonefrite Membranosa Idiopática: um estudo de caso

Abordagem do Paciente Renal. Abordagem do Paciente Renal. Abordagem do Paciente Renal. Síndromes Nefrológicas. Síndrome infecciosa: Infecciosa

Avaliação e Interpretação da Pressão Arterial na Infância

Infecção do Trato Urinário na Infância

RESIDÊNCIA MÉDICA 2014 PROVA OBJETIVA

Registo Nacional de crianças com IRC em tratamento conservador. Secção de Nefrologia Pediátrica da S.P.P Helena Pinto

IMPLICAÇÕES DA CLASSE DE ÍNDICE DE MASSA CORPORAL E OBESIDADE ABDOMINAL NO RISCO E GRAVIDADE DA HIPERTENSÃO ARTERIAL EM PORTUGAL

IMPLICAÇÕESCLÍNICAS DO DIAGNÓSTICOTARDIO DA FIBROSECÍSTICA NOADULTO. Dra. Mariane Canan Centro de Fibrose Cística em Adultos Complexo HC/UFPR

METABOLISMO XI CURSO BÁSICO. Rui Castelo. Hospital Pediátrico Carmona da Mota. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

REUNIÃO BIBLIOGRÁFICA

RELAÇÃO DE PONTOS PARA A PROVA ESCRITA E AULA PÚBLICA

COMPLICAÇÕES RENAIS NO TRANSPLANTE HEPÁTICO

PEDIDO DE CREDENCIAMENTO DO SEGUNDO ANO NA ÁREA DE ATUAÇÃO NEFROLOGIA PEDIÁTRICA

Glomerulonefrite pós infecciosa

Défices de Creatina cerebral

Registo nacional de IRC

11º Imagem da Semana: Ultrassonografia dos rins e vias urinárias

Diagnóstico Diferencial das Síndromes Glomerulares. Dra. Roberta M. Lima Sobral

I. RESUMO TROMBOEMBOLISMO VENOSO APÓS O TRANSPLANTE PULMONAR EM ADULTOS: UM EVENTO FREQUENTE E ASSOCIADO A UMA SOBREVIDA REDUZIDA.

Síndrome Periódica Associada à Criopirina (CAPS)

DISTÚRBIOS METABÓLICOS DO RN

Doença Renal Poliquística Autossómica Dominante: Casuística de uma Consulta de Nefrologia Pediátrica

O MELHOR JEITO DE ESTUDAR É O SEU. Pediatria 2018

26ª Imagem da Semana: Imagem da Semana Fotografia

Particularidades no reconhecimento da IRA, padronização da definição e classificação.

SÍNDROME METABÓLICA E ADOLESCÊNCIA

Proteinúrias Hereditárias: Nefropatia Finlandesa e. Esclerose Mesangial Difusa

NÚMERO: 008/2011 DATA: 31/01/2011 Diagnóstico Sistemático da Nefropatia Diabética

Prevenção. Prevenção primária. Prevenção secundária. Prevenção terciária. pré-concepcional. pré-natal. pós-natal

PUBVET, Publicações em Medicina Veterinária e Zootecnia.

4. NATALIDADE E MORTALIDADE INFANTIL

Caso Clínico. (abordagem de Glomerulopatias pós-transplante)

Departamento de Nefrologia

Informe Influenza: julho COVISA - Campinas

Sinais de alerta na prática clínica critérios de orientação de que o seu paciente pode ter uma condição genética

Princípios Básicos da Genética Médica

Protocolo: - - Admissão anterior nesta UCIP durante este internamento hospitalar: Não Sim <48 h >= 48 h

FIBROSE CÍSTICA: TESTE DE TRIAGEM E CARACTERÍSTICAS DIAGNÓSTICAS ATUAIS

REGISTO DE MONITORIZAÇÃO Doença de Niemman Pick tipo C (Preencher com letra legível)

GLOMERULOPATIAS. 5º ano médico. André Balbi

TALITA GANDOLFI PREVALÊNCIA DE DOENÇA RENAL CRÔNICA EM PACIENTES IDOSOS DIABÉTICOS EM UMA UNIDADE HOSPITALAR DE PORTO ALEGRE-RS

Síndroma Nefrótico Idiopático na Criança. Evolução a Longo Prazo. Experiência da Unidade de Nefrologia Pediátrica

R1CM HC UFPR Dra. Elisa D. Gaio Prof. CM HC UFPR Dr. Mauricio Carvalho

AVALIAÇÃO LABORATORIAL DA FUNÇÃO RENAL

RECTAL PAROXYSTICAL PAIN

XIV Reunião Clínico - Radiológica Dr. RosalinoDalazen.

ENFERMAGEM DOENÇAS HEPÁTICAS. Profª. Tatiane da Silva Campos

Proposta de Programa de Follow up de Recém- Nascidos de Risco

ENFERMAGEM EXAMES LABORATORIAIS. Aula 4. Profª. Tatiane da Silva Campos

Diagnóstico pré-natal de malformações nefro-urológicas

Síndrome Periódica Associada à Criopirina (CAPS)

Sobre a Esclerose Tuberosa e o Tumor Cerebral SEGA

Encaminhamento do paciente com Doença Renal Crônica ao nefrologista

AVALIAÇÃO DA FUNÇÃO RENAL EM DIABÉTICOS ADULTOS*

LEVANTAMENTO DAS CAUSAS DE MORTE NEONATAL EM UM HOSPITAL DA REGIÃO DO VALE DO IVAÍ PR.

Vai estudar doenças glomerulares? Não se esqueça do elefantinho!

XVI Reunião Clínico - Radiológica. Dr. RosalinoDalasen.

QUESTÕES COMENTADAS INTRODUÇÃO À NEFROLOGIA

Preditores de lesão renal aguda em doentes submetidos a implantação de prótese aórtica por via percutânea

Produção e gestão hospitalar: o caso das ciências laboratoriais

As dúvidas mais comuns sobre a infecção urinária

AULA 6 Fontes de informação epidemiológica: estatisticas vitais e vigilância epidemiológica

Imagem da Semana: Cintilografia Renal c/99mtc

Na hipertensão arterial

Capítulo 3 (ex-capítulo 7)

Dra Marcella Rabassi de Lima Endocrinologista pediatra-fepe

Protocolo de Atendimento a Pacientes Hepatopatas com Injúria Renal Aguda e Síndrome Hepatorrenal

CADA VIDA CONTA. Reconhecido pela: Parceria oficial: Realização:

SÍNDROME HIPEROSMOLAR HIPERGLICÉMICA E CETOACIDOSE DIABÉTICA "

AVC EM IDADE PEDIÁTRICA. Fernando Alves Silva

Inquérito epidemiológico *

PUERICULTURA E PEDIATRIA. FAMED 2011 Dra. Denise Marques Mota

Hemangioma hepático: Diagnóstico e conduta. Orlando Jorge Martins Torres Professor Livre-Docente UFMA Núcleo de Estudos do Fígado

CIRURGIA PEDIÁTRICA HÉRNIAS

Semana Epidemiológica (SE) 02/2017 (08/01 a 14/01) Informe Epidemiológico Síndrome Congênita associada à Infecção pelo Vírus Zika (SCZ)

Avaliação do Risco Cardiovascular

Hemangiomas: Quando operar e quando observar Orlando Jorge M.Torres Nucleo de Estudos do Fígado F - UFMA

Perfil Epidemiológico de Pacientes Portadores de Doença Renal Crônica Terminal em Programa de Hemodiálise em Clínica de Santa Cruz do Sul - RS

Sindrome Hemolítico-Urémico

XI Curso Básico de Doenças Hereditárias do Metabolismo

RASTREIO AUDITIVO NEONATAL UNIVERSAL (RANU)

Consensus Statement on Management of Steroid Sensitive Nephrotic Syndrome

1. Estratificação de risco clínico (cardiovascular global) para Hipertensão Arterial Sistêmica

Semana Epidemiológica (SE) 06/2017 (05/02 a 11/02) Informe Epidemiológico Síndrome Congênita associada à Infecção pelo Vírus Zika (SCZ)

Campanha de Vacinação Influenza 2018

Cistos e doença policística renal

Imagem da Semana: Radiografia

Transcrição:

Acta Pediatr. Port., 2000; N." 2; Vol. 31: 129-33 Doença Policistica Renal na Criança. Formas Clínicas DULCE OLIVEIRA', SUSANA AIRES PEREIRA 2, M. SAMEIRO FARIA 3, CONCEIÇÃO MOTA 3, ARTUR ALEGRIA ', RICARDO ARAÚJO 5, ELO' PEREIRA 3 Serviço de Nefrologia Hospital de Crianças Maria Pia Resumo As doenças policisticas renais são doenças genéticas, cujo diagnóstico diferencial em idade pediátrica poderá ser difícil, dado que as manifestações clínicas e ecográficas se poderão sobrepôr. Foi efectuado um estudo retrospectivo da doença policistica (forma dominante e recessiva), em crianças seguidas na consulta de Nefrologia do Hospital Maria Pia entre Janeiro de 1988 e Março de 1999 com o objectivo de efectuar a caracterização clínica destes doentes. O diagnóstico em doença recessiva ou dominante foi baseado na história familiar e em características ecográficas (número e tamanho dos cistos, dimensões renais e diferenciação parenquimosinusal). Foram analisados os seguintes parâmetros: sexo, idade, história familiar, motivo de diagnóstico, manifestações clínicas e malformações associadas. Foram seguidas 23 crianças com a forma dominante e 15 com a recessiva. A idade de diagnóstico foi claramente mais precoce na forma recessiva. A massa abdominal foi a forma de apresentação clínica mais frequente da Doença recessiva; na Doença dominante a maior parte dos casos foi detectado por rastreio familiar. A doença policistica recessiva revelou duas formas distintas: a de apresentação neonatal com evolução rápida para insuficiência renal e alta mortalidade (47%) e outra mais benigna de aparecimento mais tardio que mantém função renal ligeiramente diminuida. Destaca-se a associação dum raro síndrome polimalformativo com a forma recessiva e dum caso de fibrose hepática congénita com a forma dominante. ' Serviço de Pediatria do H. Geral de Santo António. = Serviço de Pediatria do C. Hospitalar de V. N. G.. Serviço de Nefrologia do Hospital Maria Pia. ' Serviço de Pediatria da Mat. Júlio Serviço de Pediatria do Hospital Maria Pia. Correspondência: Dulce Oliveira Rua Vasco da Gama, 126-4. Esq. Fte. 4420 Fanzeres Gondomar. Tel. (02) 480 63 66 Aceite para publicação em 01/03/2000. Entregue para publicação em 07/10/99. Estes resultados estão globalmente de acordo com outros estudos. Contudo os autores realçam alguns casos particulares mais raros. Palavras-Chave: Policistica; dominante; recessiva; formas clínicas. Summary Polycistic Kidney Diseases in Children. Clinicai Forms Polycistic kidney diseases are genetic disorders with difficult differential diagnosis in children because of their frequently overlapping clinicai and sonographic features. The authors made a retrospective study of 23 children with autosomal dominant polycistic disease and 15 with autosomal recessive, followed up in the out patient clinics of Paediatric Nephrology, along the period of January 1988 through March 1999 aiming to define their clinicai features. The diagnosis was based on family history and ultrasound scan. Distribution by sex, age, family history, clinicai presentation, physical examination and follow-up have been analysed. We have found that age at diagnosis was earlier and an abdominal mass was the major clinicai feature in the recessive form. A vast majority of dominant disease was diagnosed on the basis of positive family history. We found two distinct clinicai forms of the recessive disease: a neonatal one with high mortality (47%) and another one with a slowly declining renal function. Our results are similar with others series, although the authors described some peculiar cases, such as a rare polimalformative syndrome associated with the recessive disease and one case of congenital hepatic fibrosis associated with the dominant disease. Key-Words: Polycistic; dominant; recessive; clinicai forms. Introdução As doenças policisticas renais são doenças genéticas de transmissão autossómica, tendo a Doença policistica dominante uma incidência de 1:200 a 1:1000 nados-vivos

1 30 Doença Policistica Renal na Criança. Formas Clínicas e a recessiva urna incidência de 1:6000 a 1:40000 nados-vivos (1-3). Contribuem colectivamente para 10% de todos os casos que vêm a necessitar de diálise ou transplante renal em qualquer altura da sua vida ("). Do ponto de vista histopatológico, a Doença policistica autossómica dominante caracteriza-se pela formação de grandes cistos, localizados em qualquer porção do nefrónio e a autossómica recessiva pela dilatação cística dos canais colectores (3). Foram já identificados três diferentes loci que causam Doença policistica autossómica dominante: PKD1 (cromossoma 16); PKD2 (cromossoma 4) e não PKD1/ /PKD2 (cromossoma ainda não identificado) (3.41. No cromossoma 6 foi identificado o locus génico que causa Doença policistica autossómica recessiva (3. 4) Em termos ecográficos, existem algumas características que diferenciam as duas formas nomeadamente: perda de diferenciação parenquimo-sinusal, hiperecogenicidade renal e múltiplos cistos pequenos bilaterais apontam para a forma recessiva, enquanto que cistos maiores, atingimento bilateral com aumento das dimensões renais e sem perda de diferenciação parenquimo-sinusal sugerem a forma dominante. Contudo, em idade pediátrica, continuam a existir algumas dificuldades no seu diagnóstico diferencial uma vez que na forma dominante, a dimensão dos rins pode não estar aumentada, o atingimento ser ainda unilateral e com um ou dois cistos (3.5, 6, 7.8) O objectivo deste estudo foi a caracterização clínica dos doentes com Doença policistica dominante e recessiva. Caracteristicamente, a forma recessiva apresenta displasia biliar e fibrose periportal congénita, sendo patognomónica a associação com dilatação da via biliar. Quanto à forma dominante é significativa a associação, embora rara na criança com cistos hepáticos, pancreáticos e ováricos, a par de aneurismas cerebrais (4). Material e Métodos Foi efectuado um estudo retrospectivo de todas as crianças seguidas na consulta de Nefrologia do Hospital Maria Pia, entre Janeiro de 1988 e Março de 1999, com diagnóstico de Doença Renal Policistica dominante e recessiva, tendo sido avaliados os seguintes parâmetros: idade, sexo, história familiar, motivo de diagnóstico, manifestações clínicas, malformações associadas e evolução clínica. Este estudo engloba igualmente três recém-nascidos da Maternidade Júlio Dinis que não foram transferidos para a consulta de Nefrologia do Hospital Maria Pia porque faleceram. Foram classificados como tendo Doença renal policistica dominante os que apresentavam história familiar positiva (um dos progenitores afectado) e sinais ecográ- ficos sugestivos (cistos bilaterais e/ou pelo menos três cistos) e como tendo Doença renal recessiva se nenhum dos progenitores afectado e sinais ecográficos sugestivos (perda de diferenciação parenquimosinusal e hiperecogenicidade com vários cistos bilaterais) (9). Foi excluído deste estudo uma criança com Esclerose Tuberosa e duas com cistos simples, embora com história familiar de Doença policistica dominante o que é controverso (3' ". Considerou-se que as crianças tinham hipertensão arterial se apresentavam em três medições sucessivas valores de tensão sistólica ou diastólica superiores ao percentil 95 para a idade e sexo ou se estavam a tomar antihipertensores. A função glomerular foi avaliada pelo valor sérico de creatinina em relação com a idade. A função tubular destes doentes nomeadamente: capacidade de concentração, perda de sódio e acidose tubular renal não foram sistematicamente avaliadas em todas as crianças. O rastreio de infecção urinária foi efectuado pela realização de uroculturas periódicas. Hematúria e proteinúria foram pesquisadas com a fita-teste Combur 00) e quando esta se encontrava alterada, era efectuado sedimento urinário, avaliação da relação cálcio/creatinina e/ou doseamento de proteinúria em urina de 24 h. Resultados Doença Renal Policistica Autossómica Recessiva Das 15 crianças com este diagnóstico, 53% (n=8) eram do sexo feminino e 47% (n=7) do sexo masculino. Havia história familiar em três casos, nomeadamente: um irmão afectado em duas crianças e pais com o marcador genético da doença (efectuado em França) noutra. O diagnóstico da doença (gráfico 1), foi feito em 67% dos casos (n=10) no período pré-natal ou neonatal, tendo sido feito após os seis meses de idade (4, 5 anos) numa criança. A idade média de diagnóstico foi de seis meses, mas a mediana foi ao mês de idade. GRÁFICO 1 Idade diagnóstico da Doença policistica recessiva Idade

Doença Policistica Renal na Criança. Formas Clínicas 131 As manifestações clínicas da doença e a respectiva idade de aparecimento estão representadas no quadro I. QUADRO I Idade de aparecimento e manifestações clínicas da Doença policistica autossómica recessiva Massa abdominal 6 3 < I M I M - I A I A - 5 A >10ANOS Vómitos 1* HTA 6 3 ITU Litiase Renal 1 Insuficiência renal 5 I I Acidose Metabólica 2 1-2 Hematoproteinúria 1 Hepatoesplenomegalia 1 SDR Grave 2 * Estenose hipertrófica do piloro HTA hipertensão arterial ITU infecção do tracto urinário SDR síndrome de dificuldade respiratória Faleceram no período neonatal, sete recém-nascidos (47%) pelas seguintes causas: pneumonia de aspiração com insuficiência respiratória (1), hipoplasia pulmonar (2), insuficiência renal grave (3); choque hipovolémico secundário a desidratação grave (1). Nestes recém-nascidos o diagnóstico de Doença renal policistica recessiva foi sugerido pela ecografia abdominal e confirmado pela autópsia que revelou rins policisticos bilaterais e fibrose hepática congénita. Para além das três crianças com diagnóstico prénatal, a apresentação clínica mais frequente (53%) foi a detecção de massa abdominal, associada em dois casos a síndromes de dificuldade respiratória. Nas restantes crianças, o motivo que levou ao diagnóstico da doença foram os seguintes: rastreio familiar-1; insuficiência renal-1; esplenomegalia-1; vómitos-1. Esta última criança tinha uma estenose hipertrófica do piloro. Cinco crianças foram medicadas com bicarbonato de sódio (1-2 meq/kg/dia) por apresentarem acidose metabólica hiperclorémica, que se tem mantido controlada com necessidades de bicarbonato progressivamente menores. A criança cujo diagnóstico foi feito por rastreio familiar, mantém-se assintomática, tendo actualmente seis anos de idade. I Detectaram-se malformações associadas em 13 crianças (83%) (quadro II). Realça-se que todas tiveram atingimento hepático acompanhado ou não de outras malformações. Salienta-se uma situação de síndrome polimalformativo com insuficiência renal, hidronefrose unilateral, polidactilia dos pés e mãos e miocardiopatia hipertrófica. QUADRO II Malformações cxtrarrenais associadas à Doença Policistica autossómica recessiva FÍGADO Cistos 2 Fibrosc 4 Cistos + Fibrosc 3 D. caroli 1 OUTRAS MALFORMAÇÕES Hipoplasia Pulmonar 2 Pé Boto 2 Inserção baixa pavilhões auriculares 1 Estenose Hipertrófica do Piloro 1 Polidactilia + Miocardiopatia hipertrófica 1 O tempo de seguimento médio dos sobreviventes foi de cinco anos e meio (mn - 6 meses; mx - 13 anos). Três crianças evoluiram para insuficiência renal crónica: uma evoluiu lentamente ao longo de 13 anos com insuficiência renal ligeira associada a hipertensão arterial e acidose metabólica; uma de 4 anos apresenta uma insuficiência renal moderada que se detiorou lentamente com hipertensão arterial associada, um lactente de 6 meses que apresenta uma insuficiência renal ligeira não acompanhada de acidose ou hipertensão. Para além destas, três outras crianças têm hipertensão arterial e três acidose metabólica. Doença Renal Policistica Autossómica Dominante Das 23 crianças com diagnóstico de Doença policistica dominante, 13 são do sexo masculino (57%) e 10 do sexo feminino (43%). A idade média de diagnóstico e a mediana foi aos sete anos e meio. A doença foi diagnosticada após os cinco anos em 57% dos casos (n=13) e após os 11 anos em 35% (n=8), tendo ocorrido no primeiro ano de vida apenas em duas crianças, por rastreio familiar (gráfico 2). A história familiar era positiva em 87% dos casos (20 famílias com um dos progenitores afectado). Num caso a irmã era atingida desconhecendo-se informação dos pais. Em dois casos não havia história familiar de doença renal.

132 Doença Policistica Renal na Criança. Formas Clínicas GRÁFICO 2 Idade diagnóstico da doença policistica dominante Idade um rapaz de 11 anos com hidronefrose obstrutiva e insuficiência renal sujeito previamente a reimplantação ureteral aos quatro anos de idade. O tempo de seguimento médio na consulta foi de quatro anos e meio (mn - 6 meses; mx - 11 anos) e até à data cerca de 48% (n=11) das crianças permanecem assintomáticas. Na última avaliação clínico laboratorial destaca-se que quatro crianças têm hipertensão arterial; uma insuficiência renal crónica; duas proteinúria não nefrótica e uma hematúria microscópica intermitente. Não foram detectados cistos em outros orgãos, nem aneurismas cerebrais sintomáticos. O diagnóstico foi feito em 74% das crianças (n=18) por rastreio familiar, tendo outros motivos de diagnóstico sido hipertensão arterial, hematúria e infecção urinária (em três crianças respectivamente). As manifestações clínicas e a respectiva idade de aparecimento estão representadas no quadro III. QUADRO III Idade de aparecimento das manifestações clínicas da Doença policistica autossómica dominante <IA IA-5A 5A-10A >IOANOS HTA 3 ITU 2 2 Litiase renal 2 Hematúria I I 2 Hepatoesplenomegalia I Expoliador de sal I 1 Insuficiência renal crónica I Proteinúria não nefrótica 2 HTA hipertensão arterial ITU infecção do tracto urinário Apesar de dois irmãos se apresentarem como expoliadores de sal, este foi um parâmetro avaliado em apenas 10 crianças. Uma das crianças desenvolveu um quadro de hepatoesplenomegalia com hipertensão portal secundário e fibrose hepática congénita. Em dois casos o diagnóstico surgiu pela detecção de cistos renais na ecografia abdominal no seguimento de outras situações patológicas, nomeadamente: uma adolescente de 19 anos com Lupus eritematoso disseminado e atingimento renal (Glomerulonefrite proliferativa difusa) e Discussão O reconhecimento precoce e o tratamento das complicações destas doenças poderá atrasar a deterioração renal e prolongar a esperança de vida. Originalmente a Doença policistica dominante era referida como «tipo adulto», uma vez que as manifestações clínicas usuais se dão pela 3.' - 4.' década de vida. Sabe-se hoje que a sintomatologia pode aparecer muito mais precocemente (período neonatal e infância) e assumir formas de gravidade como na recessiva 13' 51. Por outro lado, estudos mais recentes apontam para uma maior sobrevivência e menor gravidade clínica da Doença policistica recessiva (5' 6). O diagnóstico diferencial é frequentemente difícil, mas existem algumas características clínicas que sugerem o diagnóstico de cada entidade, nomeadamente, apresentação tardia ou assintomática, história familiar positiva, apresentação unilateral, cistos extra-renais (fígado, pâncreas, ovários), aneurismas cerebrais e infecção do tracto urinário são sugestivas da forma dominante enquanto apresentação neonatal, hepatoesplenomegalia, colangite bacteriana e progressão precoce para insuficiência renal terminal apontam para a recessiva (4). A história familiar, o exame ecográfico e a análise histopatológica têm sido as pedras base na avaliação diagnóstica da Doença Renal policistica na idade pediátrica (1, 3, 10). Contudo, o Pediatra deverá estar atento, uma vez que a sobreposição das manifestações clínicas e em alguma medida das características histopatológicas poderão complicar o diagnóstico. Por outro lado, será importante ter presente que a doença renal policistica parental pode ainda não ter sido diagnosticada na altura da apresentação clínica da criança ("). No nosso estudo, provavelmente devido à população ser escassa, não houve diferenças significativas no sexo em ambos os grupos, ao contrário de outros autores que encontraram predomínio no masculino ou feminino (10, '2).

Doença Policistica Renal na Criança. Formas Clínicas 133 A idade média de diagnóstico foi concordante nos dois grupos com o descrito na bibliografia (3, Ico, tendo sido claramente mais precoce na forma recessiva. As manifestações clínicas de ambos os grupos estão globalmente de acordo com a bibliografia (1, O facto de não haver história familiar da doença em duas crianças com a forma dominante levantou-nos algumas dúvidas, atendendo ao facto adicional de serem aqueles cujo diagnóstico surgiu na sequência de outras doenças. Contudo será importante lembrar que esta doença pode surgir por mutação espontânea ( I, 9), ou que poderão tratar-se de casos em que a detecção de cistos nos progenitores se fará mais tarde ("). Poder-se-á tratar, contudo, de cistos secundários a doenças renais tal como sucede na Insuficiência renal crónica, embora o seu número e volume sejam mais sugestivos de doença policistica dominante. É discutível ter-se excluído deste estudo duas crianças com cistos renais simples, e história familiar positiva de doença policistica dominante, visto outros autores considerarem ser altamente preditivo da doença a presença de um cisto simples na criança assintomática (3. A doença recessiva revelou nitidamente duas formas clínicas: a de apresentação perinatal (caracterizada pela alta mortalidade) e a dos sobreviventes (que estão clinicamente bem e mantêm função renal razoável). Foi curioso ter-se feito o diagnóstico de doença recessiva numa criança, apenas aos quatro anos e meio no decurso do estudo de uma hepatoesplenomegalia. Apesar do diagnóstico ecográfico prénatal ser cada vez mais frequente e a medicina intensiva neonatal estar mais desenvolvida, a mortalidade neonatal ligada à forma recessiva foi ainda considerável, em relação a outros estudos publicados (6). Relativamente às malformações associadas à forma recessiva, salientamos o raro síndrome polimalformativo com polidactilia, miocardiopatia hipertrófica, hidronefrose unilateral e insuficiência renal crónica, que não encontrámos referida na literatura. A associação com estenose hipertrófica do piloro já tinha sido descrita em relação com outras doenças císticas renais (". Destacamos igualmente um caso de fibrose hepática congénita associada à forma dominante, semelhante ao já descrito (6). A análise genética permitirá um melhor conhecimento da patofisiologia desta doença a nível molecular, um diagnóstico prénatal mais preciso com maior informação prognóstica. Estes avanços na área da genética molecular permitirão alguma esperança na descoberta de terapêuticas efectivas (4, I I ). Bibliografia 1. Gabow PA et al. Autosome dominant polycystic Kidncy disease. N Engl J Med 1993; 329: 332-42. 2. Fick GM, Gabow PA Hereditary and acquircd cystic disease of the Kidney. Kidney Int 1994; 46: 951-64. 3. Becker Niki et al. Congcnital Nephropaties and Uropathies. Pediatric Clinics of North America 1995; 42(6): 1319-41. 4. Murcia NS et al. The molecular biology of polycystic Kidney disease. Pediatr Nephrol 1998; 12: 721-6. 5. Cole BR et al. Polycystic Kidncy disease in the first year of life. J Pediatr 1987; 115(5): 693. 6. Sushmita R et al. Autosomal recessivo polycystic Kidney disease: long term outcome of neonatal survivors. Pediatr Nephrol 1997; 11: 302-6. 7. Stapleton FB et al. Infantilc polycystic Kidney disease: an imaging dilemma. Urol Radio! 1983; 5: 89-94. 8. Slovis T. L. et al. Hyperecoic Kidneys in the newborn and young infante. Pediatr Nephrol 1993; 7: 294-302. 9. Parfrey PS et al. The diagnosis and prognosis of autosome dominant polycystic Kidney disease. N Engl J Med 1990; 323 (16): 1085- -90. 10. Avner Ellis. Renal dysplasia and cystic disease. In: Malcolm A. Holiday, T. Martin and Ellis Avner. Pediatr Nephrol 3th ed 1994; 474-80. 11. Guay-Woodford Lisa M et al. Diffuse renal cystic disease in children: morphologic and genetics correlations. Pediatr Nephrol 1998; 12: 173-82. 12. Gang DL et al. Infantile polycystic Kidney disease of the tiver and Kidneys. Clin Nephrol 1986; 25: 28-36. 13. Kaplan B et al. Autosomal recessive polycystic Kidney disease. Pediatr Nephrol 1989; 3: 43-9.