Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
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- Ana do Carmo Palma Furtado
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1 PROVAS ESPECIALMENTE ADEQUADAS DESTINADAS A AVALIAR A CAPACIDADE PARA A FREQUÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR PARA MAIORES DE 23 ANOS Centro de Competência de Artes e Humanidades PROVA DE AVALIAÇÃO DE CONHECIMENTOS E COMPETÊNCIAS 17 de Junho de 2014 Duração: 120 minutos PORTUGUÊS/LITERATURA GRUPO I Leia atentamente o poema abaixo transcrito e responda às questões que se lhe seguem: Lisbon revisited (1923) Não: Não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram? Não me macem, por amor de Deus!
2 Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho. Já disse que sou sozinho! Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia! Ó céu azul o mesmo da minha infância Eterna verdade vazia e perfeita! Ó macio Tejo ancestral e mudo, Pequena verdade onde o céu se reflete! Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo... E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! Álvaro de Campos 1. Analise a estrutura e conteúdo do poema de Álvaro de Campos, salientando as escolhas e características estéticas próprias deste heterónimo de Fernando Pessoa. 2. Identifique os objetos da recusa do sujeito poético e o que simboliza a sua negação. 3. Defina a tensão presente entre dois tempos (passado/ presente; infância/ idade adulta) na penúltima estrofe do poema, recorrendo a expressões do texto. 4. Identifique dois recursos estilísticos que exprimam a temática da decepção e rebeldia. 5. Indique dois tempos verbais mais recorrentes e explique o seu valor expressivo. GRUPO II Resuma o excerto abaixo transcrito, construindo, para tal, um texto bem estruturado, com discurso lógico mas sintético, que foque a ideias principais nele expressas: Tão facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu Príncipe, uma Ilusão! E a mais amarga, porque o Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na Cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe
3 uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; e rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os dum cárcere ou dum quartel... A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ele recompensa os Santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugida rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho Deus do Himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da Paixão a apertada carteira do Dote! Eça de Queirós, A Cidade e As Serras, Lisboa, Edição Livros do Brasil, pp GRUPO III Escolha apenas uma das questões: 1. Explique e desenvolva as afirmações do texto, complementando-as com argumentos e conhecimentos decorrentes da leitura e estudo da lírica camoniana: Cantou Camões a mulher e o amor segundo os cânones mais rigorosos da tópica e da retórica petrarquistas; por vezes serviu-se deles, em consciente e nova contaminação com as formas de conteúdo e de expressão da poesia cortesanesca. Aníbal Pinto de Castro, Camões poeta pelo mundo em pedaços repartido, in Páginas de um Honesto Estudo Camoniano, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007, p Explique e desenvolva as afirmações do texto, complementando-as com argumentos e conhecimentos decorrentes da leitura e estudo da poesia lírica de Cesário Verde: O método poético característico de Cesário a estrutura ambulatória dos poemas que reflecte o movimento do observador solitário cujo discurso é registado no poema, a
4 justaposição significativa de percepções aparentemente aleatórias e dissociadas, e o correspondente uso do assíndeto deriva do seu desejo expresso de registar as gradações subtis de uma sociedade mutável. Helder Macedo, Nós. Uma leitura de Cesário Verde, Lisboa Plátano Editora, 1975, p. 20. Cotações Grupo I - 75 pontos 20 pontos (conteúdo 15 pts. / organização e correcção linguística 5 pts.) 20 pontos (conteúdo 15 pts. / organização e correcção linguística 5 pts.) 15 pontos (conteúdo 10 pts. / organização e correcção linguística 5 pts.) 10 pontos (conteúdo 9 pts. / organização e correcção linguística 1 pt.) 10 pontos (conteúdo 9 pts. / organização e correcção linguística 1 pt.) Grupo II - 55 pontos Conteúdo 30 pts. Organização e correcção linguística 25 pts. Grupo III - 70 pontos Conteúdo 45 pts. Organização e correcção linguística 25 pts. TOTAL pontos Linhas de correcção da Prova de Português/Literatura para maiores de 23 anos Grupo I 1. Estrutura: - opção pela composição de estrofes irregulares; recusa da rima e da regularidade métrica; submissão da forma ao conteúdo. Conteúdo: No poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, o sujeito poético demonstra o seu cansaço, rejeitando as ciências e a civilização moderna, reclamando o direito à solidão e à indiferença. Faz parte da terceira fase de Álvaro de Campos, a fase pessimista. Este heterónimo é configurado por Pessoa como
5 vanguardista e cosmopolita, exaltando, em tom futurista, a civilização moderna e os valores do progresso. No entanto, neste poema, o poeta não quer sentir tudo de todas as maneiras, experimentar a velocidade, nem celebra a civilização industrial e mecânica, mas expressa o desencanto, a decepção, a desistência, o direito à solidão e ao desencanto. Face à incapacidade de realização das ambições que tinha na infância, sente-se abatido, aproximando-se de Pessoa na inadaptação, na expressão da nostalgia da infância e no cepticismo face à sociedade. O sujeito poético revela, por isso, de forma clara, a incapacidade de viver no mundo exterior, refugiando-se no pensamento e no interior do eu. 2. O sujeito poético recusa: as conclusões ; os sistemas ; as artes ; as estéticas ; a moral ; as ciências ; a metafísica ; a civilização moderna. A recusa simboliza a sua não aceitação das verdades, comportamentos e estruturas impostos pela sociedade, afirmando a decepção com a civilização e a escolha de um caminho individual e diferente. 3. ( o mesmo d minh infân i ; Tejo n estr e m do ; Lisbo de o tror e de hoje ) a infância é símbolo da felicidade perdida, presente no céu azul, no Tejo e na Lisboa de outrora. O sujeito poético vê o céu, o Tejo e Lisboa com o olhar da sua infância e ao mesmo tempo com o olhar de agora, realçando, assim, a oposição entre o que eram as possibilidades de outrora e a decepção que agora sente. A infância é evocada como momento de felicidade que antecede a consciência adulta da dor de pensar e da perda da esperança. 4. Uso de construções negativas ( Não me venham ; Não me tragam estéticas! ) Anáfora ( Não me tragam /Não me falem ; Queriam-me casado / Queriam-me o contrário ;) Antítese ( verdade vazia e perfeita ) Enumeração ( Das ciências, das artes, da civilização moderna! ) Metáfora ( céu azul (...) eterna verdade vazia e perfeita ; mágoa revisitada, Lisboa... ) Uso do vocativo ( ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje! ) Eufemismo ( Enquanto tarda o Abismo e o ilêncio enquanto não morrer) nterrogação retórica ( Que mal fiz eu aos deuses todos? ) 5 Presente do conjuntivo com sentido imperativo: ( Deixem-me ) direito do sujeito a uma escolha própria, individual; ( Não me venham... ; Não me tragam... ) recusa do sujeito poético; cansaço relativamente às imposições Pretérito imperfeito do indicativo ( Queriam-me ) imposição da sociedade e posição insubmissa do sujeito
6 Presente do indicativo tomada de consciência e de posição Grupo II Todo o excerto insiste, pela voz narrativa que interpela Jacinto, nos malefícios e constrições da vida citadina: abatimento físico, moral e intelectual do Homem; dependência servil; cedência à insaciável e ilusória busca pela fruição e materialidade; aprisionamento a rituais; desumanização; subversão de valores e sentimentos. Grupo III 1. Referência ao retrato feminino concebido com recurso a estilemas petrarquistas (ex. rosas, neve, ouro, rubis, sol). Explicitação do modo como na lírica camoniana, por via da contaminatio, a influência petrarquista se estende aos poemas da medida velha. Concretização através da evocação de textos ilustrativos. 2. Referência ao papel primordial da observação na poetização do real. Destaque para o modo como a percepção, assente em construções frásicas de natureza assindética, expressa um percurso deambulatório, onde os elementos circundantes se justapõem mais do que se concatenam. Concretização através da evocação de textos ilustrativos.
A sensação do absurdo em Lisbon Revisited (1923)*, de Álvaro de Campos.
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