O presente acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Transcrição

1 COMENTÁRIO DE JURISPRUDÊNCIA Juliana Gerent 1 Faculdade Integrado de Campo Mourão, Campo Mourão - PR NOTA DANO AMBIENTAL. Ação civil pública. Responsabilidade. Solidariedade dos demandados: empresa privada, Estado e Município. Ementa: I A ação civil pública pode ser proposta contra o responsável direto, o responsável indireto ou contra ambos, pelos danos causados ao meio ambiente, por se tratar de responsabilidade solidária, a ensejar o litisconsórcio facultativo. Citizen action proposta na forma da lei. 2 A omissão do Poder Público no tocante ao dever constitucional de assegurar proteção ao meio ambiente não exclui a responsabilidade dos particulares por suas condutas lesivas, bastando, para tanto, a existência do dano e nexo com a fonte poluidora ou degradadora. Ausência de medidas concretas por parte do Estado do Rio Grande do Sul e do Município de Porto Alegre tendentes, por seus agentes, a evitar a danosidade ambiental. Responsabilidades reconhecidas. Responsabilidade objetiva e responsabilidade in ommitendo. Culpa. Embargos acolhidos. (EI º Grupo de Câmaras Cíveis TJRS j. 1º rel. Des.Carlos Roberto Lofego Canibal). O presente acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul analisa danos causados ao meio ambiente por empresa privada e a solidariedade do ente estatal por omissão no dever de fiscalização. Tem-se, respectivamente, responsabilidade civil objetiva e subjetiva. A análise a ser apresentada conduzirá o raciocínio para uma responsabilidade subjetiva do Poder Público por omissão no dever de fiscalizar atividades

2 potencialmente poluidoras e a falta de exigência, frente à empresa poluidora, de medidas necessárias e aptas a evitar o dano ao ambiente natural. Ressalte-se, contudo, a possibilidade da inversão do ônus da prova entre a culpa da administração pública e sua contribuição indireta na produção do resultado lesivo e, ainda, a incidência do princípio do in dúbio pro ambiente. COMENTÁRIOS A responsabilidade por danos causados ao meio ambiente baliza-se pela teoria da responsabilidade integral, toda a extensão da agressão ao ambiente natural, considerado como macrobem, deve ser reparado e todas as pessoas, físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, estão obrigadas a fazê-lo, desde que tenham contribuído para tanto, não havendo possibilidade de argüição de excludentes da responsabilidade. Tem-se previsão constitucional no 3º do art , e o dispositivo ordinário do 1º do art. 14 da Lei 6938/81 3. A verificação do nexo causal entre a atividade poluidora e o resultado lesivo ao ambiente natural é atenuada, isto é, basta a constatação fática entre os dois fatores, independentemente da causa exata do dano ambiental. Afirmação corroborada pela possibilidade da aplicação da solidariedade passiva existente entre vários poluidores em potencial localizados na mesma área originária do dano ambiental. No que se refere às pessoas de direito privado, os danos causados ao meio ambiente, seja por ação ou omissão, independentemente de culpa, impõem a elas a obrigação de repará-los. 1 Mestre em Tutela Coletiva dos Direitos Supra-individuais UEM/PR. Especialista em Direito Ambiental e Desenvolvimento Econômico PUC/Londrina. Docente na Faculdade Integrado. gerent@grupointegrado.br. 2 As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. 3 Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade [...] Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 2, n. 1, p , jan./jun

3 Entretanto, a questão é mais complexa quando envolve pessoas de direito público. Primeiramente, a responsabilidade administrativa, conforme dispõe o art. 37, 6º da CF 4, é objetiva por ação dos agentes públicos que causam danos a terceiros. Trata-se de responsabilidade fundamentada na teoria do risco administrativo, isto é, há possibilidade de alegação de excludentes da responsabilidade, como a força maior, culpa da vítima e culpa de terceiros. 5 Pacífico na doutrina a posição da necessidade de demonstrar culpa da administração pública por atos omissivos. O autor Celso Antônio Bandeira de Mello dispõe: É que, em caso de ato omissivo do poder público, o dano não foi causado pelo agente público. E o dispositivo constitucional instituidor da responsabilidade objetiva do poder público, art. 107 da CF anterior, art. 37, 6º da CF vigente refere-se aos danos causados pelos agentes públicos, e não aos danos não causados por este, como os danos provenientes de incêndio, de enchentes, de danos multitudinários, de assaltos ou agressões que alguém sofra em vias e logradouros públicos, etc. Nesses casos, certo é que o poder público, se tivesse agido, poderia ter evitado a ação causadora do dano. A sua não ação, vale dizer, a omissão estatal, todavia, se pode ser considerada condição da ocorrência do dano causa, entretanto, não foi. A responsabilidade em tal caso, portanto, do Estado será subjetiva. 6 Mesmo entendimento verifica-se na obra do autor Hely Lopes Meirelles: [...] o que a Constituição distingue é o dano causado pelos agentes da Administração (servidores) dos danos ocasionados por atos de terceiros ou por fenômenos da natureza. Observe-se que o art. 37, 6º, só atribui responsabilidade objetiva à Administração pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros. Portanto, o legislador constituinte só cobriu o risco administrativo da atuação ou inação dos servidores públicos; 4 As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 5 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, 13 ed. São Paulo: Atlas, 2001, p MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Responsabilidade extracontratual do Estado pelos comportamentos administrativos. In: Revista dos Tribunais, 552/11, 13 e 14. Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 2, n. 1, p , jan./jun

4 não responsabilizou objetivamente a Administração por atos predatórios de terceiros, nem por fenômenos naturais que causem danos aos particulares. 7 Cite-se, ainda, a posição do autor Rui Stoco: [...] consiste a responsabilidade subjetiva na obrigação do Estado em indenizar em razão de um procedimento contrário ao Direito, de natureza culposa ou dolosa traduzido por um dano causado a outrem, ou em deixar de impedi-lo, quando deveria assim proceder. [...]. Em resumo, a ausência do serviço causada pelo seu funcionamento defeituoso, assim mesmo pelo retardamento, é quantum satis para configurar a responsabilidade do Estado pelos danos daí decorrentes em desfavor dos administrados. 8 Especificamente à responsabilidade ambiental da administração pública, esta baseia-se, como qualquer outra pessoa, no 3º do art. 225 da CF e 1º do art. 14 da Lei 6938/81. Desta forma, no caso de danos a bens ambientais pelo fato da própria administração pública, por ação de seus agentes ou concessionários do serviço público, conjuga-se o art. 3º, IV e 1º do art. 14 da Lei 6938/81 e 6º do art. 37 da CF. Há responsabilidade objetiva com base na teoria do risco integral. Porém, no caso de omissão do Poder Público que, desta forma, contribui para o resultado lesivo ao ambiente natural, decorrente de atividades potencialmente poluidoras, não possui nexo causal, isto porque de sua omissão não pode decorrer nenhuma conseqüência, visto que ele nada fez. Neste sentido, a obrigação do ente estatal de reparar danos ambientais decorrentes do não fazer exige a demonstração da culpa administrativa, em qualquer de suas modalidades (negligência, imperícia ou imprudência). Tem-se, assim, a necessidade de demonstrar a falta do serviço que, segundo o autor Pasqualotto, pode decorrer de conduta comissiva ou omissiva do Poder Público, tendo em vista que o sentido daquele termo é amplo, pois alcança a 7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 504). Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 2, n. 1, p , jan./jun

5 ausência, o não funcionamento ou o funcionamento deficiente dos serviços públicos. 9 Verifica-se, então, que o Poder Público tem responsabilidade objetiva quando danos causados a terceiros ou ao meio ambiente decorrerem de suas atividades próprias, caso contrário há que se provar a culpa administrativa. Entretanto, trata-se de uma análise restrita à clássica dicotomia do direito em público e privado. Isto não quer dizer que a responsabilidade do Estado deva ser objetiva em face de sua omissão, apenas dever-se-ia repensar o direito à luz dos interesses difusos e, com isso, alguns aspectos deveriam ser melhor elucidados. Em se tratando de danos ambientais, o art. 225 da CF instituiu o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental, e sua efetivação exige políticas públicas concretas, atuação e fiscalização do Poder Público nas atividades potencialmente poluidoras. Mencionado artigo dispõe expressamente: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (grifo nosso). É possível afirmar, ainda, que é função exclusiva do ente estatal fiscalizar as atividades potencialmente poluidoras, sendo sua competência impor sanções administrativas e judiciais para o descumprimento de normas protetivas do meio ambiente. Desta forma, a responsabilidade do Estado por danos ocorridos ao meio ambiente por agentes degradadores é solidária, contudo, é subjetiva por omissão no dever de fiscalização de atividades potencialmente poluidoras. Ressalte-se, entretanto, que a presença de microssistemas jurídicos faz repensar o direito, seus conceitos, princípios e seus destinatários, estes não mais considerados singularmente, mas integrantes de um todo, cujos direitos abrangem 9 PASQUALOTTO, Adalberto. Responsabilidade civil por dano ambiental: considerações de ordem material e processual. In: BENJAMIN, Antonio Herman V. (Coord.). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 2, n. 1, p , jan./jun

6 número indeterminado ou indeterminável de pessoas. Neste sentido, a prova da omissão do poder público deve restringir-se à falta do serviço como, por exemplo, a demonstração de que a empresa poluidora não possuía licenciamento ambiental ou, se possuía, não estava cumprindo o objetivo de preservar o ambiente. Acrescente-se, ainda, a possibilidade da aplicação do princípio da inversão do ônus da prova, ou seja, diante da hipossuficiência, econômica e de conhecimentos técnicos das vítimas do dano ambiental, devidamente representadas em juízo por pessoas legalmente legitimadas, cabe à administração pública provar sua atuação na tutela ambiental. O direito ao ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida direito, aliás, desta e das futuras gerações, deve ser respeitado e posto acima de interesses econômico e político-público, nem sempre condizentes com o interesse da coletividade. Imperioso comentar que as questões tratadas em ações judiciais que tratam de danos ambientais são de intensa conflituosidade. Princípios constitucionais, não raras vezes, são questionados e colidem entre si. Há interesse do agente poluidor em obter lucros, cujos reflexos são benéficos à sociedade em razão da geração de empregos, arrecadação de tributos para a administração pública, melhoria do poder aquisitivo da população local. Em outro sentido, tem-se a produção de externalidades negativas com a exploração desenfreada dos recursos naturais e com o uso do ambiente natural como depósito de dejetos industriais sem que sejam contabilizados nos custos das empresas e, conseqüentemente, a queda na qualidade de vida em razão do meio ambiente sofrer impactos com a atividade potencialmente poluidora. Note-se, com isso, que o Poder Público também tem interesse na instalação de indústrias e isto, muitas vezes, faz com que normas que visam a tutela do ambiente natural sejam relativizadas, podendo dar causa a resultados lesivos. Diante do conflito entre dois direitos fundamentais, há que se analisar, no caso concreto, qual deles preponderá. Contudo, o direito ao meio ambiente São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 2, n. 1, p , jan./jun

7 ecologicamente equilibrado, além da incidência do princípio intergeracional, é essencial para a própria sobrevivência do homem, da sua saúde e, conseqüentemente, a garantia da dignidade humana. Enfim, a responsabilidade da administração pública por danos causados ao meio ambiente por atividades potencialmente poluidoras por omissão do dever de fiscalização é subjetiva. Entretanto, por se tratar de direito fundamental, dever exclusivo do poder público de fiscalizar, obrigação constitucional de tutelar o ambiente, é possível afirmar a ocorrência da inversão do ônus da prova, ou seja, a administração pública é quem tem a função de demonstrar, em juízo, que agiu com prudência, cautela e que cumpriu seu dever de fiscalização. Caso haja dúvida, aplicase o princípio do in dubio pro ambiente. A jurisprudência analisada não estuda a possibilidade da inversão do ônus da prova, restringe-se apenas à solidariedade passiva da administração pública por danos que terceiros causaram ao meio ambiente. Responsabilidade subjetiva por omissão. Enviado: 06/04/06 Aceito: 30/04/06 Publicado: 13/05/06 Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 2, n. 1, p , jan./jun