IX CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO GT 03 EFETIVIDADE DOS INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA A APLICAÇÃO DO PEUC: NOTAS SOBRE O UNIVERSO DE ÁREAS NOTIFICADAS Rosana Denaldi 1 Dânia Brajato 2 O Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios (PEUC), o IPTU e progressivo no tempo e a Desapropriação-sanção são instrumentos jurídico-urbanísticos previstos na Constituição Federal (CF) de 1988 e regulamentados pelo Estatuto da Cidade (EC), em 2001, para fazer cumprir a função social da propriedade urbana, submetendo-a ao interesse coletivo. Para atender à diretriz geral da política urbana nacional definida pelo EC, esses instrumentos devem ser aplicados para evitar a retenção especulativa do imóvel urbano que resulte na sua subutilização ou não utilização. A aplicação do PEUC e sucedâneos foi regulamentada por meio dos Art. 5º ao 8º e 42º do EC. Este último artigo estabelece que o Plano Diretor (PD) deve conter, no mínimo, a área de incidência do PEUC, considerando a existência de infraestrutura e de demanda para utilização. Registra-se que não há disposições a seguir, em nível federal, acerca da definição sobre a priorização do universo de imóveis a ser notificado em relação ao conjunto total notificável, ficando a critério de cada município optar por fazê-la ou não 3. Observa-se que esse tema importante, que cerca a regulamentação e a aplicação do PEUC, precisa ser debatido, pois pode comprometer os resultados decorrentes de sua aplicação. Considerando-se todo o conjunto de imóveis ociosos contidos nas áreas de incidência do PEUC, definidas nos PDs, pergunta-se: os municípios devem notificar todo o estoque de terras vazias ou imóveis não utilizados de uma única vez? Deve haver uma priorização que leve em consideração a viabilidade de sua utilização em determinado período de tempo? Essa estratégia deve estar articulada à dinâmica imobiliária local ou a projetos especiais desenvolvidos pelas municipalidades? Objetiva-se, a partir das estratégias de distribuição das notificações no espaço e no tempo adotadas em municípios que aplicaram o PEUC, avançar na compreensão desse tema e contribuir para o debate sobre a implementação e a efetividade dos instrumentos de política urbana. 1. Aplicação do PEUC: um possível panorama No contexto da nova ordem jurídico-urbanística, esperava-se que a aplicação do PEUC contribuísse para a promoção do ordenamento territorial e controle do uso e ocupação do solo, e 1 Doutora, Universidade Federal do ABC (UFABC), professora, denaldi.rosana@gmail.com 2 Doutoranda, Universidade Federal do ABC (UFABC), pesquisadora, dania.brajato@gmail.com 3 Alguns municípios que aplicaram o PEUC se valeram de decretos municipais para tratar de especificidades que não precisam constar do Plano Diretor e/ou lei específica, dentre as quais a priorização de áreas para notificação e o escalonamento da aplicação do PEUC. 1
também para a democratização do acesso à terra urbanizada e à moradia. A despeito da importância e da sua previsão em parte significativa dos novos Planos Diretores pós-ec, pode-se afirmar, com base nos resultados da pesquisa Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios e IPTU Progressivo no Tempo: Regulamentação e Aplicação 4, que houve reduzido avanço na utilização deste conjunto de instrumentos no país. Até janeiro de 2014, dentre os 288 municípios brasileiros com população superior a 100 mil habitantes, 25 haviam regulamentado o PEUC, e desse conjunto, constatou-se que apenas oito municípios estavam aplicando ou aplicaram o instrumento em algum período: Santo André, São Bernardo do Campo, Diadema e a capital São Paulo, na Região Metropolitana de São Paulo, além de Maringá, no Paraná, e das capitais Curitiba (PR), Goiânia (GO) e Palmas (TO). No panorama apresentado pelo estudo, destacam-se as experiências de São Bernardo do Campo e São Paulo, que iniciaram a aplicação do PEUC em 2013 e 2014, respectivamente, pelas estratégias e procedimentos adotados. Contudo, o município que mais avançou foi Maringá: a aplicação do PEUC desde 2009 possibilitou que atingisse o estágio de aplicação do IPTU progressivo no tempo em 2011. 2. Estratégias adotadas pelos municípios que iniciaram a aplicação do PEUC Do conjunto de oito experiências estudadas, apenas Santo André, São Bernardo do Campo e São Paulo definiram uma estratégia territorial e abordaram esse tema em seus decretos municipais que regulamentaram as previsões legais acerca da aplicação do PEUC. (i) Curitiba e Diadema Em Curitiba, o PD delimitou a área de incidência do PEUC de forma abrangente, estabelecendo como passíveis de notificação imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados situados em área urbana, o que corresponde a todo o território do município. Contudo, a lei específica limitou a sua aplicação a um pequeno perímetro no entorno do Paço Municipal. Entre 2009 e 2010, o município notificou seis edificações não utilizadas no Centro Histórico, na área do Projeto Centro Vivo, que mobilizou investimentos públicos e privados em obras de infraestrutura e restauração. Os seis imóveis, concentrados em um mesmo logradouro que já havia recebido obras de revitalização, mantinham-se degradados e abandonados, razão pela qual foram notificados para utilização compulsória 5. Diadema, em 2007, notificou seis imóveis em situação de subutilização ocupacional 6, nos termos do PD vigente: imóveis edificados com aproveitamento superior a 10% do índice permitido para a zona, e percentual de utilização inferior a 10% da área construída total. Nesses dois casos, o PEUC tem potencial reduzido para promover o ordenamento territorial ou contribuir para inibição da retenção e especulação imobiliária, em virtude da quantidade inexpressiva de imóveis com incidência do instrumento. Ainda, no caso de Curitiba, o PEUC teve 4 Denaldi et al., 2015. 5 Denaldi et al., 2017. 6 Denomina-se subutilização, mas trata-se de não utilização. 2
como finalidade desobstruir os processos de (re)valorização das áreas centrais degradadas 7, contrariando os objetivos para os quais foi concebido. (ii) Goiânia e Palmas Goiânia aplicou o PEUC em duas etapas: em 2011, com 68 notificações, canceladas posteriormente, e em 2014, com 1.446 notificações. O PD definiu como área de incidência do PEUC toda a Macrozona Construída (71% do território municipal). Embora a lei específica contenha uma priorização para fins de notificação, dos imóveis ociosos nos bairros mais centrais (Grupo I) com relação aos demais bairros (Grupo II), ainda assim o universo notificável alcança uma escala que faz com que o instrumento deixe de ser empregado estrategicamente. A notificação de 1.446 imóveis de uma única vez, sem considerar a capacidade de absorção dessas áreas pelo mercado imobiliário e setor público, em um curto espaço de tempo, demonstra a inadequação do planejamento da aplicação. Palmas também aplicou o PEUC em duas etapas: em 2011, com 250 notificações, canceladas posteriormente, e, em 2013, com 463 notificações. A cidade foi fundada há poucas décadas, após a criação do Estado de Tocantins pela CF de 1988. A dimensão da área urbana revela-se excessiva diante da capacidade de ocupação do território 8. Há grandes distâncias entre as áreas periféricas e o centro da cidade, entre as quais se localizam muitos imóveis vazios e não parcelados sujeitos ao PEUC. Nesses dois casos, observa-se a existência de um universo expressivo de imóveis notificados, sem nenhuma estratégia relacionada ao adensamento prioritário de setores centrais e/ou infraestruturados dos municípios. (iii) São Bernardo do Campo, Santo André e São Paulo São Bernardo do Campo adotou como critérios para divisão da aplicação do PEUC em três etapas a proximidade dos imóveis com o centro da cidade e a necessidade de disponibilizar áreas para a produção de Habitação de Interesse Social (HIS). Assim, a primeira etapa priorizou a notificação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) de vazios, destinadas à provisão de HIS, e os imóveis ociosos dos bairros das duas maiores centralidades do município; a segunda etapa, os imóveis localizados no anel envoltório dos bairros centrais e, a terceira e última etapa, os bairros mais periféricos da Macrozona Urbana. No entanto, em um curto espaço de tempo, entre 2013 e 2016, o município notificou 229 imóveis (88% do universo notificável), com área total de 2,3 milhões de metros quadrados (m²), o que corresponde a 95% da área notificável. Desse conjunto, 30 imóveis eram ZEIS de vazios (36% da área notificada). Santo André definiu um escalonamento mais complexo, combinando zoneamento, área e coeficiente de aproveitamento (CA) mínimo dos imóveis notificáveis, com a priorização dos lotes maiores com menor CA. Entre 2006 e 2008, foram notificados 66 imóveis, com área total de 2,3 milhões m² (30% da área notificável). Desse total, 26 imóveis localizam-se na área do Eixo Tamanduatehy 9 e somam cerca de 1,6 milhões m² 7 Faria, 2013. 8 Palmas foi projetada para um milhão de habitantes, mas tinha pouco mais de 220 mil habitantes em 2010. 9 Área conformada por quadras lindeiras ao Rio Tamanduateí, linha férrea e Avenida dos Estados, com presença de muitos vazios urbanos e grandes galpões e pátios industriais abandonados, onde o município pretende estimular a ocupação e induzir a reconversão de uso desses imóveis. 3
(69% da área notificada). Ainda, 15 perímetros (921 mil m², 40% da área notificada) correspondem a ZEIS de vazios gravadas pelo PD. São Paulo também escalonou as notificações para PEUC, priorizando imóveis gravados como ZEIS 2, 3 e 5 ou localizados nos perímetros das Operações Urbanas Centro e Água Branca 10. Entre 2014 e 2016, o município notificou 1.260 imóveis, sendo 58% não utilizados, em sua maior parte edifícios vazios na área central da cidade. Destaca-se que, do total notificado em área de terreno (2,5 milhões m²), 80% corresponde a imóveis gravados como ZEIS 11. Apesar desse aspecto positivo, identificou-se dispersão das notificações no espaço, em decorrência da área de incidência do PEUC corresponder a praticamente todo o município, e pouca articulação do instrumento com programas municipais. (iv) Maringá Maringá, entre 2009 e 2013, notificou em duas etapas 705 proprietários de imóveis não edificados ou subutilizados 12, que somam 14,5 milhões de m² 13. Na primeira etapa, sob coordenação da Secretaria de Planejamento e Urbanismo, foram notificadas áreas localizadas nos anéis central e intermediário da cidade: a intenção do município foi dar uso a imóveis ociosos em perímetros com melhor infraestrutura instalada. Já na segunda etapa, coordenada pela Secretaria de Fazenda e Gestão, foram notificadas áreas em todo o perímetro urbano, incluindo o anel mais periférico da cidade, que não dispõe de infraestrutura consolidada em toda a sua extensão (Figura 1). A partir da segunda etapa, quando a aplicação do PEUC alcança uma quantidade expressiva de imóveis, em toda a área urbana, o instrumento perde o potencial de ordenar o uso e ocupação do solo e de orientar a ocupação de setores prioritários, como nos casos de Goiânia e Palmas. Além disso, a ausência de uma estratégia territorial associada à distribuição das notificações no tempo pode resultar na inviabilidade de uso desse conjunto de imóveis nos prazos exigidos por lei. Perguntase: haverá demanda para a totalidade de imóveis notificados? Quais serão as consequências dessas notificações, a médio e longo prazo? Os resultados iniciais indicam que o município notificou um volume de áreas maior do que a demanda e a capacidade de parcelar e construir do mercado imobiliário e setor público. Destaca-se que Maringá não aplicou o PEUC de forma articulada com outro instrumento urbanístico ou com projetos urbanos prioritários. 3. Conclusão O PEUC tem a finalidade de fazer com que a propriedade privada submeta-se à ordem pública e à função social. Nesse sentido, as áreas urbanas sujeitas ao PEUC deveriam ser estrategicamente definidas segundo uma lógica de ordenação do território e de viabilização de projetos de cidades 10 ZEIS 2: glebas ou lotes não edificados ou subutilizados, destinados à produção de Empreendimentos de HIS (EHIS); ZEIS 3: áreas com imóveis ociosos, subutilizados, não utilizados, encortiçados ou deteriorados em regiões dotadas de infraestruturas urbanas e boa oferta de empregos, destinadas à promoção de EHIS; ZEIS 5: lotes ou conjunto de lotes, vazios ou subutilizados, situados em áreas dotadas de infraestruturas urbanas, onde haja interesse privado em produzir EHIS e empreendimentos de mercado popular. 11 São Paulo, 2016. 12 Primeira etapa: 105 imóveis (4,2 milhões m²); segunda etapa: 600 imóveis (10,3 milhões m²). 13 Brajato, 2015. 4
mais justas e ambientalmente menos predatórias. Para tanto, não basta aplicar o instrumento levando em consideração apenas o zoneamento definido no PD ou legislação complementar. Figura 01 - Maringá: imóveis notificados para PEUC, 1ª e 2ª etapas Fonte: Denaldi et al. (2015) É preciso definir uma estratégia territorial, assim como articular sua aplicação com outros instrumentos e projetos urbanos e/ou habitacionais. A leitura do cenário macroeconômico e da dinâmica imobiliária local, assim como das alternativas de fomento disponíveis (crédito e financiamento) é fundamental para que o estoque notificado guarde alguma correspondência com a viabilidade de sua utilização em determinado período de tempo. Entretanto, foi possível notar que (i) vários PDs definiram, apenas, que o PEUC é aplicável em toda área urbana do município, e (ii) a referida leitura esteve ausente, mesmo no caso de municípios que adotaram um 5
escalonamento ou priorização das notificações no tempo. Em relação às experiências estudadas, de forma geral, observou-se: (i) casos em que o município notificou quantidade inexpressiva de áreas, e que, portanto, o instrumento não desempenha papel de ordenador do território; (ii) casos em que o município previu a notificação (ou notificou) expressivo número de áreas e não definiu escalonamento ou priorização, ou seja, não existe estratégia territorial e o volume notificado pode ser maior do que a capacidade de utilização pelo setor público ou privado; e (iii) casos com universo priorizado e adoção de escalonamento, mas que, mesmo assim, o volume notificado e o período de escalonamento podem não ser compatíveis com os prazos de utilização, ou ainda, não estão suficientemente articulados com projetos urbanos e/ou habitacionais. Ressalta-se como aspecto positivo, identificado em três casos estudados, a sobreposição do PEUC com as ZEIS. A combinação de um zoneamento restritivo com a obrigação de utilizar em determinado prazo pode contribuir para ampliar a oferta de terrenos e imóveis para a produção de HIS. Vale ressaltar que, tendo em vista que os municípios brasileiros apresentam diferentes características e especificidades, a estratégia de aplicação do PEUC não deve ser necessariamente a mesma para todos os casos. A tipologia de cidade, a dinâmica econômica e as características do mercado imobiliário local e regional, e também do meio físico, requerem diferentes estratégias e podem até indicar a pertinência (ou não) da aplicação do instrumento. Conclui-se que esse tema foi pouco debatido, e que a definição do universo de áreas notificáveis, sua espacialização e sua distribuição no tempo podem comprometer a credibilidade do PEUC e, os resultados, ou os efeitos de sua aplicação, podem ser inócuos ou contrários às finalidades para as quais foi concebido. Referências BRAJATO, D. A efetividade dos instrumentos do Estatuto da Cidade: o caso da aplicação do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios no Município de Maringá (PR). 2015. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do ABC, Santo André, 2015. DENALDI, R. et al. Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e IPTU progressivo no tempo: regulamentação e aplicação. Projeto Pensando o Direito. Brasília: Ministério da Justiça, 2015. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/11/pod_56_web1.pdf.. A aplicação do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, vaop, naop, 2017. FARIA, J. R. V. (2013). Função social e IPTU progressivo: o avesso do avesso num desenho lógico. In XV Encontro da ANPUR - ENANPUR, 2013, Recife. SÃO PAULO (Município). Função Social da Propriedade. Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios em São Paulo. Relatório Anual - 2016. São Paulo, 2016. 6