Uma brasileira nas finanças islâmicas

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1 Uma brasileira nas finanças islâmicas Por Cristiane Perini Lucchesi, de São Paulo 08/02/2008 Marisa Cauduro / Valor Angela Martins, do ABC Brasil: "A liquidez imensa existente hoje no mundo muçulmano pode ser aproveitada no Brasil" Ela foi a primeira mulher a entrar na sede do maior banco islâmico do mundo, o Al-Rajhi, em Riad, capital da Arábia Saudita. Teve de conseguir autorização especial, pois, no país, mulher só pode fazer negócios com mulher. Precisou usar abaia preta - capa que deixa apenas o rosto de fora. Ansiosa, fez uma apresentação para oito executivos muçulmanos sem olhar nos olhos de nenhum deles, pois isso seria considerado íntimo e sensual demais. Ao andar de um lugar a outro de carro ou avião, temeu ser deportada pela polícia religiosa, que não permite que mulheres desacompanhadas de pai ou filho ou marido entrem no país. No final de sua missão, obteve sucesso: estreitou relações com os bancos islâmicos e conseguiu linhas de crédito para o Brasil. Dez anos após a experiência, a brasileira católica Angela Martins, diretora da área internacional do banco de capital árabe ABC Brasil, tornou-se uma especialista em sistema financeiro islâmico. Ela visita países árabes todos os anos e ficou tão interessada pelo tema que escreveu um livro, "A Banca Islâmica", publicado em

2 2004 pela "Qualitymark", seu trabalho de conclusão do curso de pós-graduação em finanças corporativas pelo Instituto Mauá de Tecnologia. Arquivo Pessoal Angela Martins (vestida ao modo exigido pelo Corão, em uma de suas viagens ao Oriente Médio): "Nenhum negociador internacional tem o direito de interferir na cultura alheia" O livro ganha hoje atualidade renovada, dada a abundância de riqueza disponível no Oriente Médio por causa dos altos preços do petróleo. A crise de liquidez e o aperto no crédito nos Estados Unidos e Europa passam longe do sistema bancário islâmico, que segue as leis da xariá - o conjunto de preceitos morais presentes no Corão e na tradição oral associados ao profeta Maomé, que serve de orientação para a vida religiosa e civil dos muçulmanos - e proíbe a cobrança de juros. "O dinheiro existe para o desenvolvimento do mundo" é uma tradicional expressão da xariá, explica Angela. Portanto, os bancos islâmicos têm de se assegurar que seus lucros são obtidos por meio do investimento em atividades econômicas consideradas éticas. Os banqueiros islâmicos não podem receber ou fornecer fundos para empreendimentos envolvendo álcool, jogo, pornografia, tabaco, armas ou carne de porco. "A liquidez imensa existente hoje no mundo muçulmano pode ser aproveitada no Brasil", afirma Angela. Há no exterior cerca de US$ 2 trilhões em recursos privados e públicos da Arábia Saudita, de Bahrein, do Kuait, de Omã, do Quatar e dos Emirados Árabes Unidos, segundo estimam Brad Setser, do Council on Foreign Relations, e Rachel Ziemba, analista do site de economia RGE Monitor. Foram incluídos os recursos das famílias dos xeiques árabes e os fundos soberanos daqueles países. Há quem fale em US$ 3 trilhões. "Os fundos dos países do golfo são notoriamente discretos e atuam em segredo, deixando qualquer análise sujeita a uma margem de incerteza maior do que a usual", dizem Setser e Ziemba no RGE Monitor.

3 Apesar de serem árabes e muçulmanos, os vários governos, com seus fundos soberanos, e alguns xeiques mais ricos não seguem as regras islâmicas para investimento. Vão atrás das opções com a melhor relação entre risco e retorno. Eles têm sido determinantes para socorrer grandes bancos da Europa e Estados Unidos que precisam de capital para fazer frente às perdas com a crise de hipotecas de alto risco. Os fundos soberanos fazem investimentos mais amplos, sem seguir as regras da religião. O fundo soberano da Líbia, país árabe situado no Norte da África, com ativos de US$ 100 bilhões, no entanto, pretende evitar comprar ativos nos Estados Unidos por questões políticas. Vai comprar ações, bônus e fazer investimentos no setor imobiliário e financeiro na China, Indonésia, Europa e também América Latina, segundo informou à "Bloomberg" Shokri Ghanem, chairman da empresa de petróleo controlada pelo governo, a National Oil Corp. "Muitos fundos soberanos árabes estão investindo na Bovespa", diz Angela Martins. "Ninguém percebe, pois eles são discretos e atuam por meio de fundos administrados nos EUA e Europa", explica. Hoje, de acordo com ela, há interesse árabe não apenas pelo investimento de portfólio, mas também no investimento direto no Brasil. "Muitos clientes do banco ABC têm vindo ao país para procurar oportunidades de investimento direto", diz. "Daí a grande importância de entender as diferenças culturais." Por exemplo, há investidores que só aceitam se tornar parceiros de empresas que produzem alimentos halal, que, no idioma árabe, significa lícito, permissível. São os produtos julgados consumíveis pelos muçulmanos e que seguem as regras da xariá. "Há muito preconceito e desconhecimento sobre os bancos islâmicos e os fundos soberanos do Oriente Médio", diz Angela. Ela explica que são as pessoas físicas ricas religiosas, empresas e bancos do mundo islâmico que respeitam as regras do Corão para investir. Há hoje um total de 1,6 bilhão de fiéis do Islã em busca de investimentos específicos. De acordo com o jornal "International Herald Tribune", cerca de 300 instituições financeiras islâmicas detêm pelo menos US$ 500 bilhões em ativos, e os depósitos crescem mais de 10% ao ano. Durante mais de dez anos de convivência no mundo das finanças islâmicas, Angela diz que sempre foi tratada com muito respeito. Ela garante que o único comentário atravessado que ouviu foi "she has a lot of morals for a woman", algo como "ela tem muita determinação para uma mulher". Angela argumenta que a ascensão de uma mulher em um banco é sempre difícil, seja ele islâmico ou não. Angela tornou-se diretora de um banco árabe por acaso. Ela já

4 estava no posto quando a Arab Banking Corporation comprou, em 1997, o controle do ABC Brasil, então ABC Roma, das Organizações Roberto Marinho. A Arab Banking Corporation é controlada pelos fundos dos governos de Abu Dhabi, Kuait e Líbia. Logo após a mudança do controle acionário, Angela ficou curiosa ao ver um contrato de murabaha - estrutura popular de financiamento ao comércio exterior do sistema financeiro islâmico. Havia no contrato dizeres louvando Alá. Ela começou então a perguntar para os colegas no Brasil sobre o tema, e só recebia palavras de desestímulo. "Me diziam para esquecer o assunto, que não dava para viabilizar aquilo no Brasil." Mas, persistente, cheia de determinação para uma mulher, não desistiu. Logo no dia seguinte chegou mais cedo ao escritório e ligou para a sede da matriz do ABC, no pequeno Estado insular de Bahrein. Vacilou um pouco em ligar, pois sabia que, no mundo islâmico, mulher só pode fazer negócios com mulher. Falou com Masood Al Bastaki, funcionário do banco. "Ele me me explicou tudo direitinho e me ajudou a montar, depois de meses de trabalho, o primeiro murabaha do Brasil, ainda em 1997." O contrato usou como lastro a exportação de empresas clientes. No livro, a dedicatória é feita "ao querido amigo" Al Bastaki, "que despertou meu interesse na banca islâmica e me ensinou os primeiros passos". "Fiquei fascinada com aquele mundo diferente", diz Angela. Com o apoio de Adnan Youssef, então chairman mundial do ABC, visitou bancos islâmicos em Bahrein, no Kuait, país mais tradicional, e na Arábia Saudita, onde os preceitos islâmicos são seguidos com rigor. "Youssef e Al Bastaki foram super gentis e interessados", disse. Ela procurou não afrontar as tradições e conseguiu "muitos amigos" na região. Na Arábia Saudita, quando ia de avião de Riad a Jeddah, evitou sentar do lado do amigo para conversar. No país, mulheres sentam de um lado nas fileiras do avião e os homens, de outro. Há agências bancárias para mulheres, onde homens não entram, e médicas mulheres que só atendem mulheres. Cuidadosa nas relações com os acionistas, Angela evita bravatas feministas. "Nenhum negociador internacional tem o direito de interferir na cultura alheia", afirma. Na cultura islâmica, conta, "a mulher é vista como uma jóia que tem de ficar em uma caixinha, para sua proteção". Ela respeita essa visão. "Africanas ficam o tempo todo com o seio à mostra e isso não seria bem aceito no Brasil", compara. "Fiz muitos amigos no mundo árabe e respeito todos eles e seus costumes."

5 O primeiro banco criado para atender à demanda dos muçulmanos mais religiosos e que buscou seguir os preceitos da xariá nasceu no Egito, em Mas, desde os anos 1970 o principal centro financeiro dos bancos islâmicos é Bahrain, diz Angela. Dubai tenta hoje tomar o lugar de Bahrein. "Dubai é bem aberto em termos de costumes. Mulheres andam de shorts e tomara que caia", diz. A crença de que toda a cobrança de juros é injusta tem origem antiga e hoje serve de base para o sistema financeiro islâmico. Tudo começou quando os britânicos se aproveitaram da crescente dívida externa do Egito, em 1875, para comprar uma participação no Canal de Suez e ocupar o país, o que gerou uma revolta contra os bancos tradicionais entre os muçulmanos. A idéia geral, segundo Angela, é que os financistas islâmicos são obrigados a compartilhar os riscos dos tomadores, o que significa que os depositantes são tratados mais como acionistas, ganhando uma parte dos lucros. Os acordos de financiamento lembram os referentes a leasing, planos de parcelamento com entrega após a quitação, acordos de compra e venda conjunta ou parcerias. As instituições financeiras islâmicas dependem de seus próprios conselhos de estudiosos da xariá para a aprovação de cada produto e de cada investimento, diz Angela. Há cinco escolas diferentes e uma das dificuldades de atuar nesse mercado é a falta de padronização. Estudiosos da xariá são raros, e aqueles com entendimento financeiro são ainda mais raros, de forma que muitos deles integram vários conselhos, ganhando até US$ 100 mil em honorários, segundo o "Internacional Herald Tribune". O entesouramento não é visto com bons olhos no Corão, de forma que a poupança não tem retorno, a menos que se destine a uso produtivo e corra os risco inerentes a essa finalidade. Isso não quer dizer que os financistas islâmicos sejam contra o lucro, contra ser rico ou contra o consumo. Apenas discordam que o dinheiro gere dinheiro. "Para eles, é justo que você tenha lucro, desde que corra o risco do empreendimento", explica Angela. De fato, o sistema bancário islâmico deve funcionar mais como firmas de "private equity" do que como bancos convencionais. O "private equity" é praticamente um conceito islâmico. Para o Islã, a riqueza deveria ser toda investida. Caso contrário, seria exaurida pela zakah, uma espécie de imposto de renda. Mas consumir não é riba, ou seja, algo proibido. No fundo, as questões financeiras serão resolvidas pelo muçulmano um pouco por sua própria vontade, e outro tanto com o pensamento voltado para o Corão.