O cinema como caminho narrativo para a construção da memória
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- Rafael Brian Barbosa Marroquim
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1 O cinema como caminho narrativo para a construção da memória Fabio Osmar de Oliveira Maciel * Resumo O cinema pode se apresentar como um caminho narrativo para a construção da memória e do saber histórico. No caso do documentário Jango (1984), de Silvio Tendler, este discurso emerge através de uma narrativa arranjada por imagens de arquivo, ressignificadas pelo cineasta através de diversos elementos constitutivos do documentário (voz over, música etc.). Jango pode ser visto como um lugar de memória, fabricado através dos enquadramentos eleitos pelo diretor. O filme, que foi lançado num momento significativo da história política do país, narra a trajetória de João Goulart, nos dizendo também muito sobre o contexto de seu lançamento, Assim, é nosso objetivo refletir sobre estas questões, evidenciando os mecanismos usados pelo cineasta para a construção da memória política do período retratado no filme e seu uso no presente, observando a relação entre saber histórico e memória. Palavras-chave: Cinema, Memória Social, João Goulart. Abstract The cinema can be presented as a narrative way for the construction of memory and historical knowledge. In the case of the documentary "Jango" (1984), by Silvio Tendler, this discourse emerges through a narrative arranged by archival footage, re-signified through various constituents of the documentary (voice over, music etc...) "Jango" can be seen as a "place of memory", manufactured through the frameworks chosen by the director. The film, which was launched at a significant moment of political history of the country, tells the history of João Goulart, also telling us much about the context of its launch, It is therefore our objective to reflect on these issues, highlighting the mechanisms used by the filmmaker to build the political memory of the period portrayed in the film and its use in the present, observing the relationship between historical knowledge and memory. Keywords: Cinema, Social Memory, João Goulart. Introdução Memória e história se entrelaçam na filmografia do documentarista Silvio Tendler. O cineasta possui em torno de 30 filmes realizados. Destacam-se Os Anos JK Uma trajetória política (1980) e Jango (1984), documentários que se tornaram grandes sucessos de público, realizados em um momento oportuno, de início do debate político depois de quase * Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
2 vinte anos de silêncio mandatório. Enquanto o primeiro apresentava a possibilidade de desenvolvimento econômico com democracia, contrariando o discurso autoritário existente, o documentário Jango (1984) continuava o debate a partir da idéia de justiça social. Os Anos JK arregimentou 800 mil espectadores e Jango, 1 milhão. Esses números foram apenas superados com documentário O mundo mágico dos trapalhões (1981), que consegui seduzir 1,8 milhão de espectadores. Sua filmografia ainda inclui documentários sobre Castro Alves (1999), Glauber Rocha (2002) e Milton Santos (2006). Neste ano Tendler lançou nos cinema, depois de 19 anos de produção, Utopia e barbárie (2010) e finaliza atualmente um filme sobre a vida de Tancredo Neves. Podemos identificar em seus filmes algumas marcas, como o uso de imagens de arquivo e a utilização de uma "voz narradora" que conduz seus documentários. Uma outra característica é que o cineasta sempre documenta a história recente do Brasil, normalmente através de um personagem eleito (JK, Jango, Glauber, Milton Santos etc), funcionando como uma espécie de síntese de suas teses. Seu último filme, Utopia e Barbárie (2010), funciona como uma autobiografia e, de certa forma, podemos entendê-lo como um projeto que continua as idéias apresentadas nos filmes de 1980 e Utopias e barbáries estão presentes em suas narrativas, ou seja, o desenvolvimentismo e a democracia de Juscelino e os projetos sociais de Goulart foram as utopias de suas épocas, interrompidas pela barbárie de Em seus filmes, principalmente em Jango, dois elementos chamam a atenção: as imagens de arquivo e a narração. No primeiro caso, é importante ressaltar que as imagens de arquivo servem à memória social e a história, e são fundamentais para a construção da narrativa em Jango. Nesses casos, o cineasta opta por não utilizar apenas a câmera, se apropriando da filmagem de outrem, momento em que as imagens são atualizadas e dotadas de novos sentidos pelo processo de montagem, pela narração, depoimentos e demais elementos significadores presentes no filme. Essas imagens retiradas de seu contexto acabam por revelar novos sentidos, significados ocultos diferentes do original. No segundo caso, a narração, ou melhor, a voz over 1, é um artifício fundamental e presente nos filmes documentários até hoje. Consuelo Lins (2008:131) afirma que esta locução é onisciente e onipresente, dirigindo sentidos e fabricando interpretações. É a voz de Deus, a voz do saber que enuncia e antecipa. Através dela, não há dúvida sobre aquilo que o cineasta fala, não 1 Na voz over, como a voz de Deus, o narrador não é visto, apenas ouvido. A voz over aparece de forma nãodiegética. O termo narração em off também pode ser usado, mas o termo off é empregado melhor, por exemplo, no caso de um entrevistador, que está presente, mas fora (off) do enquadramento da câmera. Escutamos apenas sua voz. 2
3 existindo espaço para ambigüidades nem deixando o espectador perceber o filme sozinho. A voz narradora identifica e dá o significado da imagem que vemos, ela é autoritária e onisciente. Nela, o locutor identifica como devemos entender, dando a moral da história (BERNARDET, 2003:246). No caso de Jango a narração dá coerência e sentido às imagens, que por si só são fragmentárias, não deixando a interpretação por nossa conta. O documentário Jango : breves considerações O documentário inicia com um cinejornal sobre visita de João Goulart à China, momento crucial na sua trajetória política e início dos seus percalços como presidente da República. A partir deste momento, a voz não cessa, construindo progressivamente a narrativa do documentário. Antes mesmo dos créditos de abertura, vemos imagens de Brasília e uma certa movimentação. A voz de Deus anuncia, trata-se da renúncia de Jânio Quadros. Os depoimentos corroboram a informação dada pela locução. A narração em off direciona todo o filme, denotando cada imagem de arquivo. Logo após abertura, vemos a vista aérea de uma cidade. Sabemos que é São Borja por que a voz nos diz, a mesma fala que, já nos minutos iniciais do documentário traça uma relação de proximidade entre as vidas de Vargas e Goulart, afirmação anunciada outras vezes. Goulart é associado à carta-testamento, ao legado, à herança política, etc. a vida dos presidentes são constantemente cruzadas, havendo uma espécie de eco, de continuidade na tradição política, iniciando com Vargas, passado por JK e, finalmente, Goulart. Nas cenas mostradas da morte de Vargas, conseguimos visualizar bem estas relações de proximidade: [...] Jango levava consigo a carta-testamento e a herança política de Vargas (JANGO, 1984:19). 2 Além da narração, os depoimentos se apresentam também como elementos significadores. No filme as imagens de arquivo são costuradas entre si, ressignificadas pela voz narradora, e corroboradas pelos depoimentos de pessoas relacionadas a Goulart. A maioria dos depoentes possui algum tipo de simpatia pelo governo de Goulart, estando em maior ou menor grau relacionados com o presidente deposto. A oposição é feita principalmente através dos discursos do general Muricy 3, ligado a Escola Superior de Guerra e integrante do grupo que derrubou João Goulart. O general tem o papel no filme de representar a versão oficial da história, sendo contraposto pelas versões favoráveis ao 2 Nos trechos transcritos do documentário, optamos por referenciar o roteiro publicado (JANGO..., 1984). 3 Há a presença também do ex-governador de Minas Gerais Magalhães Pinto, mas seus momentos são poucos. 3
4 governo. Sua aparição está relacionada aos momentos em que o locutor fala de conspirações. O seu primeiro depoimento serve para justificar o Manifesto dos Coronéis. Muricy aparece também nos momentos de incerteza do governo Jango, como a tentativa de impedir sua posse após a renúncia de Jânio Quadros. Mas logo suas declarações são abafadas por outros depoimentos simpáticos a Goulart. Muricy, assim como Magalhães Pinto, está no filme apenas para serem desditos. O documentarista constrói a imagem de um grande político, mesmo antes da presidência, preocupado com a justiça social e contra os interesses do imperialismo, lutando por um capitalismo menos selvagem, tudo em nome da nação. Os depoimentos apenas chancelam esta idéia, reforçando a imagem positiva do biografado. Afinal, quem poderia se identificar com os discursos de Magalhães Pinto e Muricy em 1984? Jean-Claude Bernardet (1988) afirma que a identificação com o discurso contrário ao governo de Goulart é inexistente no documentário. Por exemplo, quem avalia o Plano Trienal é Celso Furtado, seu idealizador. O filme cria uma imagem pura e sem defeitos de Jango. A versão militar não chega a constituir um problema para a memória construída por Silvio Tendler. Neste sentido, Bernardet (1988:42) identifica que filmes constituídos de material de arquivo manipulam elementos constituintes da linguagem cinematográfica e produzem significações, e no caso do filme Jango, [ao] invés de montar o debate interno à esquerda em relação às atitudes e planos polêmicos do governo Goulart [...], o filme optou por montar um debate onde a versão militar (oferecida pelo General Antonio Carlos Muricy) é contraposta às versões de políticos e sindicalistas favoráveis ao governo (Gregório Bezerra, Francisco Julião, Leonel Brizola, Aldo Arantes, etc) (BERNARDET; RAMOS, 1988:44-45). Contudo Tendler é sempre bem claro sobre suas intenções. Em entrevista à Revista VERSUS, declara: O cinema é uma realidade editada por um olhar autoral. Por mais que esse olhar autoral se confunda com a realidade, ela jamais será a realidade. Não existe uma realidade em si; existirá sempre uma realidade interpretada por alguém. A história que você conta é aquela que você viu e quer contar (ARTE..., 2009:110). Sobre essa questão da parcialidade, o jornalista Sérgio Augusto (1984:9) sintetiza: Não existe filme imparcial, exceto o virgem. A única coisa imparcial numa produção cinematográfica é a câmera, assim mesmo quando está desligada. Ligou, parcializou-se. 4
5 Outro elemento importante na construção de significados é a música, intensificando ainda mais a simpatia por João Goulart. Os temas musicais compostos por Milton Nascimento e Wagner Tiso significam as imagens de arquivo: o enterro de Vargas, o comício da Central do Brasil, a morte de Édson Luís, o exílio de Goulart e sua posterior morte, são todos marcados pela trilha sonora, assim como, nos momentos finais, o poema de Fernando Brant, que segundo Bernardet (1988:46), serve como epitáfio e síntese do propósito do filme. A música Coração de estudante, que dá o tom emotivo do documentário, tornou-se um hino da esperança a canção esteve relacionada também à campanha pelas Diretas. Outro momento importante do filme onde não há locução, mas a significação das imagens se mantém é a ocasião da Revolta dos Marinheiros. A locução se cala, e as imagens de arquivo são conduzidas e ressignificadas por outra fonte informacional. As cenas dos marinheiros amotinados no Clube Naval são mescladas com cenas do filme O Encouraçado Potemkin (1925). A locução, quando reaparece, reafirma as semelhanças das revoltas: No final de março, após assistirem ao filme sobre o Encouraçado Potemkin, os sonhos povoaram a cabeça da marujada brasileira (JANGO, 1984:66). Uma rememoração possível Foram vinte anos até que fosse possível rememorar uma trajetória, talvez não totalmente esquecida, mas silenciada. Uma questão fundamental para entender o impacto do filme é seu contexto de lançamento. A década de 1980 representou o ocaso da ditadura no Brasil. O contexto era de grande mobilização na sociedade, que nas principais cidades exigiam eleições diretas para presidente, acelerando desta forma a abertura controlada. Era necessária a aprovação da Emenda Dante de Oliveira, rejeitada em abril de O documentário foi lançado nos cinemas semanas antes. É um filme feito em celebração à democracia, nas palavras do próprio diretor. E porque do seu lançamento em 1984, exatos vinte anos do golpe? Realizar um filme simpático a figura de João Goulart antes disso seria impossível: [se] Tendler exumou primeiro a trajetória de Juscelino foi porque relembrar a de Jango parecia impossível, naquela época [1980]. Valeu a pena esperar pelo fim do AI-5 (AUGUSTO, 1984:9). O filme de Tendler surge reivindicando a memória e recodificando esta trajetória silenciada. Há com o filme um passado levado para o presente e um expectativa de futuro, os projetos políticos e sociais de Goulart e o otimismo passado pelo filme são apropriados pelo 5
6 movimento de 1984, funcionando como uma metáfora da liberdade e de lutas sociais. Goulart passa a ser visto como parte integrante da luta pelas eleições diretas, afirma o próprio Tendler (JANGO...,1984:103). O documentário teve grande repercussão, pois falava de algo que naquele momento poderia ser dito. O sucesso de Jango faz sentido se entendermos seu contexto de lançamento. A década de 1980 representou o processo de democratização, trazendo para a superfície novos debates, principalmente sobre a memória do período que antecede a este. É importante nestes momentos o fazer lembrar. Desta forma, o documentário, através de uma trajetória individual, reconstrói um contexto histórico, levando o debate para a conjuntura de Tendler cria um lugar de memória. Cabe a história então problematizar esta memória. Considerações parciais Devemos verificar que toda memória é mais uma construção do que uma lembrança. Tendler aposta na emoção ao resgatar a trajetória de Goulart, construindo um filme simpático a sua figura. Assim, através do documentário, uma nova memória é fabricada através das imagens de arquivo, dos depoimentos e demais elementos constitutivos da narrativa fílmica. O estatuto de verdade do documentário deve ser relativizado. O historiador deve observar que o diretor molda a experiência, embora, em alguns casos, permaneça invisível (BURKE, 2004:200). Jango é a interpretação que Silvio Tendler dá ao contexto. A ilusão do real deve ser desconstruída e o filme entendido no contexto de sua produção. O filme de Tendler não fala apenas de João Goulart, mas do ocaso da ditadura e das manifestações pela redemocratização e eleições diretas, e de todas as expectativas daquele momento. O filme se apresenta como uma projeção de memória do próprio cineasta. Como vestígio, deve ser olhado com distanciamento e analisado à luz de sua época. Devemos perguntar: o que significa falar de Jango no início da década de 1980? A crítica aos generais realizada pelo filme já fazia parte do discurso da época em que foi lançado. Além disso, as expectativas do filme tornam-se também expectativas da sociedade. Jango desta forma trabalha com uma memória silenciada. Para o documentarista, sua reconstrução foi necessária naquele contexto de debate político. A questão está na forma que essa memória foi construída. O mais importante aqui é problematizar o porque das escolhas, omissões, falsificações e/ou fabricações. Devemos refletir não apenas naquilo que é dito, mas também no não dito. O historiador, ao analisar o filme, deve observar os códigos e categorias da escrita cinematográfica, assim como não apenas estudar o filme, mas também seu diretor. A imagem 6
7 não deve ser vista como uma fonte subordinada à textual, nem ignorada. Ela possui igualmente um valor testemunhal. O historiador Hayden White (1988) trabalha bem esta idéia, ao criar a categoria historiophoty, que é a representação da história e nosso pensamento sobre ela em imagens visuais e discurso filmado. Sobre o uso de imagens, devemos verificar que o cinema deve ser pensado junto com o alargamento de fontes históricas e do aumento de materiais utilizados para o ensino da disciplina. Devemos entendê-lo como um vestígio construído por indivíduos ou instituições. Não devemos apenas utilizar o cinema como um complemento ou uma ilustração. Sobre o uso de imagem, Mauad comenta (2009:252): [...] para se fazer uma história com imagens é preciso superar o uso tradicional dos documentos como prova de um passado que realmente aconteceu. As imagens não são evidências, mas representações sociais. Assim, deve o historiador entendê-las no seu contexto de produção, observando seu circuito de produção, circulação e uso. Referências AUGUSTO, Sérgio. Os relâmpagos da emoção. In.: JANGO: como quando e porque se depõe um presidente. Porto Alegre: L&PM Editores, OS ANOS JK: uma trajetória política. Direção de Silvio Tendler. Rio de Janeiro: Caliban, DVD. ARTE ENGANJADA. Versus, Rio de Janeiro: UFRJ/CCJE, ano 1, n. 3, nov BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo: Contexto, BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, O ENCOURAÇADO POTEMKIN. Direção de Serguei Eisenstein. São Paulo: Continental Home Vídeo, DVD. JANGO: como, quando e porque se depõe um presidente da República. Direção: Silvio Tendler. Rio de Janeiro: Caliban, DVD. JANGO: como quando e porque se depõe um presidente. Porto Alegre: L&PM Editores,
8 LAGNY, Michele Lagny. O cinema como fonte da história IN NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni B. e FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo, um olhar sobre a história. Salvador, São Paulo; UFBA/UNESP, LINS, Consuelo L.. O ensaio no documentário e a questão da narração em off. In: ADES, E.; BRAGANÇA, G; CARDOSO, J; BOUILLET, R.. (Org.). O Som no cinema. Rio de Janeiro: Tela Brasilis/Caixa Cultural, MAUAD, Ana Maria. Ver e conhecer: o uso de imagens na produção do saber histórico. In.: A escrita da história escola: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, 10, WHITE, Hayden. Historiography and Historiophoty. The American Historical Review, vol. 93, n. 5, dez Disponível em: < Acesso em: 5 jun
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