o PROCESSO DE CONSTRU~AO DA LEITURA E ESCRITA COMO MEDIADOR PARA A DESCONSTRU~AO DA "DEFICIENCIA"

Transcrição

1 o PROCESSO DE CONSTRU~AO DA LEITURA E ESCRITA COMO MEDIADOR PARA A DESCONSTRU~AO DA "DEFICIENCIA" ABSTRACT: The aim of this research is to verify the strategies used by a student considered "deficient"during his process of reading and writing acquisition. I intend to contribute for the theoretical discussion about the role of the interlocutor in this process. o trabalho ora apresentado e resultado de inquieta~oes acerca dos chamados "DistUrbios de Aprendizagem" que fazem parte do cotidiano de contingentes importantes da clientela escolar, principalmente de nossas escolas ptiblicas. o interesse pelo tema "Dificuldades ou DistUrbios de Aprendizagem" teve inicio ja na epoca da gradua~io, com a contribui~iio da LingUistica, atraves de textos oferecidos pelas disciplinas de Psicolinguistica, Sociolinguistica, Semantica, entre outras. A abordagem teorica do Curso fez-me repensar minha propria visio de linguagem, levando-me a rever conceitos a respeito da nossa lingua, redimensionando criterios de certo/errado quanto ao ensino da leitura e escrita em lingua materna. Na pos-gradua~ao, como ja havia decidido pesquisar as dificuldades encontradas pelas crian~as na fase de aprendizado da leitura e escrita, busquei bibliografia que tratasse do tema. Essa bibliografia, composta, principalmente de textos que discutem as questoes de linguagem enquanto urn objeto dinamico, social, historico, mumvel, e outros que tratam a aquisi~io da lingua escrita como urna contra parte da lingua falada, apresentando suas nuances e diferen~as, foram fundamentais para embasar 0 percurso da pesquisa. Inieiei 0 trabalho de pesquisa aeompanhando urn sujeito multi-repetente (V. - (15:03) - 4" serie escolar) eom diagnostico de "Difieuldades de Aprendizagem". Este aluno foi encaminhado com solicita~lo de eonsulta neurologiea para urn Hospital Universitario, por urn Centro de Reabili~o Espeeialda eidade onde reside, 0 qual havia atendido a erian~a por urn periodo de dois anos, a partir de encaminhamento feito pela escola. 0 Centro esperava, com 0 atendimento em urn servi~o de same de maior porte, "dispor de esclarecimentos para melhor compreensao do caso". As atividades desenvolvidas com 0 aluno estavam baseadas em leitura, escrita e reescrita de textos esponmneos. A inten~ao era leva-lo a ler e escrever, ja que afmnava nao ser eapaz de fazer isto (porque ja fora convencido desta incapacidade). 0 material oferecido para leitura era composto de textos infantis (em principio), os quais eram levados pela crian~a que tentava realizar a leitura em casa' e trazidos em encontros posteriores para discussio e/ou leituras conjuntas. A produ~ao escrita, tamoom realizada previamente, era reelaborada, de forma que pudesse ser trabalhado com 0 aluno a coesao e coerencia textuais.

2 A suposil;ao para as dificuldades apresentadas pelo aluno era de que esta estava ligada a ausencia de atividades de leitura e escrita no universo escolar que apresentem sentido para os aprendizes, dificultando 0 aprendizado e propiciando retenl;oes que originam os supostos "disrurbios de aprendizado". Essa deficiencia da escola e imputada aos aprendizes, os quais, apos varias reproval;oes, acabam assimilando que sao "incapazes" de aprender a ler e escrever. Essa incapacidade, gerada, muitas vezes, pelo proprio universo escolar tern influenciado na construl;ao do rotulo.de "doentes", principalmente, para alunos pertencentes as classes sociais desfavorecidas, a medida que estes naoconseguem alcanl;ar 0 rendimento estipulado pelaescolano que diz respeito aos parametros estabelecidos pelos programas de ensino de leitura e escrita voltados para a alfabetizal;ao. Supondo que as dificuldades existentes no sistema escolar estao relacionadas ao ensino, busquei com a pesquisa' verificar as reflexoes implementadas por este sujeito rotulado como "deficiente", no processo de leitura, produl;ao e refacl;ao de textos escritos. Alem disso, 0 trabalho vislurnbrava a possibilidade de desmistificar a "incompetencia" assui}1idapeloproprio sujeito"de forma que pudesse influenciar no resgate de sua crenl;a quanto a capacidade de aprender: A escolha pelo trabalho com a escrita e reescrita de textos espontaneos estli ligada a crenl;a de que este tipo de atividade proporciona reflexoes sobre a linguagem escrita e seu funcionamento, ancoradas no codhecimentoprevio dos aprendizes, de forma que ao traduzirem, na escrita, as suas impressoes de mundo, alem de construirem 0 objeto escrita, tambem se constituam enquanto sujeit'os. Parte dos dados para a pesquisaforam coletados atraves das atividades ja citadas. As infoimal;oes relacionadas as atividades de interal;ao com a crianl;a foram gravadas em audio-tape e diario. Essasatividades eram desenvolvidas em encontros mensais mantidos com a crianl;a, com; aproximadamente, noventa minutos de dural;ao. Os encontros aconteceram, inicialmente, no IEL-UNICAMP (sala do Projeio Integrado de Pesquisa - Leitura ee,scrib\),mlj.s i~corporaram 6utros espa~os (residenc.a:da crian~a e da pesquisadora) em ~iip.de dificuldades encontradas pelo aluno para: se deslocar da cidade onde reside ate a Univcrsidade. Tambem farao parte do~~6njunto de. dados queestiio sendo analisados material escrito pel~ crilpll;atill. trpara a:'escola, conversa~oes mantidas com 0 aluno, sua mae.e av6' e carta de sua' professora para uma psicoioga,' relatando seusproblernas de aprendizagem na escola~ Os textos 02,.03 e 04 e 05, ilustiados; no anexo, estiio em processo de analise. Os!res priinefrosfextos foram produzidos em ago~to/97, e referem-se as primeirasproducoes escritas da crian~a. Por' tratarem de urn tnesmo assunto, solicitei a reelabora~iio (texto 05), que foi realizada pelo aprendiz e trazida para discussiio, em urn encontro posterior a solicita~ao. Estou analisando as mudan~as feitas, na segunda versao escrita, tomando por base os textos anteriores. Verificando a reescrita, e possivel perceber que 0 aluno realizou mudan~as substanciais por ocasiao da segunda versao, principalmente por te-ia refeito sozinho. As mudanl;as realizadas apontam urn processo reflexivo que indicia a preocupa~ao da crian~a com a convenl;ao ortogrifica, com as exigencias da modalidade escrita e com 0 interlocutor a quem se destina a sua enuncia~ao. A preocupal;ao do aluno, inscrita ja na primeira versao, e ampliada no processo de reescrita, como podemos perceber ao levantar as possiveis hipoteses sugeridas pelas mudan~as

3 apresentadas na segunda versao. Atraves das falas da professora, da mile e da avo da crian~a, pretendo verificar como vai sendo consolidada a situa~ao de incapacidade do aluno, levando-o a afirmar que nao sabe ler e escrever, mesmo ja cursando atualmente a 4' serie escolar. o material escrito na e para a escola tambem sera analisado, tendo em vista a afirma~ao da professora que 0 aluno e muito desatento, escreve quase nada (lias vezes so 0 cabe~alho"), e, ao verificar os seus cademos, estes apresentam muita escrita (talvez nao seja a produ~ao esperada pela escola) que, do meu ponto de vista, poderia ser avaliada como urn importante trabalho do aprendiz, rumo ao aprendizado da lingua escrita. Para desenvolver a pesquisa, inicialmente, busquei fundamenta~ao teorica no trabalho de Vigotsky (1930)', tendo em vista que sua perspectiva teorica aborda a dimensao social no desenvolvimento hurnano, explicando a origem das fun~oes mentais superiores, atraves das rela~oes sociais que 0 individuo mantem com 0 seu mundo exterior. De acordo com essa teoria, 0 homem se constitui na/pela intera~ao com 0 mundo, com os objetos, atraves da media~ao de urn terceiro elemento que compreende 0 outro, 0 signo e 0 instrumento. E a intera~ao com 0 "outro" que possibilita a crian~a compreender e significar 0 mundo; ou seja, e 0 "outro" que impregna de sentido as a~oes da crian~a, que recorta, aponta, fomece indicativos e apresenta os conhecimentos historicamente construidos (a cultura). 0 instrumento serve como condutor da influencia humana sobre 0 objeto da atividade a nivel extemo, enquanto 0 signo constitui urn meio da atividade intema dirigida para 0 controle do proprio individuo. Segundo Vigotsky, e de particular importancia para 0 desenvolvimento dos processos mentais superiores a transforma~ao da atividade que utiliza signos, cuja historia e caracteristicas sao ilustradas pelo desenvolvimento da inteligencia prlitica, da aten~ao voluntaria e da memoria. Segundo 0 autor, 0 individuo intemaliza atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas, tendo como base a opera~ao com signos. Essa intemaliza~ao e vista como urn processo de aprendizado ocorrendo num ambiente que e historico e, essencialmente, social. 0 sujeito historico desse processo e ativo nas rela~oes estabelecidas em seu meio, as quais se desenvolvem atraves da. media~ao do "outro" e de aparatos desenvolvidos historicamente, proporcionando ao grupo a organiza~ao de formas de a~ao cada vez mais complexas e elaboradas. Bakhtin (1929)2 e outra importante fonte de fundamenta~ao teorica para a verifica~ao do papel do "outro" enquanto mediador na constru~ao do conhecimento. 0 autor ve 0 processo de intera~ao social como constitutivo da consciencia humana, afirmando que a unica defini~ao possivel da consciencia e de ordem sociologica. 0 meio onde se da a comunica~ao esta repleto de signos criados por urn grupo organizado, que confere significa~ao ao sistema de signos a partir de referenciais ideologicos que sao determinantes para a constitui~ao da consciencia dos individuos. I Estou utilizando a vers40 de Estou utilizando a vers40 de 1992,6'. edi'y40

4 Como todo signo e ideol6gico e resulta de urn consenso entre individuos socialmente organizados no decorrer de urn processo de intera~iio,com 0 signo lingiiistico niio poderia ser diferente. Na opiniao de Bakhtin, este ve-se marcado pelo horizonte social de uma epoca e de urn grupo social determinados. Os processos de transforma~ao ideol6gica refletem-se na lingua em grande escala, tendo em vista que no sistema lingiiistico sao confrontados indices de valor contradit6rios. Essa contradi~ao surge a medida que classes sociais distintas utilizam urn mesmo c6digo ideol6gico de comunica~ao para expressarem rela~oes e visoes de mundo antagonicas. Nesse contexto, o signo se toma a arena onde se desenvolve a luta de classes. Assumindo a lingua enquanto urn sistema mutilvel, Bakhtin argumenta que esta niio pode ser transmitida de gera~ao a gera~ao como urn sistema acabado. Os usuarios do sistema lingiiistico penetram na corrente da comunica~ao verbal, inscritos num contexto hist6rico e social, propiciador do despertar da consciencia dos individuos. 0 aprendizado da lingua materna ocorre em contextos evolutivos e dinamicos que, necessariamente, provocam mudan~as na estrutura do sistema lingiiistico. 0 processo de assimila~ao de um sistema pronto s6 e considerado quando adquire-se uma lingua estrangeira, mas, mesmo assim, para a aquisi~iio ha a dependencia de uma consciencia ja constituida, atraves da lingua materna. Consciencia esta, cuja forma~iio se da atraves da expressao-enuncia~ao que organiza, modela e determina a orienta~ao da atividade mental. RESUMO: 0 objetivo desta pesquisa e verificar as estrategias utilizadas por um sujeito multi-repetente, rotulado como "deficiente, no processo de aquisi~ao da leitura e escrita. Pretendo contribuir para a discussao do papel do "OutrolInterlocutor", a partir de analise das trocas interlocutivas ocorridas entre pesquisadora e sujeito real da pesquisa. ANEXOS Texto02

5

6 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas Jundamentais do Metodo Socio/6gico na Ciencia da Linguagem. Sio Paulo: Hucitec: COLLARES, Cecilia Azevedo Lima e MOYSES, Maria Aparecida Affonso. Preconceitos no Cotidiano Escolar: Ensino e Medica/izafiio. Sio Paulo: Cortez: Campinas: Unicamp/Faculdade de Educa~io/Faculdade de Ciencias Medicas, GERALD!, Joio Vanderley. Portos de Passagem. Sio Paulo: Martins Fontes, (Texto e Linguagem). GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: Moryologia e Historia. Tradu~io: Federico Carotti. Sio Paulo: Editora Schwarcz:, KOCH, Ingedore VilIa9a. A Coesiio Textual. Sio Paulo: Contexto, 1993 (Repensando a lingua portuguesa). A inter - afiio pela Linguagem. Paulo: Contexto, 1995 (Cole9io Repensando a Lingua Portuguesa). VYGOTSKY, Lev Semenovich et a1. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. Sio Paulo: icone: Editora da Universidade de Sio Paulo, VYGOTSKY, Lev Senenovich. A Formafiio Social da Mente: 0 Desenvolvimento dos Processos Mentais Superiores. Silo Paulo: Martins Fontes, 1998 (Psicologia e Pedagogia). Pensamento e Linguagem. Trad~io - Jefferson Luiz de Camargo. Revisao Tecnica - Jose Cipolla Neto. Sio Paulo: Martins Fontes, 1993 (Psicologia e Pedagogia).