Síndrome cardiorrenal e suas implicações fisiopatológicas [107]

Documentos relacionados
Síndrome Cardiorrenal. Leonardo A. M. Zornoff Departamento de Clínica Médica

Fisiologia e princípios pios do uso de vasopressores e inotrópicos. Pedro Grade

Fisiologia Renal. Arqueada. Interlobar. Segmentar. Renal

INSUFICIÊNCIA CARDÍACA COM FUNÇÃO VENTRICULAR PRESERVADA. Dr. José Maria Peixoto

Hidroclorotiazida. Diurético - tiazídico.

Integração: Regulação da volemia e fisiopatologia da hipertensão arterial

1 - Excreção de substâncias. 2 - Regulação do equilíbrio eletrolítico. 3 - Regulação do equilíbrio ácido-básico

Farmacologia cardiovascular

Mantém pressão sanguínea e garante adequada perfusão e função dos tecidos corporais

Uso de medicamentos em situações de urgência de enfermagem. Farmácia de urgência.

Comumente empregadas nos pacientes graves, as drogas vasoativas são de uso corriqueiro nas unidades de terapia intensiva e o conhecimento exato da

Choque hipovolêmico: Classificação

Nefropatia Diabética. Caso clínico com estudo dirigido. Coordenadores: Márcio Dantas e Gustavo Frezza RESPOSTAS DAS QUESTÕES:

Síndromes Coronarianas Agudas. Mariana Pereira Ribeiro

INTRODUÇÃO LESÃO RENAL AGUDA

DROGAS VASODILATADORAS E VASOATIVAS. Profª EnfªLuzia Bonfim.

CASO CLÍNICO. O fim do mundo está próximo José Costa Leite Juazeiro do Norte Ceará

Terapêutica diurética e mecanismos de resistência diurética. Pedro Pereira Campos S. Nefrologia (Director: Dr. Pedro Correia)

APARELHO URINÁRIO (III)

Mantém pressão sanguínea e garante adequada perfusão e função dos tecidos corporais

Introdução ao Protocolo

CONTROLE HIDROELETROLÍTICO

Estrutura néfron e vascularização

Preditores de lesão renal aguda em doentes submetidos a implantação de prótese aórtica por via percutânea

Reabsorção tubular. substâncias. reabsorção tubular.

ONTARGET - Telmisartan, Ramipril, or Both in Patients at High Risk for Vascular Events N Engl J Med 2008;358:

Sistema Urinário. Patrícia Dupim

Rim: Aliado ou inimigo? Miguel Nobre Menezes João R. Agostinho. Serviço de Cardiologia, CHLN, CAML, CCUL

ENFERMAGEM DOENÇAS CRONICAS NÃO TRANMISSIVEIS. Doença Cardiovascular Parte 2. Profª. Tatiane da Silva Campos

Seminário ME3: Choque. Orientador: Gabriel MN Guimarães

INSUFICIÊNCIA CARDÍACA. Leonardo A. M. Zornoff Departamento de Clínica Médica

MEDICAMENTOS QUE ATUAM NO SISTEMA CIRCULATÓRIO

SÍNDROMA CARDIO-RENAL TIPO I: BIOMARCADORES E ABORDAGEM TERAPÊUTICA

FISIOLOGIA HUMANA. Sistema Renal - Filtração Glomerular - Prof. Fernando Zanoni

Glomerulonefrite Membranosa Idiopática: um estudo de caso

Hipoalbuminemia mais um marcador de mau prognóstico nas Síndromes Coronárias Agudas?

Edema OBJECTIVOS. Definir edema. Compreender os principais mecanismos de formação do edema. Compreender a abordagem clínica do edema

HEMODINÂMICA SISTEMA CARDIOVASCULAR. Rosângela B. Vasconcelos

Coração Normal. Fisiologia Cardíaca. Insuficiência Cardíaca Congestiva. Eficiência Cardíaca. Fisiopatogenia da Insuficiência Cardíaca Congestiva

Angina Estável: Estratificação de Risco e Tratamento Clínico. Dr Anielo Itajubá Leite Greco

Serviço de Cardiologia do Hospital de Braga

FISIOLOGIA DO SISTEMA CIRCULATÓRIO. Prof. Ms. Carolina Vicentini

Faculdade Maurício de Nassau. Disciplina: Farmacologia

INSUFICIÊNCIA CARDÍACA

Medicações do Sistema Cardiovascular. Disciplina Farmacologia Profª Janaína Santos Valente

A hipertensão arterial sistêmica (HAS) é uma condição clínica multifatorial caracterizada por níveis elevados e sustentados de pressão arterial (PA).

Insuficiência Cardíaca Aguda (ICA) Leonardo A. M. Zornoff Departamento de Clínica Médica

HOMEOSTASE Entrada + Produção = Utilização + Saída. sede BALANÇO DA ÁGUA. formação de urina INGESTÃO DE ÁGUA PERDA DE ÁGUA (*)

Quando a decisão é um inotrópico... Qual a melhor escolha? Luis Sargento, Serviço de Cardiologia II, Hdia Insuf Cardiaca, CHLN

A-Diuréticos inibidores da anidrase carbônica B-Diuréticos de alça ou potentes

FARMACOCINÉTICA FARMACODINÂMICA FARMACOCINÉTICA CONCEITOS PRELIMINARES EVENTOS ADVERSOS DE MEDICAMENTOS EAM. Ação do medicamento na molécula alvo;

FARMACOLOGIA 10 CONTINUAÇÃO DA AULA ANTERIOR

FARMACOLOGIA. Aula 11 Continuação da aula anterior Rim Diuréticos Antidiuréticos Modificadores do transporte tubular ANTIGOTOSOS

TALITA GANDOLFI PREVALÊNCIA DE DOENÇA RENAL CRÔNICA EM PACIENTES IDOSOS DIABÉTICOS EM UMA UNIDADE HOSPITALAR DE PORTO ALEGRE-RS

Drogas Vasoativas. Drogas Vasoativas. ticos. Agentes Simpatomiméticos. ticos. ricos, São substâncias que apresentam efeitos vasculares periféricos,

aca Tratamento Nelson Siqueira de Morais Campo Grande MS Outubro / 2010

Filtração Glomerular. Prof. Ricardo Luzardo

Filtração Glomerular

Diuréticos. Classificação da diurese. FUNÇÕES RENAIS A manutenção do meio interno através s da: Secreção de hormônios. Excreção de drogas

ESTUDO DIRIGIDO SOBRE FISIOLOGIA RENAL. Abaixo, encontram-se os pontos que precisam ser estudados na área de Fisiologia Renal.

APARELHO URINÁRIO I (Funções, anátomo-fisiologia, FG e DR)

Controle do Fluxo e da Pressão Sanguínea

FÁRMACOS ANTI-HIPERTENSIVOS

Anatomia funcional do rim Função renal

REGULAÇÃO DA PRESSÃO ARTERIAL. Sistema Cardiovascular

Filtração Glomerular. Prof. Ricardo Luzardo

CONTROLE DO SISTEMA CARDIOVASCULAR

Classificação. Diuréticos Tiazídicos Hidroclorotiazida Diuréticos de Alça Furosemida Diuréticos Poupadores de Potássio Espironolactona e Amilorida

Marcos Barrouin Melo, MSc CURSO DE EMERGÊNCIAS EV UFBA 2008

Fisiologia do Sistema Urinário

FISIOPATOLOGIA. Diabetes Mellitus, Hipertensão Arterial, Dislipidemia e Infecção

Abordagem ao paciente em estado de choque. Ivan da Costa Barros Pedro Gemal Lanzieri

RELATÓRIO DE AVALIAÇÃO DO PEDIDO DE COMPARTICIPAÇÃO DE MEDICAMENTO PARA USO HUMANO

Insuficiência Cardíaca

ENFERMAGEM DOENÇAS CRONICAS NÃO TRANMISSIVEIS. Doença Cardiovascular Parte 4. Profª. Tatiane da Silva Campos

PROTOCOLO MÉDICO PADRONIZAÇÃO DO USO DE DROGAS VASOATIVAS

AVALIAÇÃO DA TAXA DE FILTRAÇÃO GLOMERULAR EM CÃES OBESOS RESUMO

Reconhecendo os agravos clínicos em urgência e emergência. Prof.º Enfº. Diógenes Trevizan

Curso Avançado em Gestão Pré-Hospitalar e Intra-Hospitalar Precoce do Enfarte Agudo de Miocárdio com Supradesnivelamento do Segmento ST

Universidade Federal do Ceará Faculdade de Medicina Departamento de Fisiologia e Farmacologia Atividade de Monitoria

R1CM HC UFPR Dra. Elisa D. Gaio Prof. CM HC UFPR Dr. Mauricio Carvalho

FISIOLOGIA CARDIORESPIRATÓRIA. AF Aveiro Formação de Treinadores

Disciplina: Clínica Médica de Pequenos Animais

Síndrome Cardiorenal Agudo: Fisiopatologia e Terapêutica

26/10/2018. A osmolaridade pode ser entendida como a proporção entre solutos e água de uma solução.

PROTOCOLO MÉDICO INSUFICIÊNCIA CARDÍACA NA UNIDADE DE EMERGÊNCIA. Área: Médica Versão: 1ª

Aula 05 DIABETES MELLITUS (DM) Definição CLASSIFICAÇÃO DA DIABETES. Diabetes Mellitus Tipo I

Detecção precoce de cardiotoxicidade no doente oncológico deve ser efectuada sistematicamente? Andreia Magalhães Hospital de Santa Maria

Impacto prognóstico da Insuficiência Mitral isquémica no EAM sem suprast

XXXV Congresso Português de Cardiologia Abril ú ç

Fisiologia Renal. Filtração e hemodinâmica renal e transporte no néfron. Prof Ricardo M. Leão FMRP-USP

COMO CONTROLAR HIPERTENSÃO ARTERIAL?

d) Aumento da atividade da bomba hidrogênio-potássio e) Aumento da atividade da fosfatase miosínica

Curso de Reciclagem em Cardiologia ESTENOSE VALVAR AÓRTICA

artéria renal arteríola aferente capilares glomerulares artéria renal capilares glomerulares veia renal

A Ultrafiltração no Tratamento da Síndrome Cardio-Renal

FISIOTERAPIA PREVENTIVA

Particularidades no reconhecimento da IRA, padronização da definição e classificação.

BIOQUÍMICA II SISTEMAS TAMPÃO NOS ORGANISMOS ANIMAIS 3/1/2012

Transcrição:

ARTIGOS DE REVISÃO Síndrome cardiorrenal e suas implicações fisiopatológicas [107] FRANCISCA DIAS DE CASTRO, PAULO CASTRO CHAVES, ADELINO F. LEITE-MOREIRA Serviço de Fisiologia, Faculdade de Medicina do Porto, Porto, Portugal Rev Port Cardiol 2010; 29 (10): 1535-1554 RESUMO A síndrome cardiorrenal é uma condição fisiopatológica na qual existe uma combinação de disfunção cardíaca e renal que amplifica a progressão da falência individual destes órgãos e que implica um aumento significativo da morbilidade e mortalidade neste grupo de doentes. A incidência desta síndrome tem aumentado já que a esperança média de vida é cada vez maior e os doentes sobrevivem mais tempo com disfunção cardíaca e/ou renal. O presente trabalho tem como objectivo a revisão dos avanços mais recentes nesta área. Para melhor compreensão e sistematização desta síndrome sugere-se uma classificação em vários subtipos (I-V). O tipo I reflecte o agravamento súbito da função cardíaca que provoca lesão renal aguda. O tipo II resulta de perturbações crónicas da função cardíaca (insuficiência cardíaca crónica) que induzem lesão renal progressiva e potencialmente irreversível. O tipo III consiste no agravamento súbito e primário da função renal (lesão renal aguda) que provoca disfunção cardíaca aguda (insuficiência cardíaca, arritmia ou isquemia). O tipo IV surge quando a doença renal crónica contribui para a diminuição da função cardíaca, hipertrofia ventricular, disfunção diastólica e/ou aumento do risco de eventos cardiovasculares adversos. O tipo V reflecte patologia sistémica que Cardiorenal syndrome and its pathophysiological implications ABSTRACT Recebido para publicação: Junho 2010 Aceite para publicação: Julho 2009 Received for publication: June 2010 Accepted for publication: June 2009 Cardiorenal syndrome is a pathophysiological condition in which combined cardiac and renal dysfunction amplifies individual organs failure progression. Therefore, morbidity and mortality is higher in this group patients. Its incidence has increased due to increased longevity and because patients survive more years with cardiac and/or renal dysfunction. The aim of the present paper is the revision of the most recent advances in this area. For a better comprehension and systematization of this syndrome it is suggested a classification in various subtypes (I-V). Type I reflects an abrupt worsening of cardiac function leading to acute kidney injury. Type II results from chronic abnormalities in cardiac function (chronic heart failure) causing progressive and potentially irreversible kidney disease. Type III consists of an abrupt worsening of renal function (acute kidney lesion) causing acute cardiac dysfunction (heart failure, arrhythmia or ischemia). Type IV describes a state of chronic kidney disease contributing to decrease cardiac function, ventricular hypertrophy, and/or increased risk of adverse cardiovascular events. Type V reflects a systemic condition causing both 1535

Rev Port Cardiol Vol. 29 10 / October 10 provoca disfunção cardíaca e renal simultânea. A utilização clínica de vários biomarcadores identificados recentemente pode ser uma ferramenta adicional no diagnóstico precoce e estratificação desta síndrome. Esta classificação pode ser particularmente útil na identificação das perturbações subjacentes e no estabelecimento de uma estratégia terapêutica eficaz. Palavras-chave: Síndrome cardiorrenal; Insuficiência cardíaca; Insuficiência renal; Lesão renal aguda; Resistência aos diuréticos; Biomarcadores. cardiac and renal dysfunction. The clinical use of recently identified biomarkers can be an additional tool in the early diagnosis and stratification of this syndrome. This classification can be particularly useful in the identification of underlying abnormalities and in the establishment of an effective therapeutic approach. Key-words: Ardiorenal syndrome; Heart failure; Renal failure; Acute kidney injury; Diuretic resistance; Biomarkers. 1536 INTRODUÇÃO Uma percentagem elevada de doentes admitidos nos cuidados de saúde hospitalares apresenta graus variáveis de disfunção renal e cardíaca (1). Apesar do reconhecimento crescente da co-existência de alterações da função cardíaca e renal no mesmo doente, ou síndrome cardiorrenal, os processos fisiopatológicos subjacentes ainda não são totalmente conhecidos e não existe consenso em relação ao diagnóstico e à abordagem mais apropriada para este problema (2). Esta síndrome não se caracteriza apenas pela iniciação e/ou progressão da insuficiência renal secundária à falência cardíaca, mas também pelos efeitos negativos da redução da função renal no sistema cardiovascular (3). Tendo em conta que os doentes com insuficiência cardíaca sobrevivem mais e durante mais tempo e morrem cada vez menos de arritmias primárias, é expectável que esta síndrome já tão prevalente se torne ainda mais frequente (2). Também a prevalência de doentes com insuficiência renal crónica terminal e disfunção renal moderada está a aumentar (4). Assim, é necessário desenvolver uma definição mais abrangente no que diz respeito à apresentação clínica, à fisiopatologia, ao diagnóstico e à abordagem terapêutica no sentido de explorar a natureza complexa da síndrome cardiorrenal e dos seus diferentes subtipos (3). Durante esta revisão serão abordadas a epidemiologia, a fisiopatologia e a abordagem terapêutica dos diferentes subtipos da síndrome cardiorrenal, bem como novos métodos de detecção precoce desta síndrome. Definição Tendo em conta a prevalência crescente de disfunção renal e de disfunção cardíaca e da relação de reciprocidade que se verifica entre estas entidades, sugere-se que exista uma síndrome em que estas duas condições coexistam (3). Ainda não existe uma definição clara para a síndrome cardiorrenal (5, 7). A definição mais apropriada, e que valoriza os mecanismos fisiopatológicos subjacentes, é sugerida por Bongartz e Col. para quem a síndrome cardiorrenal é uma condição fisiopatológica na qual existe uma combinação de disfunção cardíaca e renal que amplifica a progressão da falência individual destes órgãos e que implica um aumento significativo da morbilidade e mortalidade neste grupo de doentes (8). Classificação Na visão simplista da síndrome cardiorrenal, um rim relativamente normal está disfuncionante no contexto de doença cardíaca, com a assumpção de que na presença de um coração normal tal disfunção renal não se verificaria (8). Este conceito deu lugar recente-

Francisca Dias de Castro, et al. Rev Port Cardiol 2010; 29: 1535-1554 mente a um outro mais amplo em que a síndrome cardiorrenal inclui uma diversidade de condições agudas e crónicas, em que a falência primária de um órgão, que pode ser o rim ou o coração, implica secundariamente a falência do outro órgão (4, 9). A terminologia anterior não permitia aos clínicos identificar e caracterizar completamente a cronologia e a interacção fisiopatológica que define os tipos específicos de combinação das perturbações coração/rim (4). Assim, a síndrome cardiorrenal pode classificarse de acordo com os seguintes tipos: Tipo I (síndrome cardiorrenal aguda): agravamento súbito da função cardíaca (choque cardiogénico ou insuficiência cardíaca agudamente descompensada) que provoca lesão aguda a nível renal (3, 9). Tipo II (síndrome cardiorrenal crónica): anomalias crónicas da função cardíaca (insuficiência cardíaca congestiva crónica) que induzem lesão renal progressiva e potencialmente irreversível (3, 9). Tipo III (síndrome renocardíaca aguda): agravamento súbito e primário da função renal (lesão renal aguda, isquemia ou glomerulonefrite) que provoca disfunção cardíaca aguda (insuficiência cardíaca, arritmia ou isquemia) (3,9). Tipo IV (síndrome renocardíaca crónica): doença renal crónica (doença glomerular ou intersticial crónica) que contribui para diminuição da função cardíaca, hipertrofia ventricular, disfunção diastólica e/ou aumento do risco de eventos cardiovasculares adversos (3, 9). Tipo V (síndrome cardiorrenal secundária): patologia sistémica (diabetes mellitus, amiloidose, sarcoidose, lúpus eritematoso sistémico, hipertensão pulmonar e sépsis) que provoca disfunção cardíaca e renal simultânea (3, 9). Em seguida, descrevem-se as características dos vários tipos de síndrome cardiorrenal e principais abordagens diagnósticas e terapêuticas. Síndrome Cardiorrenal - Tipo I A síndrome cardiorrenal tipo I é bastante frequente. Por ano são admitidos mais de um milhão de doentes nos Estados Unidos da América (EUA) em ambiente hospitalar por insuficiência cardíaca aguda de novo ou insuficiência cardíaca agudamente descompensada (10). Nestes, a presença de disfunção renal crónica pré-mórbida é frequente, predispondo estes doentes a lesão renal aguda, com consequente agravamento da função renal (11). O estudo ADHERE (Acute Decompensated Heart Failure National Registry), um estudo multicêntrico com 105 388 doentes de 274 hospitais dos EUA que pretendia estudar as características, abordagem e prognóstico de doentes hospitalizados com insuficiência cardíaca agudamente descompensada, revelou que (30% destes doentes apresentavam adicionalmente um diagnóstico consistente de doença renal crónica (11). Vários estudos têm demonstrado que a insuficiência renal basal aumenta o risco de morbilidade e de mortalidade em doentes internados por insuficiência cardíaca agudamente descompensada (12, 13). Da mesma forma, o agravamento da função renal durante o internamento por insuficiência cardíaca agudamente descompensada também condiciona pior prognóstico (5). Contudo alguns autores sugerem que o agravamento da função renal durante o internamento é um factor mais preditivo de mau prognóstico do que a função renal basal (14, 15, 16, 17). O prognóstico é ainda pior se a diminuição do clearance de creatinina for acompanhada de oligúria ( 50 ml/h), edema, hiponatremia ou refractoriedade aos diuréticos (6). Este assunto será abordado posteriormente. Apesar de qualquer aumento da creatinina sérica estar associado a taxas de sobrevida baixas e a hospitalizações mais prolongadas e frequentes, vários estudos definiram um aumento de 0,3 mg/dl em relação ao valor basal para definir este fenómeno. Alterações desta magnitude surgem em cerca de 25 a 45% dos doentes admitidos por insuficiência cardíaca agudamente descompensada. Num estudo multicêntrico de coortes, elevações da creatinina sérica de 0,3 mg/dl apresentaram uma sensibilidade de 65% e especificidade de 81% de predizer mortalidade intra-hospitalar (15). Os factores de risco comuns para a disfun- 1537

1538 Rev Port Cardiol Vol. 29 10 / October 10 ção renal e cardíaca como hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemia, hábitos tabágicos e idade avançada explicam a alta prevalência da síndrome cardiorrenal (9). É importante referir que a taxa de filtração glomerular (TFG) ou clearance de creatinina estimada pela fórmula de Cockcroft-Gault traduz de forma mais correcta a função renal do que os valores de creatinina sérica, já que estes podem sobrevalorizar a função renal em doentes com insuficiência cardíaca, principalmente em idosos e em mulheres (18). No estudo de Forman e Col. foram analisados 1004 doentes internados por insuficiência cardíaca agudamente descompensada no sentido de desenvolver uma pontuação de risco preditivo de agravamento da função renal. Este sistema atribuía: um ponto para história de insuficiência cardíaca, história de diabetes mellitus e pressão arterial sistólica superior a 160 mmhg à admissão; dois pontos para valores de creatinina plasmática entre 1,5 e 2,4 mg/dl; e três pontos para valores de creatinina plasmática superiores a 2,5 mg/dl. Os resultados deste estudo revelaram que 35% da amostra total teve uma pontuação igual ou superior a 3 pontos, apresentando 43% maior probabilidade de desenvolver agravamento da função renal (14). O desenvolvimento de índices capazes de predizer o agravamento da função renal e consequentemente a presença de síndrome cardiorrenal são importantíssimos no que diz respeito à prevenção primária desta síndrome, em doentes com insuficiência cardíaca agudamente descompensada, já que esta, como referido anteriormente, ensombra o prognóstico dos doentes. Os mecanismos fisiopatológicos pelos quais a insuficiência cardíaca aguda ou a insuficiência cardíaca crónica agudamente descompensada podem induzir lesão renal aguda são múltiplos e complexos (18) (Figura 1). Vários autores defendem que a síndrome cardiorrenal é igualmente prevalente na insuficiência cardíaca com disfunção sistólica ou diastólica (14, 16, 19). Na insuficiência cardíaca a diminuição da função sistólica ou diastólica do ventrículo esquerdo resulta em numerosas perturbações hemodinâmicas, incluindo diminuição do débito cardíaco, do volume de ejecção e do volume intravascular (20). A diminuição do volume sanguíneo arterial efectivo aumenta a libertação de neurohormonas através da activação de barorreceptores arteriais. Estas neurohormonas activam mecanismos inicialmente compensatórios com o objectivo de corrigir e restaurar a perfusão dos órgãos. A activação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, do sistema nervoso simpático, da endotelina e da hormona anti-diurética promove a retenção de volume. Estes sistemas vasoconstritores e anti-natriuréticos são equilibrados pela activação de mecanismos contrarreguladores, vasodilatadores e natriuréticos, como os peptídeos natriuréticos, as prostaglandinas, a bradicinina e o óxido nítrico (NO) (21, 22). Em condições fisiológicas estas vias neurohormonais funcionariam no sentido de preservar o volume e o tónus vascular optimizando o débito cardíaco e a perfusão dos diversos órgãos. Contudo, na insuficiência cardíaca estes mecanismos promovem a perpetuação de um ciclo vicioso, que em última instância resulta em hipóxia renal crónica, inflamação e stress oxidativo, o qual induz lesão funcional e estrutural a nível cardíaco e renal independentes da aterosclerose, hipertensão arterial e diabetes mellitus (23, 24). Apesar da síndrome cardiorrenal ser igualmente prevalente na insuficiência cardíaca por disfunção diastólica ou sistólica, Ronco e Col. sugerem que a lesão renal aguda parece ser mais grave em doentes com diminuição da fracção de ejecção do ventrículo esquerdo em comparação com aqueles em que a função do ventrículo esquerdo está preservada, atingindo uma incidência superior a 70% em doentes com choque cardiogénico (3). Na síndrome cardiorrenal tipo I é clinicamente importante definir como é que o aparecimento da lesão renal aguda afecta o tratamento da insuficiência cardíaca aguda. O primeiro princípio clínico é que o aparecimento de lesão renal aguda, neste contexto, implica perfusão renal inadequada até que se prove o contrário, o que implica o diagnóstico de diminuição do débito cardíaco e/ou aumento marcado da pressão venosa induzindo congestão

Francisca Dias de Castro, et al. Rev Port Cardiol 2010; 29: 1535-1554 Figura 1: Síndrome Cardiorrenal tipo I. AINEs anti-inflamatórios não esteróides; ARAs II antagonistas dos receptores da angiotensina II; DAC doença arterial coronária; DC débito cardíaco; DM diabetes mellitus; FEVE fracção de ejecção do ventrículo esquerdo; HTA hipertensão arterial; HVE hipertrofia do ventrículo esquerdo; IC insuficiência cardíaca; IECAs inibidor da enzima de conversão da angiotensina; PVC pressão venosa central; RVP resistências vasculares periféricas; SCr creatinina sérica; TFG taxa de filtração glomerular; VE ventrículo esquerdo. Adaptado com autorização de Fonarow e Col. (5). renal (3). A pressão de perfusão renal não é apenas dependente da pressão arterial sistémica, mas é determinada pela pressão de perfusão transrenal, que é igual à diferença entre a pressão arterial média e a pressão venosa central (18). Mullens e Col. estudaram o contributo do aumento da pressão venosa central no agravamento da função renal em doentes internados por insuficiência cardíaca descompensada. O agravamento da função renal foi definido como o aumento da creatinina sérica de 0,3 mg/dl durante o internamento, sendo que 58 doentes (40%) apresentaram deterioração da função renal. A pressão venosa central média basal foi estatisticamente superior nos doentes que desenvolveram agravamento da função renal, em comparação com aqueles em que tal não se observou (18 ± 7 mmhg versus 12 ± 6 mmhg, p<0,001). Este estudo concluiu que a preservação do débito cardíaco não acompanhado de diminuição da pressão venosa central pode não ser suficiente para impedir o agravamento da função renal, sugerindo a designação «insuficiência» renal congestiva (25). O papel da terapêutica diurética neste contexto clínico é controverso (7). Vários estudos revelaram que doses elevadas de diuréticos estão associadas, independentemente, a morte, a morte súbita e a falência de bomba (26, 27). Apesar da relação persistir mesmo sem variáveis confundidoras é difícil saber se esta se deve a doses elevadas de diuréticos per se ou, alternativamente se tal se deve ao facto de se utilizarem doses mais elevadas de diuréticos em doentes clinicamente mais graves. Como a terapêutica diurética pode piorar a função renal e o agravamento da função renal está associado a piores resultados, a resistência aos diuréticos pode ser considerada outro indicador de mau prognóstico em doentes com insuficiência cardíaca. Contudo, na ausência de evidência definitiva, doentes com hipervolemia devem receber terapêutica com diuréticos para aliviar os sintomas, já que a persistência de retenção de fluidos em doentes com insuficiência cardíaca é problemática (7). Assim sendo, a segunda consequência importante deste tipo de síndrome cardiorrenal é 1539

1540 Rev Port Cardiol Vol. 29 10 / October 10 a resposta diminuída aos diuréticos. É importante relembrar que a curva dose-efeito dos diuréticos é sigmóide ou seja, para cada doente individualmente, existe uma dose máxima de diurético acima da qual não há aumento da resposta terapêutica face ao aumento da dose administrada (5). Tanto a insuficiência cardíaca como a insuficiência renal influenciam a curva dose-efeito dos diuréticos. A insuficiência renal desvia a curva para a direita e a insuficiência cardíaca desvia a curva para a direita e para baixo (28). Este efeito não condiciona apenas aumento da dose de diurético para obter a mesma resposta terapêutica, mas também diminui a resposta máxima que pode ser atingida. Esta situação condiciona um estado de relativa resistência aos diuréticos (5). Em doentes com insuficiência cardíaca e insuficiência renal concomitante os diuréticos de ansa são a escolha mais adequada, já que os diuréticos tiazídicos não são efectivos em doentes com TFG inferior a 30 ml/min (18). Os doentes com insuficiência cardíaca apresentam diminuição da absorção oral dos diuréticos, particularmente a furosemida, por hipoperfusão e edema intestinal. Assim sendo, a administração intravenosa de diuréticos é mais eficaz nos doentes com insuficiência cardíaca agudamente descompensada (18, 7). Os diuréticos de ansa ligam-se às proteínas plasmáticas e têm de ser activamente secretados pelo túbulo contornado proximal. Na hipoalbuminemia grave como o fármaco não se liga à albumina plasmática há um aumento do seu volume de distribuição à custa do volume extracelular, diminuindo assim a sua disponibilidade a nível renal. Apesar de intuitiva, a administração de albumina ainda não provou ser uma estratégia eficaz (7, 18). Para além disso, como na disfunção renal crónica há acumulação de ácidos orgânicos ocorre competição directa entre estes e os diuréticos ao nível da secreção no túbulo contornado proximal (18). Por último, e como já foi referido anteriormente, a perfusão renal está diminuída, diminuindo por isso a quantidade de diurético que é secretada a nível renal (20). Todos estes factores contribuem para a relativa resistência aos diuréticos que os doentes com esta síndrome apresentam. Uma das alternativas à administração de bólus de diuréticos de ansa, em doentes refractários à terapêutica diurética, consiste em administrá-los por via endovenosa em infusão contínua. A infusão contínua mantém concentrações óptimas de diurético que chega aos túbulos renais e que por sua vez inibe a reabsorção de sódio mais consistentemente, diminuindo ainda a incidência de ototoxicidade. Contudo, a evidência ainda é escassa para recomendar com confiança uma abordagem em relação à outra. A outra opção é inibir a reabsorção de sódio em múltiplos locais do nefrónio, administrando concomitantemente um diurético tiazídico para bloquear a reabsorção a nível distal. A terapêutica combinada requer monitorização cuidadosa, já que pode condicionar perdas excessivas de sódio e potássio, alcalose metabólica e desidratação (7, 18). Quando apesar destas alternativas a resistência aos diuréticos persiste a ultrafiltração deve ser considerada, no sentido de diminuir a hipervolemia (3, 5). Em doentes com insuficiência cardíaca a ultrafiltração tem demonstrado melhoria da sintomatologia, da hemodinâmica, do débito urinário e da resposta aos diuréticos. Para além disso, a ultrafiltração traduz-se numa menor activação a longo prazo dos sistemas neurohormonais; este assunto será discutido posteriormente (5). A ultrafiltração foi considerada uma opção de tratamento viável pelo American College of Cardiology e pela American Heart Association, em doentes com insuficiência cardíaca e resistência aos diuréticos (29). A ultrafiltração, ou ultrafiltração contínua e lenta, filtra a porção aquosa do plasma directamente através de uma membrana semi-permeável em resposta a um gradiente de pressão transmembranar, resultando num ultrafiltrado que é isosmótico em relação à porção aquosa do plasma. A redução da précarga, a modulação do sistema renina-angiotensina e a possível remoção de factores depressores do miocárdio, tem sido sugerido como o mecanismo provável pelo qual se verifica melhoria sintomática com esta técnica (30). Costanzo e Col (31). compararam, num ensaio controlado e aleatorizado, a segurança e a efi-

Francisca Dias de Castro, et al. Rev Port Cardiol 2010; 29: 1535-1554 cácia da ultrafiltração em relação à terapêutica diurética em 200 doentes com insuficiência cardíaca e hipervolemia. Os resultados primários foram a perda de peso e a dispneia às 48 horas. Os resultados secundários incluíam a perda de líquidos às 48 horas, a capacidade funcional, as re-hospitalizações por insuficiência cardíaca e as visitas ao serviço de urgência em 90 dias. Também foram avaliados como parâmetros de segurança a função renal, o ionograma e a pressão arterial. Não se verificaram alterações nos níveis de creatinina sérica nos dois grupos estudados. Este estudo concluiu que a ultrafiltração pode ser utilizada com segurança na insuficiência cardíaca descompensada e mostrou maior eficácia na perda de fluidos e peso e na diminuição das visitas ao serviço de urgência em 90 dias quando comparada com a terapêutica diurética (31). A presença de lesão renal aguda acompanhada ou não de hipercalemia pode também influenciar o prognóstico do doente, já que a presença deste distúrbio electrolítico impede a utilização de inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECAs), antagonistas dos receptores da angiotensina II (ARAs) e inibidores da aldosterona (fármacos que mostraram em estudos controlados, aleatorizados aumentar a sobrevida em doentes com insuficiência cardíaca). Contudo, se a administração destes fármacos for acompanhada de monitorização frequente da função renal e dos níveis séricos de potássio o benefício da sua utilização supera o risco (3). No que diz respeito à administração aguda de bloqueadores- esta não é aconselhável em doentes com síndrome cardiorrenal tipo I. Estes fármacos só devem ser utilizados depois do doente estar hemodinamicamente estabilizado e não existir risco de baixo débito. Em alguns doentes o volume não pode ser aumentado, sendo que o aumento da frequência cardíaca (taquicardia) é que mantém o débito cardíaco. O bloqueio desta taquicardia compensadora e da compensação inotrópica dependente do sistema nervoso simpático pode precipitar um choque cardiogénico com uma mortalidade associada muito elevada (3). A preocupação é ainda maior com fármacos deste tipo que são excretados por via renal como o atenolol e o sotalol, quer sejam utilizados isoladamente ou em associação com bloqueadores dos canais de cálcio (32). Apesar disso a administração cuidadosa e lenta, titulando a dose de bloqueadores-, após a estabilização hemodinâmica do doente, deve ser instituída (3). Os inotrópicos aumentam a contractilidade e são um componente fundamental do tratamento da insuficiência cardíaca com baixo débito, que se manifesta como choque cardiogénico. O seu contributo no tratamento de outras formas de apresentação de insuficiência cardíaca, não se encontra contudo tão bem esclarecido (5). Os inotrópicos têm como alvo primário um parâmetro fisiológico (débito cardíaco) que não está associado com a melhoria dos sintomas ou dos resultados finais. Os inotrópicos melhoram a hemodinâmica num curto espaço de tempo, mas aumentam o risco de eventos adversos e de mortalidade (33). Estes efeitos adversos podem em parte resultar do aumento da activação deletéria dos sistemas neurohormonais, que já está presente nos doentes com insuficiência cardíaca agudamente descompensada (5). Um estusdo multicêntrico, realizado em doentes com insuficiência cardíaca, utilizou levosimedan (sensibilizador do cálcio) ou dobutamina e verificou um aumento de 23% e 40% nos níveis de renina, respectivamente, quando comparados com os valores basais (p 0,007) desta neurohormona (34). Os vasodilatadores diminuem a pré-carga e a pós-carga, reduzindo o trabalho ventricular, aumentado o volume de ejecção e assim aumentando o débito cardíaco (33). Estes fármacos estão indicados em doentes com insuficiência cardíaca agudamente descompensada que apresentem sinais de congestão e hipoperfusão, mas pressão arterial adequada. Os nitratos diminuem eficazmente a congestão pulmonar e a sua utilização em combinação com baixas doses de diuréticos tem provado ser mais eficaz do que doses elevadas de diuréticos isoladamente. A dose de nitratos deve ser titulada cuidadosamente para produzir 1541

1542 Rev Port Cardiol Vol. 29 10 / October 10 vasodilatação óptima, porque a vasodilatação excessiva e inapropriada produz declínio rápido da pressão arterial, que resulta em activação reflexa do sistema nervoso simpático com taquicardia e activação do sistema renina-angiotensina e consequente retenção de fluidos. Para além disso, a tolerância aos nitratos desenvolve-se rapidamente, especialmente quando estes são administrados por via endovenosa e em altas doses, geralmente limitando a duração do efeito de 24 a 48 horas e necessitando de monitorização hemodinâmica (35). O BNP (peptídeo natriurético do tipo B) é sintetizado no miocárdio ventricular em resposta ao aumento da pressão telediastólica. O BNP dilata artérias e veias, aumenta a excreção de sódio e suprime o sistema reninaangiotensina-aldosterona. O nesiritide (análogo sintético do BNP) tem sido usado na insuficiência cardíaca para reduzir a pré-carga e a pós-carga, para promover a natriurese e a diurese e para inibir a noradrenalina, a endotelina-1 e a aldosterona (7). Tendo em conta que o aumento dos níveis de creatinina sérica não representa apenas um marcador de doença, mas sim lesão renal aguda que funciona como um factor causal de aceleração da lesão cardiovascular através da activação de vias neurohormonais, imunológicas e inflamatórias (4), o nesiritide pelas suas características já descritas, foi proposto para o tratamento da insuficiência cardíaca com protecção renal específica (18). O ensaio VMAC (Vasodilatation in the Management of Acute Congestive Heart Failure) investigou o impacto da infusão precoce de nesiritide nos sintomas e pressão pulmonar em doentes com insuficiência cardíaca descompensada (36). Um total de 489 doentes com insuficiência cardíaca descompensada foi tratado com nesiritide ou com nitroglicerina. Às 24 horas, 83% dos doentes com insuficiência renal e 91% dos doentes sem insuficiência renal que foram tratados com nesiritide apresentaram melhoria da dispneia (37). Apesar do nesiritide ter sido eficaz nos doentes com insuficiência renal, alguns estudos sugerem que este fármaco pode aumentar o risco de disfunção renal nos doentes com insuficiência cardíaca. Assim, não existe ainda tratamento específico para a protecção renal. Apesar de inicialmente terem surgido alguns resultados promissores, o uso de nesiritide continua a ser controverso, já que recentemente um estudo prospectivo, aleatorizado mostrou resultados que sugerem que este agente não apresenta benefício clínico (38). Para além do nesiritide, a dopamina em doses renais foi proposta no passado como terapêutica para prevenção ou tratamento da insuficiência renal aguda e para o aumento da diurese em indivíduos com insuficiência cardíaca refractária aos diuréticos. Fisiologicamente, a dopamina em baixas doses (2 a 4 g/kg/min) aumenta o fluxo sanguíneo renal através da ligação a receptores dopaminérgicos (DA1 e DA2) e adrenérgicos (quer receptores quer receptores ). Assim, a dopamina em baixas doses aumenta o fluxo sanguíneo renal por vasodilatação (receptores dopaminérgicos), aumentando o débito cardíaco (receptores adrenérgicos ) e aumentando a pressão de perfusão através da vasoconstrição mediada pelos receptores adrenérgicos. A dopamina também inibe a libertação de aldosterona e a bomba sódio-potássio das células epiteliais tubulares, resultando num aumento da natriurese e consequentemente da diurese (18). O consenso geral entre os estudos realizados com metodologia rigorosa, isto é estudos prospectivos aletorizados com amostras extensas, é que não existe evidência de benefício clínico na utilização de dopamina em baixas doses para além do seu efeito natriurético e diurético (39). É preciso ainda relembrar que a dopamina pode apresentar efeitos adversos como cianose digital e gangrena (18). A vasopressina (hormona anti-diurética) é secretada pela hipófise, em resposta à hiperosmolaridade, à deplecção de volume, à angiotensina II e à estimulação simpática, sendo a sua actividade mediada por três tipos de receptores: V 1A (vascular), V 2 (renal), V 3 (pituitária). O receptor V 1A existe nas células musculares lisas vasculares renais e induz vasoconstrição (18). O receptor V 2 existe nos tú-

Francisca Dias de Castro, et al. Rev Port Cardiol 2010; 29: 1535-1554 bulos contornados distais e no ducto colector. Quando a vasopressina se liga a estes receptores é activada uma cascata de sinal com aumento dos níveis intracelulares de adenosina monofosfato cíclico. Esta molécula actua como segundo mensageiro na translocação de vesículas que contêm canais de água denominados aquaporinas-2, além de aumentar a sua transcrição. A actividade destes canais, mediada pela vasopressina, determina a permeabilidade do ducto colector à água e está associada a diminuição da diurese. Na insuficiência cardíaca a secreção de vasopressina pode estar aumentada em consequência da baixa pressão arterial e da diminuição do volume arterial (7, 18). O Tolvaptan é um antagonista específico dos receptores V 2, administrado por via oral e o Conivaptan é um antagonista dos receptores V 1A e V 2, e pode ser administrado por via oral ou intravenosa. Estes fármacos têm demonstrado eficácia na redução do peso pela indução de aquarese (diurese com retenção de electrólitos), mediada pela inibição dos receptores V 2, e melhoria da hemodinâmica em doentes com insuficiência cardíaca (40). O efeito antagonista ao nível dos receptores V 1A aumenta o débito cardíaco, reduz a resistência arterial periférica, reduz a pressão arterial média e inibe a hipertrofia dos cardiomiócitos induzida pela vasopressina (18). Assim, a inibição da vasopressina poderá desempenhar no futuro um papel importante na redução da congestão sistémica em doentes com insuficiência cardíaca agudamente descompensada (41). Num estudo multicêntrico, controlado e aleatorizado realizado em 181 doentes com insuficiência cardíaca grau III ou IV, divididos em dois grupos aos quais foi administrado tolvaptan ou placebo, o tolvaptan revelou efeitos favoráveis, apesar de modestos, nas pressões de enchimento associado a aumento significativo do débito urinário (sem alterações na função renal) (42). O excesso de vasopressina pode ainda induzir hiponatremia, que se verifica em cerca de 20% dos doentes internados com insuficiência cardíaca agudamente descompensada, e que parece representar um factor de mau prognóstico (43). Segundo o estudo controlado e aleatorizado EVEREST, que observou 4133 doentes com insuficiência cardíaca agudamente descompensada, o tolvaptan promoveu uma redução significativa da dispneia, e do edema, associado a uma normalização rápida e sustentada dos valores de sódio sérico, podendo ser este o mecanismo pelo qual os antagonistas da vasopressina poderão melhorar os resultados clínicos (44). Uma nova classe promissora de agentes terapêuticos são os antagonistas dos receptores A1 da adenosina (7, 18). Os níveis plasmáticos de adenosina estão aumentados na insuficiência cardíaca, e aumentam com a gravidade da doença (18). O feedback tubuloglomerular promove a libertação de adenosina, esta liga-se aos receptores A1 induzindo vasoconstrição da arteríola aferente, diminuição do fluxo renal e consequentemente da TFG com aumento da reabsorção do sódio no túbulo proximal. Os antagonistas dos receptores A1 têm o potencial de melhorar a função renal e prevenir a resistência aos diuréticos em doentes com insuficiência cardíaca, já que interrompem o feedback tubuloglomerular. O BG9719 (ou CVT-124) é um antagonista selectivo dos receptores A1, que tem demonstrado, em estudos realizados em humanos, eficácia na promoção da diurese não alterando significativamente a excreção de potássio e a TFG (45). Contudo, ainda são necessários mais estudos para comprovar a segurança da utilização desta nova classe de fármacos na prática clínica. Síndrome Cardiorrenal - Tipo II Como os doentes com insuficiência cardíaca crónica têm uma esperança média de vida cada vez mais longa e morrem cada vez menos de arritmias primárias, é expectável que a síndrome cardiorrenal se torne cada vez mais frequente (2, 7). O risco de desenvolver insuficiência renal crónica em doentes com insuficiência cardíaca crónica ainda não foi definido claramente, mas a disfunção renal é observada frequentemente em doentes com insuficiência cardíaca crónica (8). A literatura aponta para que um terço a metade dos doentes com insuficiência cardíaca venha a desen- 1543

1544 Rev Port Cardiol Vol. 29 10 / October 10 volver insuficiência renal (46). Hillege e Col. sugerem que a prevalência de disfunção renal em doentes com insuficiência cardíaca rondará os 25% (47). Numa meta-análise que incluiu 16 estudos, Smith e Col. (48) verificaram que 63% de 80 098 doentes com insuficiência cardíaca apresentavam concomitantemente algum grau de disfunção renal, e que 29% apresentava insuficiência renal crónica grave. O desenvolvimento da síndrome cardiorrenal está associado a mau prognóstico com aumento da utilização de recursos hospitalares, da morbilidade e da mortalidade (2, 5, 6). Segundo Hillege e Col. a TFG basal estimada foi considerada o factor preditivo de risco de mortalidade mais importante em doentes com insuficiência cardíaca, ultrapassando quer a classe funcional, quer a fracção de ejecção do ventrículo esquerdo (49). O estudo SOLVD (Studies of Left Ventricular Dysfunction), estudo aleatorizado, duplamente cego que comparou os efeitos do enalapril e placebo no tratamento da insuficiência cardíaca, identificou vários factores que estão relacionados com agravamento da função renal definido como aumento de 0,3 mg/dl de creatinina sérica, tais como: idade avançada, fracção de ejecção deprimida, níveis basais elevados de creatinina sérica, pressão sistólica baixa, diabetes mellitus, hipertensão arterial, uso de terapêutica diurética ou beta bloqueadores (50). O mecanismo subjacente ao agravamento da função renal difere se estivermos perante um contexto de insuficiência cardíaca aguda ou crónica. Na insuficiência cardíaca crónica este mecanismo é caracterizado por situações prolongadas de baixa perfusão renal, muitas vezes predispostas por doença macro e microvascular. Apesar de uma grande proporção de doentes com TFG reduzida se encontrarem numa classe funcional mais grave da New York Heart Association, não existe evidência consistentemente demonstrada na associação entre fracção de ejecção do ventrículo esquerdo e TFG. Assim sendo, doentes com insuficiência cardíaca crónica com função ventricular esquerda preservada parecem ter TFG semelhantes a doentes nas mesma condições, mas com diminuição da fracção de ejecção do ventrículo esquerdo (fracção de ejecção < 45%) (51). O conhecimento sobre a fisiopatologia da disfunção renal no contexto da insuficiência cardíaca ainda é muito escasso. O estudo prospectivo ESCAPE (Evaluation Study of Congestive Heart Failure and Pulmonary Catheterization Effectiveness) não encontrou nenhuma relação entre variáveis hemodinâmicas medidas na artéria pulmonar e a creatinina sérica em 194 doentes. A única relação encontrada foi com a pressão aumentada na aurícula direita (52), sugerindo que a congestão renal possa ser um factor importante de disfunção renal, que deve ser considerado. Neste sentido, a hipoperfusão não pode ser entendida como mecanismo único de lesão renal. Assim sendo, são necessários mais estudos para esclarecer o mecanismo inerente à lesão renal, no sentido de desenvolver novos alvos terapêuticos (3). Como já foi referido anteriormente, a visão simplista de que o rim é unicamente um filtro que sofre com a falência da bomba principal tem sido alterada à medida que o conhecimento sobre a complexa interacção entre estes dois órgãos vai crescendo. Ambos são reguladores de funções vitais como a pressão arterial, o tónus vascular, a diurese, a natriurese, a homeostasia do volume circulante, a perfusão periférica e a oxigenação dos tecidos. Esta relação dinâmica e complexa é mediada pelo balanço entre o NO e as espécies reactivas de oxigénio, a inflamação, a activação quer do sistema nervoso simpático quer do sistema renina-angiotensina-aldosterona e a influência e participação de várias substâncias como a endotelina, as prostaglandinas, a vasopressina e os peptídeos natriuréticos. O desequilíbrio de um destes intervenientes conduz a um ciclo vicioso, no qual os outros participantes também se desequilibram sinergicamente, resultando em última instância na alteração da função e dano estrutural a nível cardíaco e renal (8, 9). As alterações neurohormonais estão presentes e consistem na produção excessiva de mediadores vasoconstritores como a adrenalina, a angiotensina e a endotelina; e ainda di-

Francisca Dias de Castro, et al. Rev Port Cardiol 2010; 29: 1535-1554 minuição da sensibilidade e/ou da produção de factores endógenos vasodilatadores como os peptídeos natriuréticos e o NO (3). A diminuição do volume sanguíneo intravascular efectivo, que se verifica na insuficiência cardíaca crónica com disfunção diastólica ou sistólica, é sentida ao nível dos barorreceptores de alta pressão, que se encontram no ventrículo esquerdo, seio carotídeo e arco aórtico. Estes funcionam como vias aferentes que diminuem o tónus inibitório dos nervos vago e glossofaríngeo ao nível do sistema nervoso central. Isto resulta numa activação do sistema nervoso simpático, com aumento da frequência cardíaca e da resistência vascular periférica e renal. O aumento do tónus adrenérgico renal estimula o sistema renina-angiotensina-aldosterona; a activação do sistema nervoso simpático estimula os núcleos supra-óptico e paraventricular do hipotâlamo, resultando na libertação não-osmótica de vasopressina ou hormona antidiurética (21). O sistema nervoso simpático é activado para manter o débito cardíaco que se encontra diminuído na insuficiência cardíaca crónica, aumentando também a activação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, a produção de espécies reactivas de oxigénio e a activação do sistema imune. A activação prolongada do sistema nervoso simpático tem um efeito promotor de crescimento ao nível da parede dos vasos sanguíneos intrarrenais, aumentando assim, a libertação de renina. Este efeito foi recentemente identificado como sendo mediado pela produção de espécies reactivas de oxigénio (8). O sistema renina-angiotensina-aldosterona está também activado na insuficiência cardíaca crónica, como já foi referido anteriormente, e a angiotensina II tem um efeito importante ao nível das resistências vasculares periféricas e renais. A angiotensina II também estimula o sistema nervoso simpático promovendo a libertação de noradrenalina a nível pré-sináptico. A angiotensina II é um mediador importante de hipertrofia e remodelagem miocárdicas, sendo que concentrações plasmáticas elevadas desta neurohormona contribuem ainda para a deposição de colagénio e fibrose, nomeadamente a nível renal (21). A angiotensina II tem um importante efeito vasoconstritor das arteríolas aferente e eferente e contractor das células mesangiais, de que resulta uma diminuição da área de filtração glomerular, e consequentemente um aumento da retenção de água e sódio (21). Para além desta (des)regulação do volume extracelular e vasoconstrição, um dos efeitos mais deletérios do sistema renina-angiotensina-aldosterona na síndrome cardiorrenal resulta da activação da oxídase do NADPH, através da angiotensina II, com consequente formação de espécies reactivas de oxigénio (8). A endotelina-1 é secretada pelas células endoteliais vasculares e é um vasoconstritor potente que apresenta efeitos marcados a nível renal, promovendo a retenção de sódio. A sua concentração plasmática tem significado prognóstico importante, aumentando proporcionalmente com a gravidade sintomática e hemodinâmica da insuficiência cardíaca crónica (22). Como já foi referido anteriormente, na insuficiência cardíaca há aumento da libertação de vasopressina através de um estímulo nãoosmótico. A vasopressina liga-se aos seus receptores V2 na membrana basolateral das células principais do ducto colector induzindo translocação de canais de água (aquaporinas) a partir de vesículas de armazenamento do citosol para a membrana apical das células. Este processo promove a reabsorção passiva de água através de um gradiente osmótico, resultando em retenção de água, hiposmolaridade e hiponatremia (21). Os peptídeos natriuréticos estão aumentados na insuficiência cardíaca e apresentam características biológicas tais como, natriurese, vasodilatação, e inibição do sistema nervoso simpático e do sistema renina-angiotensina-aldosterona, efeitos que apesar de serem benéficos em doentes com insuficiência cardíaca, não são eficazes. Existe evidência que sugere que neste quadro clínico há uma resistência aos efeitos dos peptídeos natriuréticos. São várias as explicações para este fenómeno: down-regulation dos receptores dos 1545

1546 Rev Port Cardiol Vol. 29 10 / October 10 peptídeos natriuréticos a nível renal; secreção de peptídeos precursores inactivos; aumento da actividade da endopeptidase, a qual limita a entrega de peptídeos natriuréticos ao nível do nefrónio distal; aumento da reabsorção de sódio a nível proximal, diminuindo a sua concentração no nefrónio distal, porção em que actuam os peptídeos natriuréticos (21). O NO é importante no controlo renal do volume extracelular e da pressão arterial já que induz vasodilatação, natriurese e dessensibilização do feedback tubuloglomerular. O superóxido tem um efeito oposto no controlo do volume extracelular condicionando aumento da pressão arterial. Na síndrome cardiorrenal, o equilíbrio fisiológico entre o NO e as espécies reactivas de oxigénio está alterado no sentido do aumento do stress oxidativo com baixa disponibilidade de NO. O stress oxidativo é um potenciador major de inflamação, com aumento da produção de citocinas próinflamatórias nomeadamente a interleucina (IL)-1, a IL-6 e o factor de necrose tumoral (TNF- ). Na insuficiência renal crónica e na insuficiência cardíaca crónica há por isso, aumento de produção de citocinas pró-inflamatórias que promovem a progressão da doença, constituindo por isso, a inflamação um aspecto fundamental nos doentes que apresentam síndrome cardiorrenal (8, 9). Qualquer que seja a agressão inicial, a diminuição do débito cardíaco ou a congestão venosa, que desencadeia este ciclo vicioso, sabe-se que este induz activação de sistemas neurohormonais que se auto-perpetuam e que são responsáveis pela sintomatologia e progressão da síndrome cardiorrenal (53). Para além dos sistemas neurohormonais referidos anteriormente, a anemia, situação clínica comum à insuficiência cardíaca e à insuficiência renal, parece ter um papel importante na conexão cardiorrenal. A anemia pode agravar quer a insuficiência cardíaca, quer a insuficiência renal, mas também pode ser consequência destas duas entidades clínicas. A anemia, a insuficiência cardíaca e a insuficiência renal formam um triângulo patológico, em que cada um dos intervenientes amplifica o impacto na morbilidade e mortalidade dos restantes elementos. Assim, a anemia mais do que um marcador de gravidade de insuficiência cardíaca ou renal é um mediador do desenvolvimento destas doenças (54). Num estudo não controlado com 179 doentes com insuficiência cardíaca moderada a grave e insuficiência renal crónica moderada, Silverberg e Col. verificaram que a correcção da anemia através da administração de eritropoietina e ferro foi seguida de melhoria da função sistólica do ventrículo esquerdo, bem como de uma interrupção da progressão da insuficiência renal crónica (55). Contudo, parece existir, por razões ainda desconhecidas e dependentes do grau de correcção da anemia, um efeito diferente ou mesmo oposto nos resultados clínicos desta terapêutica em doentes com insuficiência renal crónica quando comparados com doentes com insuficiência cardíaca. É assim necessário mais rigor na avaliação da segurança da correcção da anemia em doentes com insuficiência cardíaca, sendo ainda imperioso determinar níveis alvo seguros para terapia farmacológica em doentes em que co-exista insuficiência cardíaca e renal (54). Para além da activação dos diversos sistemas neurohormonais já referidos, a farmacoterapêutica utilizada na insuficiência cardíaca crónica também pode induzir agravamento da função renal (3). A diurese induzida pelos diuréticos pode condicionar hipovolemia (18) e estimulação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, sistema nervoso simpático e aumento dos níveis de vasopressina, condicionando vasoconstrição e aumento da pré-carga e da pós-carga (6). A resposta hemodinâmica à administração de altas doses de furosemida consiste no aumento da frequência cardíaca, um aumento ligeiro da pressão arterial média, uma diminuição ligeira do volume de ejecção, aumento das resistências vasculares periféricas e um aumento transitório das pressões de enchimento e da pressão da aurícula direita. Os níveis plasmáticos de noradrenalina e de vasopressina aumentam, bem como a actividade plasmática da renina, mimetizando as alterações hemodinâmicas. Assim, apesar dos diuréticos

Francisca Dias de Castro, et al. Rev Port Cardiol 2010; 29: 1535-1554 de ansa continuarem a ser fundamentais para o tratamento da insuficiência cardíaca crónica com hipervolemia por promoverem uma diurese efectiva, eles podem contribuir para o agravamento hemodinâmico e para a progressão da disfunção renal nestes doentes (6). Assim sendo, o uso de diuréticos deve ser criterioso e analisado caso a caso, pelo que esta terapêutica só deve ser instituída se dela advier benefício claro para o doente. A introdução precoce de bloqueadores do sistema renina-angiotensina-aldosterona e de fármacos que induzem hipotensão também pode induzir progressão da lesão renal (3). Os IECAs e os ARAs são fundamentais no tratamento da insuficiência cardíaca crónica, contudo na presença de disfunção renal a utilização destes fármacos pode condicionar aumento dos níveis de creatinina (2). Ensaios como o SOLVD, que demonstram o benefício da utilização de IECAs na insuficiência cardíaca crónica, excluíram doentes com concentrações séricas de creatinina superiores a 2 mg/dl (50). Assim, na insuficiência cardíaca crónica e na ausência de desidratação os doentes devem iniciar IECAs ou ARAs em doses baixas no sentido de reduzir a incidência de disfunção renal, progredindo progressivamente até à dose recomendada (46). Nas duas últimas décadas os grandes ensaios aleatorizados para o tratamento da insuficiência cardíaca crónica têm excluído consistentemente os doentes com doença renal significativa. Assim, o tratamento de doentes com síndrome cardiorrenal é empírico sendo, por isso, necessário que mais ensaios sejam realizados em doentes com síndrome cardiorrenal para que haja evidência suficiente no tratamento destes doentes (3). Síndrome Cardiorrenal - Tipo III Neste tipo de síndrome cardiorrenal a lesão renal aguda é o factor indutor primário, sendo a falência cardíaca uma complicação comum e muitas vezes fatal da insuficiência renal aguda (56). A síndrome cardiorrenal tipo III parece ser menos comum do que a síndrome cardiorrenal tipo I contudo, este facto parece estar relacionado com o estudo sistemático da síndrome cardiorrenal tipo I, o que não se verifica na síndrome cardiorrenal tipo III (3). A lesão renal aguda é um problema crescente em doentes admitidos em Unidades de Cuidados Intensivos. Um estudo retrospectivo, de um centro entre 2000 e 2002, identificou em Unidades de Cuidados Intensivos uma prevalência de cerca de 9% de lesão renal aguda (57). Numa análise prospectiva multicêntrica, Jorres e Col. identificaram a falência cardíaca como causa de morte em 71% dos doentes que apresentaram insuficiência renal aguda (58). A lesão renal aguda induz lesão cardíaca através de diversos mecanismos, cuja hierarquia ainda não foi estabelecida (Figura 2) (3, 56). Na lesão renal aguda surgem uma série de alterações como a expansão do volume extracelular, a hipercalemia, a uremia, a acidemia entre outros desequilíbrios hidro-electrolíticos, condicionando alterações hemodinâmicas e pró-arrítmicas (3, 9). A sobrecarga de volume contribui para o desenvolvimento de edema pulmonar. A hipercalemia pode induzir arritmias e paragem cardíaca (3). A uremia não tratada afecta a contractilidade do miocárdio, através da acumulação de factores depressores do miocárdio, podendo também provocar pericardite (59). A acidemia produz vasoconstrição pulmonar, que pode contribuir para a insuficiência cardíaca direita. A acidemia parece apresentar um efeito inotrópico negativo e pode juntamente com o desequilíbrio electrolítico, característico desta entidade clínica, aumentar o risco de arritmias (3). Por último, a isquemia renal induz aumento da actividade inflamatória, com produção de citocinas pró-inflamatórias (TNF, IL-1, IL-6 e IL-8), infiltração leucocitária, apoptose do miocárdio e diminuição da função cardíaca (56). A agudização da insuficiência renal crónica pode condicionar a continuação de certos fármacos, nomeadamente os diuréticos e os IECAs. A interrupção destas terapêuticas pode induzir agudização da insuficiência cardíaca que, como já foi referido anteriormente, muitas vezes co-existe no mesmo doente. Assim, deve ser relembrado que os IECAs não danificam o rim, mas sim modificam a hemodinâmica intrarrenal e reduzem a fracção 1547