II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional
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- Diego Barroso Filipe
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1 II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional Nações Africanas nas Irmandades Negras Mineiras do Século XVIII Juliana Aparecida Lemos Lacet * Introdução Os projetos de conquista da África e do Novo Mundo, arquitetados pelos portugueses a partir do século XV, estavam estreitamente ligados à formulação de uma cultura moderna que incluía um conjunto de situações ligadas ao tráfico de escravos, ao comércio de mercadorias e à colonização. O tráfico de escravos entre a África e a América foi, sem dúvida, um dos circuitos comerciais mais importantes da história da humanidade. As estimativas em torno dos escravos traficados para o Brasil giraram em torno de três milhões e meio de africanos. Desses, a metade foi traficada ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, cabendo ao século XVIII um total aproximado de um milhão e setecentos mil escravos 1. Estudos recentes dão conta de que algo em torno de doze milhões de africanos foram negociados entre os séculos XVI e XIX. Desse total, cerca de quatro milhões apenas para o Brasil 2. Em fins do século XVIII a descoberta da região mineradora impulsionou ainda mais a procura por escravos. Nos primeiros vinte anos da mineração entraram em Minas algo em torno de 50 mil escravos. Em 1717 a população escrava na região girava em torno de almas e em 1738 atingiu sua maior cifra, escravos, ao lado de forros 3. Pesquisas desenvolvidas por David Eltis, Stephen Behrendt e David Richardson têm permitido estabelecer as flutuações da economia escravista, reafirmando que a mineração, e não a plantation, constituiu-se como o grande eixo * Mestranda em História na Universidade Federal da Bahia. julianalacet@ig.com.br 1 Maurício Goulart, A escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico, São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1975, p David Eltis; Stephen Behrendt e David Richardson, A participação dos países da Europa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências, Afro-Ásia, 24 (2000). p Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África (especialmente Angola) e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional,
2 consumidor de escravos. Daí a importância da economia mineradora para o tráfico de escravos 4. A atividade mineradora e as circunstâncias por ela geradas contribuíram imensamente para a ordenação da sociedade mineira. A realidade das Minas do século XVIII era notadamente urbana, sua população era composta pelos ameríndios que ali já estavam, pelos que compunham as bandeiras paulistas, por africanos das mais diversas nações, por brancos; pessoas vindas de outras regiões da colônia, mineradores, comerciantes e religiosos, que faziam daquela região uma área essencialmente marcada pela diversidade. Dentre os critérios de diferenciação social era preponderante o da cor da pele. O grupo dominante, as chamadas "elites" eram representadas pelos "brancos". Os "pretos" eram escravos e libertos, e entre estes existiam também os "pardos" que ficavam entre os "pretos" e os "brancos" 5. Estas designações seguiam o padrão do contexto colonial brasileiro, no qual a cor era entendida como elemento de construção de uma identidade social que engendrava uma hierarquização refletida no cotidiano, nas várias instituições, na coletividade em geral. A diferenciação social, ou seja, a diferença de status entre escravo e senhor, livre ou cativo, preto ou branco, esteve presente nas mais diversas esferas do cotidiano, inclusive no âmbito religioso; as irmandades religiosas, por exemplo, foram locais onde se encontravam marcadas essas distinções. As irmandades foram uma das principais instituições presentes na colônia, principalmente nas Minas Gerais, onde em razão da proibição da fixação de ordens religiosas, a assistência social e o culto católico foram de responsabilidade dos leigos. Surgidas na Europa medieval, as irmandades difundiram-se no contexto da reforma tridentina. De feição predominantemente leiga, essas associações tinham como fim o culto a um santo de devoção e se dedicavam a obras de caridade voltadas para seus próprios membros ou para pessoas carentes não associadas. Foram importantes também na construção das igrejas e na realização das festas 6. Seus associados, os irmãos, contribuíam com jóias e taxas anuais, o que lhes garantia assistência quando doentes ou a realização de seus funerais. Estes sodalícios erguiam-se sob o consentimento do Estado e detinham todo um aparato legal, compromissos e 4 Manolo Florentino, Redescobertas da Escravidão, Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 05 de dezembro de 2004, Caderno Mais!. 5 Hebe Mattos de Castro, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista- Brasil, século XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, p Ronaldo Vainfas, Dicionário do Brasil colonial ( ), Rio de Janeiro, Objetiva, 2000, p
3 hierarquia. Na construção das igrejas e na realização das festas as irmandades também tiveram papel muito importante. No contexto das Minas Gerais do século XVIII as irmandades leigas alcançaram grande importância, por isso, a compreensão de suas funções nas Minas, não pode prescindir do estudo dos aspectos da vida cotidiana daquele período histórico. É inevitável que o estudo das irmandades leigas esteja inserido nas condições do poder político, social e econômico vigentes na época, uma vez que, uma análise desconexa faria com que perdêssemos suas dimensões religioso-culturais. O papel das duas mais importantes instituições da cultura portuguesa, que se instalaram em Minas, Igreja e Estado parecem não ter se cumprido efetivamente. O Estado Absolutista português impôs à capitania mineira uma política religiosa que não permitia a presença e fixação de ordens religiosas, sob alegação de que os religiosos eram os responsáveis pelo extravio do ouro e por insuflar o não pagamento de impostos. O governo metropolitano, apesar da maciça cobrança tributária, deixava de cumprir necessidades básicas da população, ficava então a cargo dos leigos o preenchimento de diversas lacunas da vida social e espiritual. Neste sentido, como destaca Caio Boschi, eram as irmandades que se propunham a facilitar a vida social, desenvolvendo inúmeras tarefas que, pelo menos em princípio, seriam da alçada do poder público. Assim as irmandades se afirmavam como uma das principais forças sociais presentes em Minas colonial 7. Como já dissemos, o principal critério de identidade na sociedade colonial era a classificação social decorrente da cor da pele, em combinação com a "nacionalidade", e isto se deu também nas irmandades. Existiam irmandades de brancos, de mulatos e pretos. As de brancos podiam ser de portugueses ou de brasileiros, as de pretos se subdividiam nas de mulatos e africanos, cativos ou não. As irmandades de escravos, chamadas irmandades de cor, erguidas por escravos e forros, homens e mulheres, obtiveram grande representatividade na sociedade de colonial visto que foram um dos únicos ou talvez o único meio de associação legal permitido aos escravos. Analisando as irmandades negras baianas João José Reis afirma que elas eram uma espécie de família ritual, em que africanos desenraizados de suas terras viviam e morriam solidariamente 8 7 Caio César Boschi, Os Leigos e o Poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais, São Paulo, Ática, 1986, p João José Reis, A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p
4 Em torno dessas associações escravos e forros constituiriam formas de reorganização social no Novo Mundo através de mecanismos de solidariedade e formação de novas identidades. 1. As Nações Africanas e as Irmandades Com a quebra das relações familiares provocada pelo tráfico, os africanos buscaram reconstruir em novas bases, inclusive nas irmandades, os laços fundamentais que os uniam. Desembarcados no Brasil os escravos iriam, além de trabalhar, construir relações de amizade, de família, laços religiosos, entre outros. Muitas vezes estas alianças tinham como referencial os critérios de nação presentes em seus nomes. Estas nações ou etnias, tais como Angola, Benguela, Mina, Courana, Nagô, entre outras, presentes nos nomes dos escravos traficados para o Brasil, aparecem nas observações dos viajantes, nos documentos administrativos e da igreja e, geralmente correspondem a um sistema que compreende territórios, povos, principais mercados onde os escravos eram comercializados, ou portos de embarque no território africano. Estas formas de identificação atribuídas pelo colonizador aos escravos traficados eram muitas vezes incorporadas pelos africanos e em torno delas eram criadas novas identidades no cativeiro. Nas confrarias negras, a reunião de escravos e libertos de mesmas nações foi uma das formas encontradas para se recriar afinidades, já que aqui no Novo Mundo, os parâmetros atribuidores de identidades não eram os mesmos que vigoravam quando estes estavam em suas terras natais. Através das irmandades e baseados em critérios de grupo de procedência ou laços de nação 9 seus membros estabeleciam alianças e regras de convivência, formas de solidariedade e resistência. E, em muitas irmandades a designação nação constituía princípio básico para a organização e ingresso de novos irmãos. Foram várias as irmandades erguidas sob a égide das distinções étnicas na colônia. Em seus compromissos estas associações abriam suas portas para certas etnias 9 O conceito de grupo de procedência foi proposto por Soares para a análise dos grupos étnicos africanos na diáspora: Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, especialmente capítulo 3. Quanto ao termo laços de nação, refere-se aos trabalhos de Maria Inês Côrtes de Oliveira, Viver e morrer no meio dos seus, Revista USP, 28 ( ), pp e, The Reconstruction of Ethnicity in Bahia: The Case of the Nago in the Nineteenth Century, In: Paul Lovejoy e David Trotman (Eds.), Trans-Atlantic Dimention of Ethnicity in the African Diaspora, Black Atlantic Series, Continuum Press, London, U.K., 2002, pp
5 e barravam outras. Em alguns casos, as irmandades permitiam a entrada de pessoas de qualquer origem, mas restringiam os cargos da mesa a uma origem específica. Em Salvador, por exemplo, na Irmandade do Rosário dos Pretos da Igreja da Conceição da Praia, permitia-se a entrada de pessoas de todas as origens até mesmo brancos e mulatos, mas somente os crioulos e os angolas poderiam ocupar os cargos da mesa. 10. No Rio de Janeiro as irmandades negras também estavam divididas por nações. Na Irmandade do Rosário se reuniam os angolas e os congos, na Irmandade da Lampadosa estavam os africanos do Gentio da Guiné, enquanto os minas se reuniam na irmandade de Santo Antônio da Mouraria e na de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Nos compromissos das irmandades da região mineradora se não observa a idéia de separação por etnias, mas o que nos chama atenção é que encontramos situações tensas na região entre os grupos étnicos de escravos. Como relata Boxer, o conde de Assumar notificou a Coroa, em 1719, de uma conspiração particularmente ampla, que pretendia massacre geral de todos os brancos, numa Sexta-feira Santa, quando estariam eles assistindo à missa e desprevenidos. A conspiração malogrou no último momento porque os minas (sudaneses ocidentais) e angolas (bantos) não chegaram a um acordo quanto a qual das duas raças iria fornecer o rei que pretendiam proclamar, depois do extermínio dos senhores. Esta rivalidade entre sudaneses e bantos constitui, igualmente, a razão principal do malogro de conspirações similares de escravos, em anos posteriores, das quais as de 1724 e 1756 foram potencialmente, as mais perigosas 11. A hipótese com a qual estamos trabalhando é de que, se os conflitos étnicos entre escravos existiam no interior daquela sociedade, não teriam desaparecido por completo nas irmandades. Apesar de conviverem numa mesma confraria os diferentes grupos étnicos estariam em processos contínuos de negociação de conflitos. Na tabela 1 podemos observar as várias nações africanas em Vila Rica no século XVIII. Considerando que as irmandades representavam lugares onde se exercia uma série de políticas de distribuição de poder e de participação na sociedade, políticas estas concebidas por diversos grupos étnicos, cada qual portador de uma lógica distinta de interpretação da realidade, estamos analisando a Irmandade do Rosário do Alto da Cruz, a partir dessa ótica, a de que os grupos étnicos são constituídos pela contradição, pela 10 João José Reis, Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão, Revista do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. vol.2. 3, (1997), pp Charles Boxer, A idade do ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, 2ª edição revista, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969,p.197 5
6 diferença entre o Eles e o Nós. Como destaca Fredrik Barth, a etnicidade, não pode ser concebida senão na fronteira do Nós, em contato ou confrontação, ou por contraste com Eles Vila Rica e a Irmandade Rosário dos Pretos do Alto da Cruz No primeiro quartel do setecentos o arraial de Vila Rica dividia-se em duas paróquias, a de Nossa Senhora do Pilar e a de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, cada qual dotada de vasta jurisdição, com inúmeras capelas na sede e na freguesia. (ver mapa) A irmandade que estudamos, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Alto Cruz, pertencia à paróquia de Antônio Dias que tinha como matriz a igreja de Nossa Senhora da Conceição. Dentro desta matriz, surgiram várias irmandades: Nossa Senhora da Conceição, Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora da Boa Morte, de São Miguel e Almas, São José dos Bem Casados, Nossa Senhora do Terço, São Sebastião, São Gonçalo Garcia, Nossa Senhora das Dores, Mercês e a Ordem Terceira de São Francisco. Algumas delas construíram capelas próprias, dentre elas, o Rosário, objeto de nossa análise 13. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário foi constituída legalmente em 1719, na matriz, mas logo se dirigiu para a Capela do Padre Faria. Inicialmente na Capela de Padre Faria, a irmandade congregava brancos e negros, mas em virtude de desentendimentos, os negros, em 1733 construíram a capela de Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz, depois intitulada Santa Efigênia. 15. O nosso trabalho com esta irmandade teve início com em estudo monográfico no qual analisamos os rituais de morte no século XVIII, em Vila Rica, especialmente entre escravos e forros. A pesquisa até o momento, chama a atenção para a predominância de irmãos e irmãs de etnia mina, escravos e forros, sepultados pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, em relação às outras etnias, tais como angola e benguela. 12 Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart, Teorias da Etnicidade seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Trad. Elcio Fernandes, São Paulo, Editora Unesp, 1997, p Adalgisa Arantes Campos, Roteiro Sagrado: monumentos religiosos de Ouro Preto, Editora Francisco Inácio Peixoto. Belo Horizonte, p Adalgisa Arantes Campos. Roteiro Sagrado. p
7 Considerando todos os enterramentos de escravos da paróquia (tabela 2), observamos que a maioria dos escravos e escravas era, de fato, sepultada no adro/cemitério das capelas, havendo uma predominância do adro/cemitério da Matriz. A capela do Rosário, na qual estava instalada a irmandade por nós analisada, foi a que mais enterrou escravos em seu interior. Naquele período, havia a preocupação de não ser enterrado nos cemitérios, uma vez que este tipo de sepultamento significava perder as indulgências da sepultura na capela e as rezas dos irmãos que, cotidianamente, lá realizavam seus exercícios religiosos. No caso dos escravos e libertos, outra possibilidade pode ser acrescentada, a de ficar entre "parentes" depois da morte. A pesquisa encontra-se em fase inicial e a partir dos dados encontrados ainda não podemos tirar conclusões sobre as etnias escravas naquela irmandade. O que pretendemos agora é mapear os grupos étnicos dos irmãos e irmãs, escravos e exescravos, presentes na Irmandade no intuito de perceber as formas de comunicação, conflito, negociação cultural e, as alianças intra e interétnicas que se estabeleceram naquela confraria. Partindo de fontes como as Deliberações da Mesa Administrativa e as correspondências, examinaremos as etnias dos irmãos que compunham a mesa, os critérios para a eleição dos mesmos, se existiam conflitos étnicos entre os irmãos juízes e juizas, reis e rainhas, bem como se a etinicidade tinha implicações nos processos eleitorais e nos processos pleiteados junto às autoridades civis e eclesiásticas. Através das atas de óbito de escravos analisaremos a procedência étnica do enterrado, as formas de enterramento, o local de sepultamento e os sacramentos recebidos, levando-se em conta a etnia do escravo ou escrava enterrado. Os testamentos de forros e forras, por conterem maior número de informações, nos possibilitarão observar a etnia do testador, dos testamenteiros, de seus cônjuges, a quem o testador deixa seus bens, quanto deixa de esmolas à irmandade e aos santos, e a forma com que pede que a dita associação proceda nos seus rituais fúnebres. Enfim, toda a relação que o testador estabelece com a confraria, com a religião e os laços intra e interétnicos que estabelece com seus confrades. 7
8 3. Anexos Tabela 1 Vila Rica/População Sudaneses Mina Courana Cobu Nagô Sabaru Fom São Tomé Cabo Verde Bantos Angola Benguela Congo Cambinda Cassange Monjolo Rebolo Moçambique Iraci del Nero Costa, Vila Rica: População ( ), São Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas,
9 Tabela 2 Distribuição dos sepultamentos de escravos, por ano e por local TOTAL Cem. Matriz Capela Matriz Da da nº nº nº nº nº nº nº nº nº nº % , ,1 Cap. de N S. do Rosário dos Pretos Cem. de N S. do Rosário dos Pretos Cem. De Santana Cem. De Padre Faria Cem. do Taquaral Cem. de São João do Ouro Fino Cem. Senhor dos Perdões , , , , , ,6 TOTAL Fonte: Livro de óbitos. Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias,
10 Mapa extraído de Boschi, Caio César. Os Leigos e o Poder, p
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