SOBRE UM SUPOSTO DIREITO DE MENTIR POR AMOR À HUMANIDADE
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- Carolina Barata Amarante
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1 SOBRE UM SUPOSTO DIREITO DE MENTIR POR AMOR À HUMANIDADE No escrito A França no ano de 1797, sexta parte, nr. 1: Das reações políticas, por Benjamin Constant 1, encontra-se o seguinte: O princípio moral de que é um dever dizer a verdade tornaria impossível qualquer sociedade se alguém o tomasse de maneira incondicional e isolada. Temos a prova disso nas consequências bastante imediatas que um filósofo alemão tirou desse princípio, indo até o ponto de afirmar que seria um crime a mentira dita a um assassino que nos perguntasse se um amigo nosso, perseguido por ele, não se escondeu em nossa casa. O filósofo francês rejeita esse princípio da seguinte maneira: É um dever dizer a verdade. O conceito de dever é inseparável do conceito do direito. Um dever é aquilo que em um ser corresponde aos direitos de um outro. Onde não há quaisquer direitos, não há quaisquer deveres. Dizer a verdade é, portanto, um dever, mas somente para com aquele que tem um direito à verdade. Nenhum ser humano, porém, tem direito a uma verdade que prejudica os outros. A origem do erro encontra-se aqui na seguinte frase: Dizer a verdade é um dever, mas somente para com aquele que tem um direito à verdade. 1 Henri-Benjamin Constant de Rebecque (*25 de outubro de 1767, Lausana, Suíça; 8 de dezembro de 1830, Paris) foi um escritor e pensador político. Na França, após o golpe de Estado de 18 de Brumário (1799), Constant foi nomeado tribuno, mas tornou-se rapidamente um opositor do regime de Napoleão Bonaparte. Expulso do tribunal, em 1802, no ano seguinte seguiu para o exílio na Suíça e na Alemanha. Como um liberal, estava desapontado com a restauração da monarquia dos Bourbon em 1814, e reconciliou-se com o império napoleônico dos Cem Dias. Em seu retorno a Paris, Constant tornou-se um dos líderes do jornalismo liberal. Foi eleito deputado em 1819 e, após a revolução de julho de 1830, foi nomeado Presidente do Conselho de Estado, mas morreu no mesmo ano. Ele é mais conhecido por seus romances. Escrito em 1816, seu romance autobiográfico Adolphe descreve a paixão de um jovem por uma mulher mais velha. Constant também é conhecido por seu Diários Íntimos, publicado pela primeira vez em sua totalidade em Em 1819 e, após a revolução de julho de 1830, foi nomeado Presidente do Conselho de Estado, mas morreu no mesmo ano. Ele é mais conhecido por seus romances. Escrito em 1816, seu romance autobiográfico Adolphe descreve a paixão de um jovem por uma mulher mais velha. Constant também é conhecido por seu Diários Íntimos, publicado pela primeira vez em sua totalidade em 1952.
2 É de se observar, em primeiro lugar, que a expressão ter direito à verdade é algo sem sentido. É preciso antes dizer que o homem tem direito à sua própria veracidade, isto é, à verdade subjetiva em sua pessoa. Pois objetivamente ter direito a uma verdade significaria o mesmo que dizer o seguinte: assim como acontece de maneira geral naquelas coisas que podem ser minhas ou tuas, depende da vontade de alguém se uma frase dada deva ser verdadeira ou falsa. Isto produziria, então, uma lógica esquisita 2. Ora, a primeira pergunta é a seguinte: se o ser humano, em casos em que não pode evitar responder sim ou não, tem a faculdade 3 (o direito) de ser inverídico. A segunda pergunta é a seguinte: se o ser humano não está até mesmo obrigado, a fim de prevenir um crime que o ameace ou ameace outra pessoa, a ser inverídico em uma certa declaração à qual é forçado por uma coação injusta. Veracidade em declarações que não se pode evitar é dever formal 4 do ser 2 O sentido geral da argumentação de Kant aqui é o de que a aplicação do direito de contratos ao caso particular da verdade de declarações leva a uma conclusão sem sentido. Pois que algo seja meu ou teu, segundo os termos de Kant, depende da vontade tua e minha. Em contrapartida, não faz sentido afirmar que a verdade de uma frase depende da vontade de um ou de outro indivíduo: se é verdadeira, é verdadeira para todos. Ao mesmo tempo, não faz sentido afirmar que se deve dizer a verdade a uns e não a outros, pois a verdade não é um possível bem que pode ser apropriado por uns e não por outros. Portanto, a verdade não é dependente da vontade dos participantes de uma possível transferência de propriedade, do mesmo modo que o pode ser um carro ou uma casa. A conclusão é que uma noção como a de normas objetivas reguladoras de direitos de propriedade, por exemplo, não é aplicável ao caso da verdade de declarações. 3 Faculdade é a liberdade de realizar ou não uma ação dentro da lei estabelecida. Tem duas implicações: a liberdade do agente de fazer algo ou não, uma coisa ou outra; e a liberdade desse agente lhe é concedida pelo sistema jurídico em que está inserido. Por exemplo: alguém que tenha a propriedade de um automóvel. A sua relação com o automóvel, que é uma relação de propriedade, é possibilitada e garantida pelas leis vigentes, ou seja, o indivíduo tem o direito de dispor do automóvel como propriedade sua. Simultaneamente, ele pode ceder a propriedade do automóvel em troca de pagamento, por exemplo, vendendo-o a outra pessoa. Neste caso, vender o automóvel é uma decisão livre, e este ato de venda só é livre porque a relação do vendedor com o automóvel está definida juridicamente como uma relação de propriedade. Aqui se diz que ele tem a faculdade de entrar em contratos em torno da sua propriedade, ou seja, tem o direito de vender ou não seu automóvel, e aí o ato de venda é livre. Só faz sentido falar de contrato de compra e venda de objetos à luz de uma lei que garanta o direito de propriedade dos indivíduos, aí então se fala da faculdade jurídica de um indivíduo: esta é simultaneamente livre e fundada em uma lei particular que garante a propriedade de indivíduos sobre objetos. Só é possível ter uma faculdade juridicamente quando se tem direitos. 4 Uma ação pode ter apenas dois valores morais: ou ela é boa, ou ela é má. O valor moral de uma ação não se encontra na sua utilidade; não depende de seu objeto ou das suas consequências. O valor moral de uma ação encontra-se no princípio do querer, na máxima que determina a ação. Uma ação moralmente boa é aquela em que a máxima, ou seja, a norma efetivamente adotada pelo agente, pode ser universalizada. A máxima é uma norma de ação obtida da análise das ações praticadas por um
3 humano para com cada indivíduo 5, por maior que seja a desvantagem que isso ocasione a ele próprio ou a outra pessoa. Se eu torno falsa uma declaração, não cometo uma injustiça contra aquele que de maneira injusta me força a esta declaração. Mesmo assim, por uma tal falsificação que por isso também pode ser chamada de mentira (embora não no sentido dos juristas) eu cometo em geral uma injustiça na parte mais essencial do dever, isto é, na medida que depende de mim, eu faço com que declarações em geral não encontrem crédito algum. A consequência disto seria que todos os direitos fundados em contratos 6 seriam abolidos e perderiam agente. Seja o exemplo de que eu regularmente não minto; há várias possibilidades de compreender moralmente estes meus atos. Se eu não minto para ser considerado uma pessoa confiável, a máxima que efetivamente adoto neste caso é a seguinte: digo a verdade sempre sob a condição de ter reconhecida minha confiabilidade ; neste caso, a minha escolha por dizer a verdade ou não dizê-la está subordinada a outra determinação. Mas se eu não minto porque não devo mentir, porque devo dizer a verdade, a máxima efetivamente adotada é a seguinte: digo a verdade porque sempre se deve dizer a verdade. Neste caso, a escolha por dizer a verdade não está submetida a nenhuma outra condição. O critério para selecionar uma máxima moralmente aceitável, ou seja, uma máxima cuja adoção prática torne a minha ação moralmente boa, é o seguinte: devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima seja adotada como uma lei por qualquer outro agente. Todo e qualquer ser racional livre tem o dever estrito de agir do mesmo modo. O que Kant significa com dever formal é a determinação de sempre adotar máximas que satisfaçam dois critérios: que possam ser pensadas racionalmente sem contradição, e que não subordinem a uma condição particular a ação comandada por elas. Esse dever formal é o elemento de razão embutido na vontade. Aquele que quer agir de forma moralmente boa deve necessariamente respeitar uma lei moral. Respeito, aqui, é um sentimento que é o reconhecimento da subordinação da vontade a uma lei, sem nenhuma outra influência. Ou seja, respeitar a lei é um ato livre da vontade, por respeito à lei, e aquele que decide respeitá-la tem de, necessariamente, agir adotando máximas universalizáveis. 5 [Nota de Kant] Não pretendo aqui radicalizar o princípio até o ponto de dizer: Inveracidade é violação do dever para consigo mesmo. Pois este princípio pertence à ética, mas aqui está se falando de um dever de direito. - Naquela transgressão a doutrina da virtude só olha para o fato de que ele não vale nada, uma recriminação que o mentiroso faz recair sobre si mesmo. 6 O contrato mencionado no texto se refere a um acordo, um combinado estabelecido entre duas ou mais pessoas, firmado livremente pelos contratantes, como a compra e a venda de um bem, por exemplo. Neste caso, um dos contratantes se vê na obrigação de transferir o domínio de algo e o outro, de pagar-lhe por isto. Deve-se notar que a obrigação nestes casos está baseada no direito. Neste exemplo, trata-se de um conjunto de leis que regula as relações de contrato que indivíduos podem estabelecer entre si. Pode-se falar de um direito de contratos. Este direito é uma convenção que dá aos diferentes indivíduos a faculdade de entrarem em relações contratuais entre si por livre e espontânea vontade. Ora, se também for um direito mentir, isto significa que qualquer indivíduo que quiser estabelecer uma relação de contrato com outro pode saber de antemão que este outro tem o direito de mentir no momento de firmar o contrato. Por exemplo, se A quiser vender seu carro para B, sabendo que B tem o direito de mentir no ato de firmar o contrato, A saberá antes que se B não cumprir sua parte do contrato, A não tem como recorrer a nenhuma instância jurídica para fazer valer os seus direitos tal qual definidos no contrato. Na realidade, ainda assim A pode decidir-se por fazer o contrato, só que por sua própria conta e risco. Se se quiser formular este exemplo em termos conceituais, o direito à mentira não impediria que os indivíduos estabelecessem de fato relações de troca ou cessão de propriedade entre si, mas deixaria claro que perderiam qualquer direito de reclamar juridicamente do não cumprimento do contrato por parte do outro, o que no fundo inviabilizaria a convenção, ou seja, o
4 vigência. E isto é uma injustiça cometida em geral contra a humanidade. Portanto a mentira, definida apenas como uma declaração propositalmente não verdadeira feita a outro ser humano, não precisa do suplemento de que tenha que prejudicar a um outro, tal como o exigem os juristas para sua definição (mentira é fala em falso em prejuízo de outro). Pois ela prejudica sempre a um outro, se bem que não a um outro ser humano mas sim à humanidade em geral, ao tornar inutilizável a fonte do direito. Esta mentira benevolente pode, porém, por um acaso também ser passível de penalidade, segundo as leis civis; mas aquilo que escapa apenas por acaso ao enquadramento penal pode ser julgado como injustiça também segundo leis externas. Por exemplo, se alguém que agora mesmo está com ímpeto assassino é impedido por ti de passar ao ato mediante uma mentira tua, então és responsável de modo jurídico por todas as consequências que daí possam se originar. Mas se tiveres ficado rigorosamente na verdade, a justiça pública em nada te pode atingir, seja qual for a consequência imprevista. Mas no caso de teres honestamente respondido sim à pergunta relativa à presença em tua casa da pessoa da qual ele tem inimizade, é possível que esta pessoa tenha, contudo, saído sem ser notada e não esteja mais ao alcance do assassino, portanto é possível que o ato não tivesse ocorrido. Mas se mentiste e disseste que ela não estava em casa, e ela tivesse realmente saído (embora não o soubesses), e depois o assassino a encontrasse fugindo e executasse sua ação, podes com razão ser acusado de ser o autor da morte dela. Pois se tivesses dito a verdade tão bem quanto a sabias, então talvez o assassino, ao vasculhar a casa atrás do seu inimigo, tivesse sido pego pelos vizinhos que chegavam, e o ato sido impedido. Por conseguinte, quem mente, por mais benevolente que possa ser seu intuito, tem que responder pelas consequências disto, mesmo diante do tribunal civil, e pagar por isso, por mais imprevistas que possam ser essas consequências; porque veracidade é um dever que tem que ser considerado a base de todos os deveres a serem fundados sobre contrato, e a lei desses deveres torna-se vacilante e inútil caso se lhe conceda a mínima exceção. É, portanto, um mandamento sagrado da razão que ordena direito de contratos. Se fosse um direito mentir, então, não haveria qualquer garantia de direito para o cumprimento dos contratos.
5 incondicionalmente e que não cabe limitar por conveniência alguma: ser veraz (honesto) em todas as declarações. Bem pensada e simultaneamente correta é a observação do Sr. Constant sobre a recriminação a esses princípios rigorosos que em vão se perdem em ideias irrealizáveis, e por isso são rejeitáveis. Cada vez que, diz ele, um princípio demonstrado como verdadeiro parece inaplicável, isto provém do fato de que não conhecemos o princípio intermediário que contém o meio da aplicação. Cita a doutrina da igualdade como o primeiro elo que forma a cadeia social: a saber, que nenhum ser humano pode ser obrigado de outro modo senão por leis para cuja formação ele mesmo também contribuiu. Em uma sociedade muito pouco numerosa este princípio pode ser aplicado de modo imediato e não precisa, para se tornar habitual, de nenhum princípio intermediário. Mas em uma sociedade muito numerosa temos que acrescentar ainda um novo princípio àquele que aqui citamos. Este princípio intermediário é o seguinte: que os indivíduos possam contribuir para a formação das leis ou em pessoa ou mediante representantes. Quem quisesse aplicar o primeiro princípio a uma sociedade numerosa sem recorrer também ao princípio intermediário, ocasionaria infalivelmente a destruição dela. Só que esta circunstância, que apenas testemunharia da ignorância ou da inabilidade do legislador, nada demonstraria contra o princípio. Conclui deste modo: Um princípio reconhecido como verdadeiro, portanto, jamais tem que ser abandonado, mesmo que aparentemente também haja perigo aí. (E mesmo assim o bom homem havia ele próprio abandonado o princípio incondicional da veracidade devido ao perigo que traria para a sociedade; pois não pôde descobrir nenhum princípio intermediário que servisse para prevenir esse perigo, e aqui também realmente não há nenhum a intercalar). Caso se queira conservar os nomes das pessoas tal como foram citadas aqui: o filósofo francês confundiu a ação pela qual alguém prejudica um outro ao dizer a verdade, cuja confissão ele não pode contornar, com a ação mediante a qual comete uma injustiça contra esse outro. Foi apenas por um acaso que a veracidade da declaração prejudicou o habitante da casa, não foi por um ato livre (no sentido jurídico). Pois do meu direito de exigir de um outro que deva mentir para minha vantagem seguir-se-ia uma exigência em conflito com toda legalidade. Cada ser
6 humano, porém, tem não somente o direito, mas até mesmo o mais estrito dever de veracidade em declarações que ele não pode contornar, mesmo que elas lesem a ele próprio ou a outros. Ele mesmo, portanto, não causa com isso propriamente nenhum prejuízo a quem o sofre, mas é o acaso que causa este prejuízo. Porque neste caso aquele indivíduo de modo algum é livre para escolher, porquanto a veracidade (uma vez que seja obrigado a falar) é um dever incondicionado. - O filósofo alemão não deverá portanto admitir como princípio seu a seguinte proposição: dizer a verdade é um dever, mas somente para com aquele que tem o direito à verdade. Em primeiro lugar, a fórmula do princípio não é clara, uma vez que a verdade não é uma propriedade sobre a qual o direito possa ser concedido a um, mas recusado a outro. Em segundo lugar, porém, o principal é que o dever de veracidade (do qual unicamente aqui se trata) não faz qualquer distinção entre pessoas para com as quais se possa ter este dever, ou para com as quais é possível desvencilhar-se dele, pois é um dever incondicionado válido em quaisquer condições. Ora, para passar de uma metafísica do direito (que abstrai de todas as condições da experiência) a um princípio da política (que aplica estes conceitos a casos da experiência) e chegar por meio deste à solução de uma tarefa de política conforme o princípio universal do direito, o filósofo proporá três coisas. Em primeiro lugar, proporá um axioma, isto é, uma proposição apoditicamente 7 certa que resulta imediatamente da definição do direito exterior (concordância da liberdade de um indivíduo com a liberdade de cada outro indivíduo, segundo uma lei universal). Em segundo lugar, proporá um postulado da lei pública exterior (enquanto vontade unificada de todos segundo o princípio da igualdade, sem a qual não teria lugar liberdade alguma de cada um). Em terceiro lugar, proporá o problema de como proceder para que numa sociedade, por maior que seja, mantenha-se a concórdia segundo princípios de liberdade e igualdade (a saber, mediante um sistema representativo). Este terceiro ponto será então um princípio da política, cuja organização e disposição conterão decretos que, tirados do conhecimento de experiência dos seres humanos, visam apenas ao mecanismo da administração do 7 Para Kant, um juízo é apoditicamente certo quando enuncia algo que é universal e necessariamente verdadeiro. Ocorre, por exemplo, em definições matemáticas: um círculo é uma curva fechada em que todos os pontos são equidistantes do centro.
7 direito e à maneira como este será adequado a seu fim. - O direito jamais tem que ser adaptado à política, mas sim a política sempre ao direito. Um princípio reconhecido como verdadeiro (e acrescento: reconhecido a priori, e portanto apodítico) 8 não tem jamais que ser abandonado, por mais que pareça haver um perigo nele, diz o autor. Só que se tem que compreender aqui não o perigo de (acidentalmente) causar dano, mas em geral o de cometer uma injustiça: o que aconteceria se eu fizesse com que o dever de veracidade, que é inteiramente incondicionado e constitui nas declarações a condição suprema do direito, se tornasse um dever condicionado e ainda o tornasse subordinado a outras considerações. Embora por uma certa mentira eu não cometa uma injustiça com ninguém no ato, contudo leso em geral o princípio do direito no que se refere a todas as declarações incontornavelmente necessárias (cometa uma injustiça formalmente, embora não materialmente). Isto é ainda muito pior do que cometer uma injustiça contra um indivíduo qualquer, pois uma tal ação nem sempre pressupõe um princípio para tanto no sujeito 9. Se alguém, ao receber de um outro a seguinte pergunta: queres ou não queres ser veraz numa declaração que deves fazer agora?, já não acolher esta pergunta indignado com a suspeita manifesta para com ele de que ele também possa ser um mentiroso, mas solicitar a permissão de primeiro refletir sobre possíveis exceções, já é um mentiroso (em potência) 10. Tal se dá porque ele mostra que não 8 A priori: em Kant, a razão é uma estrutura vazia, uma forma pura sem conteúdos. Essa estrutura é universal e não é adquirida através da experiência. Por não depender da experiência para existir, a razão é, do ponto de vista do conhecimento, anterior à experiência. Assim, a estrutura da razão é a priori (vem antes da experiência e não depende dela). Porém, os conteúdos conhecidos pela razão dependem da experiência. Sem ela, a razão seria sempre vazia, inoperante, nada conhecendo. Assim, a experiência fornece a matéria (os conteúdos) do conhecimento para a razão e esta, por sua vez, fornece a forma (universal e necessária) do conhecimento. A matéria do conhecimento, por ser fornecida pela experiência, vem depois desta e por isso é, no dizer de Kant, a posteriori. 9 A obscuridade presente nesta frase encontra-se também no texto original. Sugerimos uma possível interpretação: uma injustiça cometida por um sujeito com base em um princípio que a legitime fere todo o princípio do direito e, logo, a humanidade em geral; e esta injustiça pretensamente fundada em um princípio é pior do que uma injustiça particular cometida sem a pressuposição de um princípio legitimador. 10 O que Kant está dizendo nessa passagem é que o homem que procura brechas por onde poderia cometer injustiças sem ser punido, já é um injusto. No caso da mentira segue-se o mesmo raciocínio. Aquele que em dada circunstância hesita se deve ou não dizer a verdade, já é para Kant um mentiroso, apenas lhe falta a ocasião para que minta. Importante ter em mente que o em potência não se refere
8 reconhece a veracidade como um dever por si mesmo, mas se reserva a abrir exceções a uma regra que, segundo sua essência, não é capaz de exceção alguma, pois a regra se contradiria diretamente na exceção. Todos os princípios jurídicos práticos têm que conter verdade rigorosa. Os aqui assim chamados princípios intermediários somente podem conter a determinação mais próxima da aplicação desses princípios jurídicos a casos que ocorrem (segundo regras da política), mas jamais conter exceções a esses princípios, pois estas exceções aniquilam a universalidade unicamente devido à qual eles portam o nome de princípios. ao sentido de possibilidade, no caso, de ser mentiroso como capacidade de mentir - capacidade esta que todos estamos aptos a realizar, se quisermos. Esse alguém referido no texto já é um mentiroso, pois busca os meios de cometer a injustiça sem ser pego, como fica claro no prosseguimento do texto.
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