CONSEQUÊNCIAS DA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR NA SAÚDE MENTAL DE ADOLESCENTES: UM ESTUDO DE CASO
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- Luiz Gustavo Felgueiras Vilaverde
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1 CONSEQUÊNCIAS DA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR NA SAÚDE MENTAL DE ADOLESCENTES: UM ESTUDO DE CASO Kalline Flávia S. Lira Resumo: No Brasil, os/as adolescentes estão expostos/as a elevadas taxas de mortalidade por causas externas, inclusive à violência do tipo doméstica. Este trabalho apresenta o estudo de caso de uma adolescente atendida num serviço de saúde mental de um município do Sertão pernambucano. A demanda foi encaminhada pelo Conselho Tutelar da cidade, com queixa inicial de dor de cabeça crônica, sintomas depressivos e ansiosos, além de ideias suicidas. Com os atendimentos realizados, foi possível identificar que a adolescente sofreu abusos sexuais que tiveram início na época em que começaram as dores de cabeça. Este caso teve grande mobilização, pois o agressor tinha falecido há pouco tempo e alguns familiares resistiram a aceitar o fato. Com isso, os pais da adolescente também foram acompanhados pela equipe. Após um período de tratamento, a usuária teve alta do serviço, apresentando melhora significativa dos sintomas, volta ao ambiente escolar, além de ter sua autoestima e empoderamento reestabelecidos. O caso em tela chama a atenção para a importância em adotar uma conduta acolhedora das demandas do sofrimento mental em crianças e adolescentes que podem mascarar situações de violência doméstica. Palavras-chave: Adolescência. Saúde mental. Violência doméstica. Introdução A adolescência é a etapa entre a infância e a idade adulta, que cronologicamente começa pelas mudanças da puberdade e caracterizam-se por transformações biológicas, psicológicas e sociais. O Ministério da Saúde (MS), em sua Caderneta de Saúde do/a Adolescente, considera a adolescência como o período dos 10 aos 19 anos de idade (BRASIL, 2009). No Brasil, os adolescentes e jovens (de 10 a 24 anos) estão expostos às mais elevadas taxas de mortalidade por causas externas (BRASIL, 2010). Segundo o Mapa da Violência (WAISELFISZ, 2014) os homicídios são a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos no Brasil, e atingem principalmente jovens negros do sexo masculino. Por isso, a violência de forma geral, e especialmente contra crianças e adolescentes, representa uma questão nacional de saúde pública, além de ser grave violação aos direitos humanos. A violência intrafamiliar, em particular contra crianças e adolescentes, é um assunto que vem mobilizando profissionais da área de saúde pública. Muitas dificuldades advêm desse contexto, como o silêncio da vítima, o silêncio da família e da sociedade, além da falta de apoio à criança/adolescente, e até mesmo à família. A ligação entre a situação de violência e o desenvolvimento de transtornos mentais vem sendo objeto de diversas pesquisas. Palma (2006) pontua, no entanto, que durantes muitos anos os estudos acreditavam que os/as adolescentes, assim como as crianças, não eram afetados por problemas mentais, já que, supostamente, esse grupo etário não apresentava problemas vivenciais. De acordo com um estudo realizado por Paula et. al. (2008), a razão de chance de apresentar qualquer problema de saúde mental foi o dobro entre crianças que haviam vivenciado violência doméstica e/ou na comunidade do que entre as que não haviam vivenciado esse tipo de violência. Atualmente, sabe-se que os/as adolescentes são tão
2 suscetíveis a transtornos mentais quanto os adultos, sendo que o Ministério da Saúde (BRASIL, 2005) estima que de 10 a 20% da população de crianças e adolescentes sofram de algum transtorno psiquiátrico. Estes transtornos tendem a interferir de maneira significativa na vida diária, nas relações sociais e no bem-estar geral do/a adolescente. O Caso Leila Leila (nome fictício) chegou ao serviço de saúde mental encaminhada pelo Conselho Tutelar do município. Aos 13 anos de idade, apresentava uma dor de cabeça crônica há aproximadamente cinco anos. Além disso, apresentava sintomas depressivos e ansiosos, tendo diminuído consideravelmente seu rendimento escolar. O serviço no qual recebemos Leila era um CAPS tipo I, tipicamente para atendimentos de adultos. Como o município localizado no sertão de Pernambuco não tinha outro serviço específico para a população infanto-juvenil, após uma decisão em equipe, resolvemos acolhêla. Com espaço cheio de adultos, acordamos que os atendimentos com Leila ocorreriam no horário de almoço um intervalo entre os usuários que frequentavam o CAPS pela manhã ou à tarde. Não foi possível, portanto, inclui-la em nenhuma oficina ou grupo. Os atendimentos foram realizados prioritariamente pelo psiquiatra e pela psicóloga do Centro. Como a maioria dos/as adolescentes que sofrem algum tipo de violência familiar, Leila não relatou o caso prontamente. A mãe, que a acompanhava quase sempre durante todo o processo de atendimento, relatou já terem sido feitos todos os exames possíveis e nunca foi descoberta a causa das dores de cabeça de Leila. Assim, as náuseas, os vômitos, e um completo mal-estar não pararam com uso de nenhum tipo de medicamento utilizado até então. Ficou evidente para nós que a causa não deveria ser de origem orgânica, e sim psicológica. Leila era uma menina tímida, mas que conseguiu fazer uma aliança terapêutica com certa facilidade. Isso ajudou para que pudesse relatar o que estava por trás das dores de cabeça. Foi entre muitas lágrimas que certo dia ela contou que fora abusava sexualmente pelo avô paterno desde os oito anos de idade. Era comum ela ficar com ele durante o dia, enquanto os pais trabalhavam. O avô tinha um sítio numa zona rural não muito longe do centro da cidade. A idade em que os abusos começaram coincidia com o início das dores de cabeça cinco anos atrás. Assim, o psiquiatra pode prescrever um medicamento que, finalmente, foi eficaz e após um tempo ajudou a acabar com as dores de cabeça. As consequências dessa descoberta foram traumáticas não apenas para Leila. Ela contou para a mãe; que em seguida, contou para seu marido (o pai de Leila). Em instantes, a família inteira sabia do ocorrido. O avô tinha falecido alguns meses antes do início do tratamento de Leila no CAPS. Desta forma, não pôde ser ouvido para dar sua versão do fato. O que ficou foi uma imagem de bom homem, pai e avô amoroso. Assim, a família paterna de Leila ficou contra ela. Não acreditavam na história; não aceitaram, por um instante sequer, arranhar a imagem imaculada de seu patriarca. Aquele homem tão bom? Não, não é possível! E com isso, a mentirosa da história só podia ser uma: Leila. Por que não contou antes, perguntavam. No entanto, rejeitavam ir até o CAPS para atendimentos. A mãe de Leila, irredutível, não saía do lado da filha. O pai encontrava-se numa encruzilhada: apoiar a filha era destruir a ideia do pai perfeito, do avô dedicado. Inevitável, a relação dos pais de Leila foi profundamente abalada, e eles quase se separaram. Durante um bom tempo a família parecia não se importar com Leila, muito menos com as consequências do abuso sofrido. Como tinha sido doloroso para ela aguentar as violências quieta, afinal, era seu avô. Perdemos as contas de quantas vezes Leila simplesmente chorava nos atendimentos no CAPS. Quantas vezes questionou-se se não era
3 ela a errada, se não tinha culpa, inclusive da situação delicada entre seus pais. Não tinha vontade de sair de casa, muito menos ir à escola. Não tinha vaidade, muitas vezes chegava ao serviço com cara de sono e despenteada, isso após o meio-dia. Falava em suicídio. Que nunca seria amada, nem tão pouco ia amar alguém. Tudo isso numa menina de 13 anos de idade. A situação familiar de Leila mudou após um acontecimento inesperado. De repente, uma prima um pouco mais velha confessa: também tinha sido abusada pelo avô. Embora a mãe nunca tenha duvidado da filha, este fato permitiu que Leila pudesse, finalmente, encarar a sua realidade. E seguir em frente. Os atendimentos continuaram durante mais um ano aproximadamente. E no final, Leila já tinha voltado à escola, já demonstrava interesse em coisas que meninas de sua idade gostam, e ainda chegou a comentar sobre possíveis namoradinhos. A vida, enfim, podia seguir seu curso. Analisando as consequências da violência A violência do tipo doméstica é um fenômeno difícil, caracterizado como um enigma que aborda a constelação familiar, na maioria das vezes de forma silenciosa e dissimulada. A questão aqui apontada é mais grave porque atinge de forma mais violenta pessoas mais indefesas, acarretando danos biológicos e psicossociais aos mesmos, sobretudo quando esse tipo de violência advém da atmosfera familiar, envolvendo seus cuidadores ou outros que representam espaço significativo de afeto para o/a adolescente. A violência contra a criança e o/a adolescente é todo ato ou omissão cometido por pais, parentes, outras pessoas e instituições, capazes de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima (MINAYO, 2001, p. 92). Esta violência implica necessariamente numa coisificação da infância, ou seja, na negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como pessoas em condições especiais de crescimento e desenvolvimento. A violência intrafamiliar introduz-se nas relações, é muitas vezes banalizada, e começa a fazer parte da rotina das pessoas. Quando essa violência é cometida contra a criança e/ou adolescente e é praticada por familiares, é estabelecida uma relação de poder desigual em que a vítima está sempre em desvantagem. O abusador desperta medo e sentimentos contraditórios, e assim, a vítima entra num estado de angústia. Quando, finalmente, consegue conversar com alguém que o escute, não é raro que já tenha transcorrido algum tempo (como no caso de Leila), e existam consequências do ponto de vista emocional e de estruturação da personalidade. No caso em questão, após alguns meses de atendimento, ficou evidente que o transtorno apresentado por Leila era decorrente da violência sofrida, e que era totalmente inútil tratar apenas o sintoma (as dores de cabeça, ansiedade, etc.) era preciso acolher a demanda, e elaborar as consequências daquela violência. E não apenas o abuso sexual praticado pelo avô, mas a violência simbólica da família paterna ao não acreditar, nem ao menos escutar o que Leila tinha a dizer. Segundo Avanci et. al. (2009) entre os transtornos mentais consequentes do abuso físico e/ou sexual estão o estresse pós-traumático, os transtornos depressivos e o abuso de drogas. Entendemos também que no caso em tela foi fundamental o acolhimento dos pais da adolescente no serviço. A escuta serviu para que pudessem compreender a razão do sofrimento da filha, além de refletir suas próprias demandas. A intervenção familiar nesses casos é imprescindível, pois, a família é o que mais influencia o desenvolvimento, é um recurso contra os efeitos estressores, e atua como promotor da recuperação de crises situacionais ou de desenvolvimento (SILVA et. al., 2008).
4 A partir desse estudo de caso, fica evidente o impacto da violência familiar não apenas em quem sofre o abuso, mas em todos que de alguma forma estão envolvidos na situação. A área da saúde, incluindo a saúde mental, deve concentrar esforços para atender os efeitos dessa violência, não apenas na reparação de traumas e/ou lesões físicas, mas acima de tudo, através de uma abordagem mais integral, incluindo os aspectos psicossociais da situação, tentando minimizar o impacto sobre as vítimas e pessoas mais próximas. Considerações Finais A violência é um fenômeno presente nos diversos âmbitos da vida, sendo, portanto, um problema social, mas com grandes impactos na saúde pública. Apesar das crianças e adolescentes serem vítimas frequentes, é difícil avaliar com precisão a incidência da violência, pois há dificuldades na coleta de dados e na realização de denúncias que envolvam a temática, principalmente quando a violência é intrafamiliar. Este estudo tratou do tema da violência doméstica contra crianças e adolescentes, mais especificamente do abuso sexual. Este fenômeno traz à tona não apenas a questão da agressividade no ser humano, como levanta reflexões sobre suas causas e consequências tendo entre as consequências a possibilidade de transtorno mental nos sujeitos vítimas da violência. Entendemos que os principais problemas de saúde mental e social relacionados com a violência em crianças e adolescentes podem gerar problemas como ansiedade, transtornos depressivos, baixo desempenho na escola, comportamento agressivo e violento, e até tentativas de suicídio. Assim, o setor saúde, e mais especificamente a saúde mental, assumiu um importante papel na prevenção, diagnóstico e notificação de casos de violência. Os serviços de saúde mental aparecem como um espaço privilegiado para a identificação, acolhimento e atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência, bem como a orientação às famílias. Referências AVANCI, Joviana; ASSIS, Simone; OLIVEIRA, Raquel; PIRES, Thiago. Quando a convivência com a violência aproxima a criança do comportamento depressivo. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, 2009, p BRASIL. Ministério da Saúde. Caminhos para uma política de saúde mental infantojuvenil. Brasília: Secretaria de Atenção à Saúde, p.. Ministério da Saúde. Caderneta de saúde da/do adolescente. Brasília: Secretaria de Atenção à Saúde, p.. Ministério da Saúde. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Secretaria de Atenção à Saúde, MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Rev. Bras. Saúde Mater. Infant., Recife, v. 1, n. 2, ago. 2001, p
5 PALMA, Sônia Maria Motta. Depressão na adolescência. In: SÃO PAULO. Secretaria da Saúde. Manual de atenção à saúde do adolescente. São Paulo: SMS, p. PAULA, Cristiane; VEDOVATO, Márcia; BORDIN, Isabel; Barros, Márcia; D ANTINO, Maria Eloísa; MERCADANTE, Marcos. Saúde mental e violência entre estudantes da sexta série de um município paulista. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 3, jun. 2008, p SILVA, Nancy; NUNES, Célia; BETTI, Michelle; RIOS, Karyne. Variáveis da família e seu impacto sobre o desenvolvimento infantil. Temas psicol. [online], vol.16, n.2, 2008, p WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência: Os Jovens do Brasil. Brasília: Secretaria- Geral da Presidência da República, Disponível em: < Acesso em: 24 mar
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