Relato de caso: Glomerulosclerose segmentar e focal familiar

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Transcrição:

46 J Bras Nefrol 2003;25(1):46-50 Relato de caso: Glomerulosclerose segmentar e focal familiar Familial focal segmental glomerulosclerosis Patrícia Ferreira Abreu, Gianna Mastroianni Kirsztajn e Aparecido Bernardo Pereira Escola Paulista de Medicina, Unifesp. São Paulo,SP aulo,sp,, Brasil Glomerulosclerose segmentar e focal. Familiar. Herança autossômica. Estudo genético. Focal segmental glomerulosclerosis. Familial. Autosomal inheritance. Genetical study. Resumo A ocorrência familiar de glomerulosclerose segmentar e focal (GESF) vem sendo relatada na literatura e atualmente é a lesão histopatológica mais freqüente entre pacientes com síndrome nefrótica familiar. Tanto a herança autossômica dominante quanto a herança autossômica recessiva já foram descritas. A doença caracteriza-se por pobre resposta ao tratamento com corticóide, evolução variável para insuficiência renal crônica (IRC) e ausência de recorrência no transplante renal. Os autores fazem uma revisão dos aspectos clínicos da GESF familiar e chamam a atenção para a importância deste diagnóstico. Vinte e nove membros de uma família brasileira (três gerações) com GESF familiar foram investigados e o estudo genético encontrou associação com o gene NPHS2 localizado no cromossomo 1q25-31. Abstract The occurrence of familial focal segmental glomerulosclerosis (FSGS) has been reported and is nowadays the most frequent pathological lesion among patients with familial nephrotic syndrome. Autosomal dominant as well as autosomal recessive patterns of inheritance have already been described. The disease is characterized by poor responsiveness to steroid therapy, variable progression to chronic renal failure (CRF) and absence of recurrence in renal transplantation. A review of the clinical aspects of the familial FSGS is presented and it is emphasized the importance of this diagnosis. Twenty-nine members of a Brazilian family (three generations) with familial FSGS were investigated and the genetic study revealed an association with NPHS2 gene, located on chromosome 1q25-31. Introdução A ocorrência familiar de GESF vem sendo documentada nos últimos anos e, atualmente, é a lesão histopatológica mais comum entre pacientes com síndrome nefrótica familiar. 1,2 Tanto a herança autossômica dominante quanto a herança recessiva são descritas e os genes responsáveis por estes fenótipos, bem como os seus produtos gênicos, vêm sendo descobertos. Visando chamar a atenção para o diagnóstico da forma familiar de GESF, foram descritos os achados clínicos de 29 membros de três gerações de uma família brasileira portadora desta patologia. Recentemente, esta família fez parte de um estudo multicêntrico internacional, envolvendo seis famílias, em que se realizou a caracterização genética dos indivíduos envolvidos. 3

GESF familiar - Abreu PF et al J Bras Nefrol 2003;25(1):46-50 47 Métodos Definições Operacionais GESF familiar: caso índice e, no mínimo, outro membro da família afetada. a) caso índice: um indivíduo com GESF diagnosticada por biópsia renal representativa (acima de quatro glomérulos) e investigação negativa para etiologia secundária. b) caso afetado: GESF diagnosticada por biópsia renal ou presença de proteinúria acima de 300 mg/ 24h ou IRC ou transplante renal por nefropatia nãodiagnosticada. Pacientes Foram colhidas amostras de urina e sangue periférico de 28 membros de uma família portadora de GESF familiar. O sangue foi enviado para o laboratório do Dr. Martin R. Pollak (Renal Division and Department of Medicine, Brigham and Women s Hospital and Harvard Medical School, Boston, Massachusetts) para a realização dos estudos genéticos. Nas urinas, foram determinadas proteinúria e microalbuminúria, sendo estas análises realizadas em múltiplas ocasiões. Relato dos casos Estudo clínico: todos os pacientes acometidos estavam na geração ll, sendo poupados aqueles das gerações l e lll (Figura 1). Caso índice Indíviduo 1: Mulher de 36 anos de idade que se apresentava com proteinúria de 4,3 g/24h, creatinina sérica de 2,2 mg/dl, depuração de creatinina de 28 ml/ min/173m 2 e pressão arterial normal. A audiometria foi normal e a biópsia renal revelou cinco glomérulos, sendo quatro totalmente esclerosados e um com lesão esclerosante segmentar. Observaram-se áreas de atrofia tubular e fibrose intersticial com espessamento dos vasos arteriais. Não respondeu ao tratamento com imunossupressor evoluindo para IRC. Membros afetados Indivíduo 2: Mulher de 35 anos de idade que, em 1995, apresentou diagnóstico de IRC com necessidade de hemodiálise, não sendo, portanto, realizados biópsia renal ou imunossupressão. Em dezembro de 1996, foi submetida à transplante renal de doador cadáver, evoluindo sem recidiva no enxerto. Indivíduo 3: Mulher de 33 anos de idade que, em 1986, desenvolveu síndrome nefrótica cuja biópsia renal não foi representativa. A paciente abandonou o seguimento e, após 10 anos, foram diagnosticados hipertensão arterial sistêmica (HAS) e uremia necessitando de hemodiálise. Posteriormente, foi submetida à transplante renal de doador cadáver, também sem recidiva. Indivíduo 5: Mulher de 29 anos de idade, normotensa, apresentava função renal normal e proteinúria ao redor de 1,0 g/24h. Indivíduo 6: Homem de 27 anos de idade, normotenso, apresentava função renal normal e proteinúria ao redor de 1,5 g/24h. Indivíduo 8: Homem de 20 anos de idade, normotenso, assintomático com função renal normal e proteinúria de 3,5 g/24h. A biópsia renal revelou GESF sendo submetido a seis meses de corticóide sem resposta ao tratamento (Figura 2). Figura 1 - Pedigree da família portadora de GESF. Figura 2 - Microcospia óptica de um glomérulo com esclerose segmentar do indivíduo 8.

48 J Bras Nefrol 2003;25(1):46-50 GESF familiar - Abreu PF et al Indivíduo 9: Mulher de 18 anos, normotensa, apresentava função renal normal e proteinúria ao redor de 1,0 g/24h. A idade média de apresentação da doença nos membros desta família foi de 24 anos e as características observadas sugerem tratar-se de um padrão de herança autossômica recessiva. Membros não-afetados O pai de 70 anos era portador de HAS e a mãe de 56 anos era diabética; ela apresentava microalbuminúria (54 mg/g creatinina) e função renal normal. Os indivíduos 4, 7 e 10 evoluem com função renal normal e sem proteinúria. Também foram avaliados 17 filhos dos membros da segunda geração, com idades variando entre um e 18 anos. Para tal fim, foi coletada urina de 12h noturnas para a quantificação de microalbuminúria. Seis crianças apresentaram valores acima de 20 µg/min. Entretanto, o valor máximo encontrado foi de 36 µg/min. Estudo genético Este estudo, realizado em colaboração com Dr. Martin R. Pollack, mapeou um locus localizado no cromossomo 1q25-31. 3 Nesta região, encontra-se o gene NPHS2, que é o responsável pela codificação da podocina; proteína de membrana que se relaciona com outras proteínas do diafragma da fenda entre os processos podocitários. Posteriormente, foram identificadas duas mutações para este gene: R229Q e R291W. Observou-se que os membros afetados desta família foram todos heterozigotos para as duas mutações. 4,5 Discussão Graças à interação entre o clínico e o geneticista, tem-se demonstrado que várias doenças, inclusive as renais, são secundárias a distúrbios genéticos. A família aqui descrita apresenta um padrão sugestivo de herança autossômica recessiva, com idade média de apresentação da doença de 24 anos. Entre os indivíduos submetidos à imunossupressão, não se observou qualquer resposta e, em dois casos, não houve recorrência da doença após o transplante renal. A identificação de pacientes portadores de GESF familiar, avaliando apenas os dados epidemiológicos e clínicos, é muito difícil devido à heterogeneidade genética que envolve esta patologia. Recentemente, Conlon et al 6 (1999) descreveram as características epidemiológicas e clínicas de 190 pacientes identificados a partir de 60 famílias. Em 26 famílias, os indivíduos eram afetados em mais de uma geração (multi-geração). Os dados são vistos na Tabela 1. Nos dois grupos, 93 indivíduos (49%) desenvolveram IRC terminal em tempo médio de 30 anos. As variáveis que se associaram com o pior prognóstico foram a menor idade de apresentação, acometimento da doença em somente uma geração, aumento inicial da creatinina, taxa de proteinúria e raça negra. Winn et al 7 (1999) analisaram cinco famílias com padrão autossômico dominante com 16 indivíduos afetados. A idade média de apresentação da doença foi de 33 anos (variação entre 17 a 80 anos), a proteinúria foi geralmente nefrótica e a creatinina esteve ao redor de 3 mg/dl. Vários pacientes foram diagnosticados como afetados por volta dos 60 anos. Observa-se que a GESF familiar pode ocorrer em qualquer idade, em qualquer raça e pode acometer ambos os sexos. Na época do diagnóstico, pode-se encontrar indivíduos com função renal normal e outros com disfunção grave, já necessitando de diálise. O mesmo ocorre com a proteinúria, a síndrome nefrótica é um achado freqüente, mas encontram-se indivíduos portadores deste distúrbio apenas com microalbuminúria. Assim, de fundamental importância, é o histórico familiar, no qual um interrogatório completo deve ser feito, especialmente questionan- Tabela 1 Características clínicas dos pacientes portadores de GESF Familiar Multi-geração (N=125) Uma geração (n=65) P Raça branca 10% 52% 0,001 Sexo masculino 44% 43% 0,5 Idade anos 32±15 20±12 0,0001 Creatinina mg/dl 4,1±5,7 3,0±3,7 0,2 Proteinúria g/24hs 3,8±3,4 7,0±5,6 0,002 Hipertensão 60% 82% 0,01

GESF familiar - Abreu PF et al J Bras Nefrol 2003;25(1):46-50 49 Tabela 2 Padrões de Herança identificados na GESF Familiar Herança Cromossomo Gene Proteína Recessiva 1q25-31 NPHS2 Podocina Dominante 19q13 ACTN4 α-actinina-4 Dominante 11q21-22?? do sobre parentes mais afastados, como primos. Na herança autossômica dominante, a idade de apresentação da doença é variável e embora pareça ser resistente ao tratamento, os indivíduos afetados nem sempre evoluem para IRC. Têm sido descritas mutações no cromossomo 11q21-22 cujo gene ainda não foi identificado e no gene ACTN4, que está localizado no cromossomo 19q13. Este gene é o responsável pela produção da a-actinina-4, proteína importante na adesão entre podócito e membrana basal glomerular. Este gene é amplamente expresso nos tecidos, porém estudos de imunohistoquímica em cortes renais verificaram que a a-actinina-4 se localiza apenas nos podócitos. O efeito desta mutação na estrutura e função renal ainda não é conhecido, mas como há outras proteínas que interagem com a a-actinina-4, pode ser que alterações em uma ou mais destas interações sejam críticas para a patogênese dessa doença. 8-10 A forma recessiva tem sido descrita em crianças e em adultos jovens e se caracteriza pela pobre resposta a corticóide, progressão para IRC e ausência de recorrência no transplante renal. A mutação foi localizada no gene NPHS2 localizado no cromossomo 1q25-31. Este gene é responsável pela codificação da podocina, uma proteína de membrana que está relacionada com outras moléculas do diafragma, como a nefrina e a proteína associada ao CD2 (CD2AP). Até o momento, 10 diferentes mutações para o gene NPHS2 foram identificadas e a mutação R138Q foi a mais encontrada. 3,4,11-13 Os padrões de herança identificados até o momento são vistos na Tabela 2. Apesar dos poucos trabalhos existentes na literatura sobre tratamento de indivíduos portadores de GESF familiar, observa-se que em quase todos a resposta foi insatisfatória; entretanto, a progressão para IRC foi extremamente variável. No que se refere ao transplante renal, Conlon et al (1999) estudaram 41 pacientes portadores de GESF familiar que haviam sido submetidos ao transplante. Em 10 anos, 62% dos enxertos estavam funcionando e somente um paciente evoluiu com recorrência da doença, diferente do que ocorre com a GESF não-familiar em que a recorrência está presente em 30% a 50% dos casos. 6,14 Assim, as três características clínicas que podem diferenciar a forma familiar da não-familiar no momento são: história familiar, pobre resposta ao tratamento e ausência de recorrência no transplante renal. Na prática, estes dados são de grande importância e ressaltam a necessidade de uma boa anamnese. Realçam também a importância que o mapeamento genético poderá ter no futuro próximo na identificação daqueles indivíduos que não se beneficiarão com o tratamento atualmente utilizado. Além disso, o diagnóstico de GESF familiar poderá contra-indicar a utilização de doadores vivos relacionados quando for necessário o transplante renal. Referências 1. Faubert PF, Porush JG. Familial focal segmental glomerulosclerosis. Nine cases in four families and review of the literature. Am J Kidney Dis 1997;30:265-0. 2. Vats A, Nayak A, Ellis D, Randhawa PS, Finegold DN, Levinson KL, et al. Familial nephrotic syndrome. Clinical spectrum and linkage to chromosome 19q13. Kidney Int 2000;57:875-1. 3. Tsukaguchi H, Yager H, Dawborn J, Jost L, Cohlmia J, Abreu PF, et al. A locus for adolescent and adult onset familial focal segmental glomerulosclerosis on chromosome 1q25-31. J Am Soc Nephrol 2000;11:1674-0. 4. Tsukaguchi H, Abreu PF, Pereira AB. Missense mutations in podocin in a family with adult onset FSGS. J Am Soc Nephrol 2000;11:415A.

50 J Bras Nefrol 2003;25(1):46-50 GESF familiar - Abreu PF et al 5. Abreu PF. Estudo clínico de glomerulosclerose segmentar e focal primária [Tese de doutorado]. São Paulo: Unifesp; 2001. 6. Conlon PJ, Lynn K, Winn MP, Quarles LD, Bembe ML, Perivack-Vance MA et al. Spectrum of disease in familial focal and segmental glomerulosclerosis. Kidney Int 1999;56:1863-1. 7. Winn MP, Conlon PJ, Lynn KL, Howell DN, Gross DA, Rogala AR et al. Clinical and genetic heterogeneity in familial focal segmental glomerulosclerosis. Kidney Int 1999;55:1241-6. 8. Mathis BJ, Kim SH, Calabrese K, Haas M, Seidman JG, Seidman CE et al. A locus for inherited focal segmental glomerulosclerosis maps to chromosome 19q13. Kidney Int 1998;53:282-6. 9. Kaplan JM, Kim SH, North KN, Rennke H, Correia LA, Tong HQ et al. Mutations in ACTN4, encoding alpha-actinin-4, cause familial focal segmental glomerulosclerosis. Nat Genet 2000;24(3):251-6. 10. Winn MP, Conlon PJ, Lynn KL, Howell DN, Slotterbeck BD, Smith AH et al. Linkage of a gene causing familial focal segmental glomerulosclerosis to chromosome 11 and further evidence of genetic heterogeneity. Genomics 1999;58(2):113-0. 11. Fuchshuber A, Jean G, Gribouval O, Gubler MC, Broyer M, Beckmann JS et al. Mapping a gene (SRN1) to chromosome 1q25-q31 in idiopathic nephrotic syndrome confirms a distinct entity of autosomal recessive nephrosis. Hum Mol Genet 1995;4:2155-8. 12. Boute N, Gribouval O, Roselli S, Benessy F, Lee H, Fuchshuber A et al. NPHS2, encoding the glomerular protein podocin, is mutated in autosomal recessive steroid-resistant nephrotic syndrome. Nat Genet 2000;24(4):349-4. 13. Schwarz K, Simons M, Reiser J. Podocin, a raft-associated component of the glomerular slit diaphragm, interacts with CD2AP and nephrin. J Clin Invest 2001;108:1621-9. 14. Winn MP, Alkhunaizi AM, Bennett WM, Garber RL, Howell DN, Butterly DW et al. Focal segmental glomerulosclerosis. A need for caution in live-related renal transplantation. Am J Kidney Dis 1999;33:970-4. Recebido em 26/10/2001. Aprovado em 5/3/2002. Financiado pela CAPES. Endereço para correspondência: Patrícia Ferreira Abreu Rua Botucatu, 740 04023-061 São Paulo, SP, SP, Brasil