1 DETECÇÃO e MONITORIZAÇÃO de PACIENTES com DRC Dr. Carlos Zúñiga San Martín I. INTRODUÇÃO Nos estágios iniciais da Doença Renal Crónica (DRC), usualmente, o diagnóstico é corroborado apenas pelos exames laboratoriais ou por imagens. As manifestações clínicas são tardias e só são evidentes nos estágios mais avançados. (Figura 1) Em algumas ocasiões, o diagnóstico de DRC pode ser um achado, em indivíduo assintomático para quem são solicitados exames de sangue ou urina para avaliação preventiva de saúde. Esperar o aparecimento de sintomatologia para fazer o diagnóstico de DRC pode atrasar o começo do tratamento oportuno que evite ou retarde a progressão para estágios avançadas da doença. O momento, tipo de intervenção e pertinência das ações preventivas em saúde renal estarão determinados pela idade, condição clínica, comorbidades e estágio da DRC. A respeito disso, a participação ativa do paciente na tomada de decisões relativas à sua doença, além de dever ético, desempenha um importante papel na continuidade e adesão ao tratamento e tem impacto positivo nos resultados esperados. É mandatório, portanto, que a equipe médica nefrológica forneça informação oportuna e completa sobre o diagnóstico, prognóstico e opções de tratamento ao paciente e à sua família. 1
2 Os objetivos de cada estratégia são diferentes para cada estágio da DRC e requerem uma abordagem multidisciplinar que inclua a participação de outros profissionais de saúde (nutricionistas, assistentes sociais, psicólogos etc.). As ações de prevenção primária estão destinadas à pesquisa, educação e promoção dos estilos de vida saudáveis, bem como à triagem e tratamento das pessoas com fatores de risco suscetíveis a desenvolver DRC, p. ex.: diabetes mellitus, hipertensão arterial, obesidade, doença cardiovascular etc. A prevenção secundária Objetivos de prevención en la Enfermedad Renal Crónica. Pesquisa y Tratamiento Factores de riesgo ETAPAS PRE TSR * 1 2 3 4 5 Diálisis o Trasplante renal Tto. Conservador Cuidados paliativos PREVENCI ÓN PRI MARI A PREVENCI ÓN SECUNDARI A PREVENCI ÓN TERCI ARI A OBJETIVOS v Educar y promover la salud renal. v Tamizar y tratar factores de riesgo susceptibles de desarrollar ERC. OBJETIVOS v Pesquisar y tratar la ERC. v Detener o enlentecer progresión. v Prevenir complicaciones. ( Morbi / mortalidad cardiovascular) aborda a pesquisa, diagnóstico e tratamento da DRC, e suas intervenções estão orientadas a deter ou diminuir a progressão da doença e a prevenir complicações. Finalmente, nos estágios avançados da doença, a prevenção terciária, em conjunto com a pesquisa e o tratamento das complicações associadas, promove a admissão informada e oportuna em qualquer uma das quatro opções de tratamento: hemodiálise/diálise peritoneal, transplante renal ou tratamento conservador/paliativo. (Figura 2) Figura 2. OBJETIVOS v Programar el Ingreso oportuno a diálisis o Tx renal. v Pesquisar y tratar complicaciones. v Promover Calidad de vida en salud. * TSR: Terapias de sustitución renal 2
3 II. PAPEL DO LABORATORIO CLÍNICO NO DIAGNÓSTICO, ESTRATIFICAÇÃO E ACOMPANHAMENTO DA DRC A DRC é caracterizada pela diminuição da função renal e/ou alteração da estrutura renal por mais de três meses, independente da etiologia. É diagnosticada segundo, ao menos, um dos seguintes critérios: 1. Velocidade de filtração glomerular (FG) <60 ml/min/1,73 m 2. 2. Lesão renal caracterizada por: Albuminúria moderada/grave (Relação Albumina/Creatinina [RAC] 30 mg/g). Alterações no sedimento urinário, p. ex.: hematúria. Alterações eletrolíticas ou outras alterações de origem tubular. Alterações estruturais (por diagnóstico imagiológico). Alterações estruturais histológicas (biópsia renal). Histórico de transplante renal. O grande contribuição desta definição reside em que o diagnóstico de DRC não requer, na maioria das vezes, especialistas nem exames sofisticados; basta ter uma história clínica completa, centrada em buscar fatores de risco, e, de acordo com a definição já indicada, uma amostra de sangue, para medir a creatinina sérica, e outra, de urina, para pesquisa de albuminúria ou proteinúria. Em cada um dos cinco estágios da DRC, a medição da função renal, unida à albuminúria/proteinúria, são os pilares do diagnóstico, estratificação, monitorização no tratamento e avaliação do risco cardiovascular. Levando em consideração o importante papel dos exames para medir a função renal e a albuminúria/proteinúria, são apresentados a seguir conceitos e recomendações básicas para sua interpretação adequada na prática clínica. MEDIÇÃO DA FUNÇÃO RENAL A medição da função renal é de grande importância clínica, porque é a base da definição e classificação da DRC. Existe consenso de que a medição da FG seria o melhor índice para avaliar a função renal. Seu valor varia segundo a idade, gênero e massa corporal. Nos adultos jovens oscila em torno de 110-130 ml/min/1,73 m 2, e vai diminuindo com a idade a um ritmo aproximado de 1 ml/min/1,73 m 2 /ano, a partir dos 40 anos. Considera-se progressão acelerada quando a diminuição for maior ou igual que 5 ml/min/1,73 m 2 /ano. As seguintes afirmativas resumem os consensos e recomendações propostos pelas sociedades científicas de nefrologia no mundo: 3
4 a) A medição da FG com inulina (considerada o padrão ouro) ou o uso de isótopos radiativos ( 51 Cr-EDTA ou 125 I-Iotalamato) e não-isotópicos não está disponível na prática clínica habitual e é de alto custo e complexa metodologia. b) c) Uremia/BUN não são bons índices para avaliar a função renal, porque são influenciados pela dieta e o estado de hidratação. d) A creatinina plasmática foi a substância endógena mais utilizada na estimativa da FG. Contudo, seu uso isolado não está recomendado para a avaliação da função renal, porque o valor é afetado por fatores como idade, sexo, raça, dieta, tamanho corporal, algumas drogas e pela técnica de laboratório. e) O clareamento (clearance) de creatinina como estimativa da FG apresenta uma série de limitações. Sobre-estima em torno de 10-20% a FG nos indivíduos com função renal normal, em comparação ao obtido pelo clearance de insulina, devido à secreção de creatinina a nível do túbulo proximal. Além disso, agrega os inconvenientes e erros frequentes na coleta de urina de 24 horas, especialmente em crianças e idosos. f) Para evitar as limitações da coleta de urina de 24 horas, várias organizações e sociedades científicas de nefrologia recomendam o uso, em adultos, de equações para a estimativa da filtração glomerular (FGe). g) Essas equações modelam matematicamente a relação observada entre o nível plasmático de creatinina e a FG, na população estudada. Sua vantagem é que fornecem uma estimativa da FG que, empiricamente, combina a média dos fatores (idade, sexo, raça, tamanho corporal) que influenciam a creatinina, reduzindo o erro do seu valor isolado. h) O cálculo do clearance de creatinina obtido por meio da coleta de urina de 24 h não é melhor que a estimativa da FG a partir das equações, exceto em determinadas situações médicas. (Tabela 1) i) As equações para a estimativa da FG não são aplicáveis a todas as populações e situações clínicas. (Tabela 1) Quando for necessária maior exatidão, recomenda-se realizar medição da FG com radioisótopos ou, na sua falta, avaliar mediante clearance de creatinina por meio de coleta de urina de 24 horas, evitando erros na coleta. j) Deve-se ter em mente que o desenvolvimento das equações está baseado em dados de pacientes com DRC estudados em países desenvolvidos, não havendo validação suficiente com dados da população latino-americana. 4
5 k) As equações mais utilizadas são a Cockcroft-Gault e a MDRD-4. A maioria dos estudos e sociedades científicas recomenda usar a equação MDRD-4, em adultos entre 18 e 70 anos, normonutridos, por ela ser mais precisa que a equação Cockcroft-Gault. l) A equação MDRD-4 foi obtida a partir de indivíduos com DRC que tiveram a FG avaliada com clearance 125 I-Iothalamato. Sua principal vantagem é que não precisa do peso do paciente, apresentando maior exatidão diagnóstica para valores de FG entre 15 e 60 ml/min/1,73 m 2, correspondentes aos estágios 3 e 4 da DRC. m) Para valores entre 60 e 90 ml/min/1,73 m 2, o comportamento desta equação é variável, em função do tipo de população estudada e do método utilizado para a determinação da creatinina. n) De acordo com o anterior, a FG estimada pela equação MDRD-4 deve ser informada da seguinte forma: Valores superiores a 60 são informados como >60 ml/min/1,73 m 2 e não com o valor numérico calculado na equação. Isso é assim pela maior dispersão dos resultados nas equações de estimativa para valores de filtração glomerular superiores a 60 ml/min/1,73 m 2, em comparação com o clearance renal aferido por 125 I-Iothalamato. Por conseguinte, esses valores podem corresponder a FG estimada normal ou serem compatíveis com DRC estágios 1 ou 2. Deve-se levar em consideração que nos estágios iniciais (1 e 2) o valor da FG não é diagnóstico, por si só, de DRC e requer a presença de algum marcador associado de lesão renal por mais de três meses. Valores que sejam iguais ou inferiores a 60 devem ser informados com o valor numérico calculado, expresso em ml/min/1,73 m 2. Os valores entre 30-59, 15-29 e <15 são indicadores de DRC estágios 3 (a e b), 4 e 5, respectivamente, se persistirem por mais de três meses. É bom lembrar que valores inferiores a 60 ml/min/1,73 m 2 estão associados à maior prevalência de complicações da DRC e a risco cardiovascular. Recomenda-se conferir o resultado com um novo exame em, ao menos, um mês, realizando avaliação renal complementar. o) Hoje em dia, as sociedades internacionais de nefrologia recomendam utilizar a equação CKD-EPI, que tem melhor correlação na estimativa da FG, devido à menor dispersão dos resultados. Outras vantagens adicionais em relação ao MDRD são a maior exatidão e melhor capacidade preditiva da filtração glomerular (especialmente valores entre 60 e 90 ml/min/1,73 m 2 ), bem como a predição da mortalidade global e cardiovascular, ou do risco de apresentar DRC terminal. p) Entretanto, para poder utilizar a equação CKD-EPI é necessário que a determinação da 5
6 creatinina seja realizada com traçabilidade adequada à metodologia de referência IDMS (espectrometria de massa com diluição isotópica). Recomenda-se consultar no laboratório clínico local a modalidade utilizada para o exame de creatinina. Caso esteja referida (IDMS), pode ser usada a equação CKD-EPI, caso contrário, deve-se continuar utilizando a equação MDRD-4. Considera-se que a CKD-EPI deve substituir progressivamente as equações anteriores, na medida em que mais laboratórios utilizem a creatinina padronizada por IDMS. q) Existem aplicações gratuitas para celulares por meio das quais é possível acessar as equações MDRD-4 e CKD-EPI para realizar o cálculo rápido da FG estimada, p. ex.: MedCalc; Qx Calculate. r) Existem, ainda, sítios web onde é possível realizar cálculos on-line, p. ex.: www.senefro.org/modules.php?name=nefrocalc e www.nephromatic.com/egfr.php s) Tendo em vista a simplicidade da informação requerida, os laboratórios clínicos deveriam informar FGe com a equação MDRD-4 ou CKD-EPI, conforme corresponda, toda vez que um exame de creatinina sérica for solicitado. Tabela 1. Situações clínicas nas quais a estimativa da FG mediante o uso de equações é inadequada o Indivíduos que seguem dietas especiais (ex.: vegetarianos estritos). o Alterações importantes na massa muscular. o Indivíduos com índice de massa corporal que 19 ou 35 kg/m 2. o Presença de hepatopatia grave, edema generalizado ou ascite. o Idades extremas. o Gravidez. o Função renal instável, p. ex.: Injúria Renal Aguda. o Estudo de potenciais doadores de rim. 6
7 MEDIÇÃO DA ALBUMINÚRIA/PROTEINÚRIA Em condições normais, um indivíduo saudável elimina pela urina entre 40-80 mg de proteína/dia, das quais, aproximadamente 10-15 mg correspondem a albumina. A albumina é a proteína predominante na urina, na DRC secundária a diabetes, hipertensão arterial ou glomerulopatias, causas mais frequentes de DRC no adulto, O teste com tira reagente para urina (dipstick) é um marcador qualitativo de proteinúria, que só detecta albuminemia se esta atingir concentrações maiores que 30 mg/dl (300-500 mg/dia). Entretanto, descreveu-se que já com níveis menores existiria maior risco de progressão da DRC, morbimortalidade cardiovascular e mortalidade em geral, especialmente em populações de alto risco, como diabéticos e hipertensos. Assim, nessa população de risco, é preciso determinar a albumina urinária com métodos que permitam detectar concentrações menores. Os últimos Guias KDIGO 2012 recomendam prescindir do uso de termos como microalbuminúria (30-300 mg/dia) ou macroalbuminúria (>300 mg/dia), preferindo o uso do termo albuminúria ou excreção urinária de albumina, mais o valor absoluto da RAC em amostra isolada de urina expresso em mg/g. O valor da RAC normal é menor que 10 mg/g. A albuminúria é classificada como normal ou ligeiramente elevada (A1), moderadamente elevada (A2) e severamente elevada (A3), se a RAC em amostra isolada de urina for <30, 30-300 ou >300 mg/g, respectivamente. (Tabela 2) Quanto à mensuração da presença de albuminúria/proteinúria, são apresentados abaixo os seguintes consensos e recomendações: a) Para a pesquisa da proteinúria, recomenda-se utilizar o teste da tira reagente em amostra isolada de urina, de preferência, a primeira da manhã. b) Tiras reagentes são um método aceitável de detecção, pela sua alta especificidade e sensibilidade, porém, indicam apenas a concentração de proteínas, influenciada pelo volume urinário e a hidratação. É uma avaliação qualitativa, que só dará positivo com proteinúria acima de 300 mg/dia. c) Se a tira reagente for positiva para proteína (uma ou mais +), deve ser confirmado mediante estudo quantitativo. d) Para medir quantitativamente a proteinúria é desnecessária a coleta de urina de 24 horas. A Relação Proteína/Creatinina urinária (RPC, expressa em miligramas de proteína por grama de creatinina urinária), em amostra isolada de urina, corrige os erros e limitações da coleta de urina e mantém uma boa correlação com a medição de 24 horas (valor normal acima de 200 mg/g). (Tabela 3) 7
8 e) Se a tira reagente for negativa para proteína, caso estejam sendo avaliados indivíduos com fatores de risco suscetíveis de desenvolvimento de DRC (diabetes, HTA etc.), recomenda-se utilizar a Relação Albumina/Creatinina (RAC) em amostra isolada de urina, para pesquisar níveis de albumina abaixo do limite de detecção da tira reagente (não é necessário fazer coleta de 24 h). (Tabela 2) f) Se houver disponibilidade de tira reagente específica para albumina e esta for (+), recomenda-se, mesmo assim, realizar estudo quantitativo (RAC). g) A quantificação da excreção urinária de albumina ou de proteínas na urina de 24 horas é reservada para situações especiais, nas quais considera-se necessário uma medição mais acurada. h) Em pacientes com DRC e proteinúria significativa (por exemplo: RAC >300-500 mg/g), a monitorização com RPC deve ser continuada, pelo seu menor custo e porque, à medida que a proteinúria aumentar, especialmente na síndrome nefrótica, a RAC será menos sensível. i) Devido à variabilidade da excreção urinária, é necessário certificar-se de que o paciente efetivamente tem albuminúria ou proteinúria. Devem existir, no mínimo, duas de três amostras positivas, no período de três a seis meses. j) A pesquisa de albuminúria ou proteinúria elevada precisa, sempre, descartar outras causas que possam aumentar transitoriamente essa excreção, como infecções urinárias, exercício físico, febre, ou insuficiência cardíaca. 8
9 Referências 1. Improving Global Outcomes (KDIGO) CKD Work Group, KDIGO 2012 Clinical Practice Guideline for the Evaluation and Management of Chronic Kidney Disease. Kidney International 3 (2013):1-150. 2. A. Martínez-Castelao et al. «Documento de consenso para la detección y manejo de la Enfermedad Renal Crónica». Nefrología. 2014; 34(2):243-62. RECOMENDADA 3. NICE Clinical Guideline. Chronic kidney disease early identification and management of chronic kidney disease in adults in primary and secondary care. Issued: July 2014. https://www.nice.org.uk/guidance/cg182 4. Manuel Gorostidi et al. Documento de la Sociedad Española de Nefrología sobre las Guías KDIGO para la evaluación y el tratamiento de la enfermedad renal crónica. Nefrología. 2014; 34(3):302-16. RECOMENDADA 9