Maristela Barenco Corrêa de Mello 1

Transcrição

1 A importância de novas formas de ler a vida no processo dos Fatores de Auto-Organização Maristela Barenco Corrêa de Mello 1 A Subjetividade é um dos clássicos temas que foram colocados e mantidos, pela modernidade científica, de forma tácita, nos porões de nossa cultura ocidental. René Descartes contribuiu muito, quando associou ciência à busca da verdade, e a necessidade de condução do pensamento e da razão através de um método rigoroso. Embora ele não tenha aspirado construir um método, mas conduzir sua própria razão, desfrutamos de uma herança cartesiana, que se manifesta como uma desconfiança de base em relação à res cogitans. A ciência clássica, tal como a conhecemos, ainda é a ciência dos objetos: privilegia a objetividade em detrimento da subjetividade como a dimensão que qualifica e legitima o conhecimento, não avançando na superação desta dicotomia. As subjetividades continuam latentes e invisibilizadas. Daí, com Morin, que podermos falar de uma ciência sem consciência. Félix Guattari, filósofo e psicanalista, dirá, na contramão de nossa cultura, que a subjetividade é a matéria-prima de todos os fenômenos importantes da atualidade. Ele chama a atenção para algo que ainda fica no domínio da psicologia, da filosofia e dos hospitais psiquiátricos, onde não circulam o sistema de significação dominante : que qualquer mudança na estrutura macropolítica e macrossocial terá que levar em conta os processos de produção da subjetividade. Embora invisíveis, são determinantes. 1 Doutora em Meio Ambiente, professora na Universidade Federal Fluminense (Infes-UFF), pesquisadora do Instituto FAO

2 Esta reflexão faz-me pensar nos processos de adoecimento e de cura. De fato, o tema da subjetividade encontra-se, nas livrarias, em prateleiras de auto-ajuda, como algo menor. Ainda assim, à revelia dos milhares trabalhos científicos que são produzidos nas Universidades, a cada ano, são os livros de auto-ajuda que viram best sellers e os mais lidos. E entre as muitas interpretações que podemos fazer de tal fenômeno, há um grito silencioso de pessoas buscando formas de se haver consigo mesmas. Nos consultórios de psicologia, a subjetividade aparece como assunto privado, mas já, muitas vezes, em forma de adoecimentos e conflitos, expressão mesmo do retorno de algo que foi recalcado. Síndrome do pânico, transtornos de ansiedade e comportamento, depressão, entre outros, atingem recordes de expressão. Nos consultórios médicos clássicos, tais adoecimentos, chamados psíquicos, ainda não encontram confortavelmente o seu lugar. Um dos aspectos mais significativos da terapêutica dos Fatores de Auto-Organização é sua herança em sistemas mais integrados, não duais, que compreendem a vida como um todo indivisível, como a Homeopatia e as Medicinas Tradicionais Chinesa e Ayurvédica, que correlacionam físico e psíquico. Mas, o tema que me inquieta, nesta perspectiva, é do despertar de uma nova subjetividade como parte integrante dos processos de cura. Dra. Míria de Amorim, idealizadora da terapêutica FAO, tem utilizado muitas metáforas para explicar o processo de adoecimento e de cura. Em uma delas, diz que quando estamos adoecidos temos, em termos psíquicos e mentais, a sensação de estarmos excluídos da grande festa do céu, abundante e divina. Da identificação com o filho pródigo. Em outra metáfora, fala da pessoa que tem a sensação, num jogo de pinguepong, de estar só. Ele lança a bola, mas não sente a experiência de uma 2

3 presença que o corresponda. Em outro momento, ainda, fala do sujeito que se vê preso, às margens de um grande e abundante rio, sentindo-se fora do grande fluxo. No horizonte destas metáforas, a terapêutica dos Fatores de Auto- Organização constitui naturezas homeopáticas, capazes de abrir, nos sujeitos, as memórias de seus potenciais de saúde, por serem idênticas às mesmas. O FAO é, pois, dotado da capacidade de promover um alinhamento do sujeito, com seu biocampo, possibilitando sua autoorganização em todos os aspectos da vida. Como uma chave, não é o FAO que cura, mas ele promove a grande abertura do sujeito rumo ao seu processo de cura. Como alguém comprometida com os processos de subjetividade, no entanto, algumas questões têm emergido na reflexão desta terapêutica. Se os Fatores de Auto-Organização não curam milagrosamente, mas inserem o sujeito em um processo de auto-organização, suas formas de pensar podem ser aliadas ou sabotadoras do próprio processo. Os processos de adoecimento não se caracterizam, apenas, por estados fisiológicos, mas, também, por estados psíquicos, que, para muitas tradições, estão na base mesmo dos processos de adoecimento. Daí a importância destes processos terem um lugar importante dentro da própria terapêutica. Nesta perspectiva, há duas reflexões importantes que não podemos perder de vista. A primeira refere-se à compreensão das origens complexas dos modos de pensar e sua preponderância. Os processos psíquicos são constituídos sempre no diálogo entre as formas de pensar predominantes de um tempo (paradigmas), as formas de pensar predominantes de um núcleo familiar de origem, as experiências singulares de cada pessoa 3

4 (afetivas, profissionais, socioeconômicas e culturais). Dito de outra maneira, as formas de pensar, ou as formas psíquicas de um indivíduo são tecidas por muitos fios, de várias naturezas, e que se convertem em emaranhados próprios, grande parte das vezes, cristalizados. Daí a sensação que temos, muitas vezes, de sermos reféns de nossas próprias crenças. Embora atribuamos singularidade aos pensamentos e crenças, elas são produzidas de forma hegemônica, coletivamente. Isso quer dizer que há, predominantemente, formas hegemônicas de pensar os estados de saúde e os estados de doença. Pessoas adoecidas tendem a ser mais negativas, a sentirem-se como vítimas, a cristalizarem, em si, processos de conflitos e mágoas, a cultivarem um desvalor em relação a si. A segunda tem a ver com o analfabetismo relacional, próprio de nossa cultura. Uma característica do pensamento moderno é a própria fragmentação e a simplificação. Aprendemos a ler os processos da vida de forma causal, mas sempre linearmente. Como que diante de um imenso quebra-cabeça de nossa vida, de uma figura construída previamente ou idealisticamente, vemo-nos diante de um enorme mosaico, cujas peças não se encaixam, não fazem sentido e não se inter-retrorelacionam. Enxergamos as partes separadas e nos concentramos nelas, sobretudo, nos projetos frustrados, interrompidos, muitas vezes, tragicamente. Mas não nos atemos aos padrões, às conexões, aos arranjos provisórios e inesperados, às retomadas necessárias, aos resgates obrigatórios, ao redimensionamento de rotas, ao imponderável. Daí a importância de se compreender a terapêutica dos Fatores de Auto-Organização como um processo de cura integral, de nossos corpos e de nossas mentes, de nossos padrões afetivos e psíquicos. Se não trabalharmos de forma consciente e sensível sobre nossos processos mentais e psíquicos, corremos o risco de tomarmos o FAO e 4

5 continuarmos nos sentindo excluídos da grande festa do céu, por insistirmos em nossos scripts prévios do que seja não inclusão, do que seja festa, do que signifique estar no céu. Ou corremos o risco de nos acomodarmos ao jogo solitário de pingue-pongue e não estarmos atentos às bolas que retornam, marcando a presença de uma grande parceria, que esteve ali, todo tempo, dos mais felizes aos mais difíceis. Mais grave, ainda, é ser devolvido às margens do grande fluxo da vida, de onde todos viemos, e levarmos conosco, para o fluxo, a lógica do aprisionamento às margens. Sim, há aqueles que sonham mudar de lugares afetivos, espirituais, energéticos, vibracionais pensando da mesma forma que os apartou e os adoeceu. Utilizando a metáfora do Continente, como a verdade a qual nos acostumamos, e do Arquipélago, como a invenção de novos percursos de pensamento, a filósofa Ana Godoy postula que uma viagem não se inicia com a saída do Continente, mas quando o perdemos como referência. E chama a atenção para a contradição de todo viajante, que embora busque o novo, seja sempre, ele mesmo, a extensão móvel do Continente que deixou, com suas verdades estabelecidas. Portanto, precisamos ser vigilantes de nossos modos de pensar e de nossa tendência a repetir os padrões aos quais desejamos superar. Conta-se, numa lenda de macacos, que a forma mais fácil de capturá-los é, ao mesmo tempo, a mais sutil. Coloca-se, dentro de uma garrafa, uma banana. O macaco a vê e coloca, na garrafa, sua mão, por dentro do gargalo. Mas, ao pegar a banana, não consegue mais trazer sua mão de volta, permanecendo ali até a chegada de seu caçador. O macaco pode abrir sua mão e ir embora. Mas ele troca, voluntariamente, sua liberdade, por uma banana. Nesta mesma perspectiva, quantos de nós nos mantemos em cativeiros voluntários, por conta de apegos, sobre os quais não abrimos mão e nem queremos mudar? 5

6 Tenho pensando na imensa dádiva que é poder ser (re)conectado à grande Energia, matriz sábia da vida, em tempos de pseudoenergias, disponíveis e baratas, que nos adoecem e nos fazem sentir vazios. Energia não é tomar estimulantes que se encontram à disposição, malhar o dia todo numa Academia, para manter o corpo sarado, passar noites sem dormir e acreditar que a vida é apenas festa. Energia é sentir-se conectado e alinhado à matriz da própria vida, e desfrutar de equilíbrio, de uma freqüência vibratória alta, de uma consciência, de uma lucidez e de uma potência, que nos encoraje a realizar nosso dom neste mundo, a fazer as escolhas necessárias, e a viver no aqui-e-agora. Energia é, pois, uma aquisição interna. É uma experiência de inteireza entre o que se pensa, o que se sente, o que se diz e o que se faz. Penso que os Fatores de Auto-Organização são a reconexão e o alinhamento com esta fonte de Energia Vital, escassa em nosso mundo moderno. São catalisadores de mudança e evocadores do sujeito que habita em nós, o único capaz de empreender as mudanças que aspira em sua vida, na perspectiva da realização do seu dom, e de voltar a ler o mundo e a sua vida, como se tudo acontecesse pela primeira vez, e na perspectiva de ser o grande protagonista na grande festa do céu. 6