Os Desafios Atuais da Educação Médica José Batista C. Tomaz A Educação Médica tem sido um tema muito discutido internacionalmente nas últimas décadas. É consenso que a abordagem tradicional da formação médica precisa sofrer importantes mudanças e ajustes, de modo que passe a responder de maneira mais adequada às necessidades da sociedade. Vários métodos educacionais e de avaliação, bem como muitos estudos têm sido desenvolvidos e realizados na área nos últimos anos. Por um lado, o fato de a educação médica estar no topo da agenda em diferentes países é muito positivo, tanto para a própria educação, como para a melhoria da qualidade dos serviços de saúde. No entanto, há atualmente grandes desafios que precisam ser amplamente discutidos e potenciais respostas para enfrentá-los, baseadas nas últimas evidências científicas, necessitam ser propostas. O artigo aqui resenhado foi publicado em setembro último no British Journal of Medicine (BMJ) na seção de Análise e Comentários, às vésperas do Encontro Anual da Associação para a Educação Médica na Europa (Association for Medical Education in Europe - AMEE). Os autores, Lambert Schuwirth, professor assistente de Educação Médica e Cees van der Vleuten, professor de Educação Médica na Universidade de Maastricht, Holanda, apresentam quatro desafios importantes: i) Tornar o treinamento prático mais efetivo; ii) Desenvolver sistema de avaliação de alta qualidade; iii) Criar uma atitude positiva em relação à avaliação; iv) Aprimorar os padrões das pesquisas. Aconteceu no Brasil, por coincidência também em setembro, o 44º COBEM, Congresso Brasileiro de Educação Médica, cujo tema, poderia ser um quinto desafio a Interação entre Escola, Serviço e Sociedade 2. Neste encontro foram discutidas, por exemplo, estratégias de ensino da Atenção Primária à Saúde na graduação. Foram também debatidos alguns dos desafios apontados pelos autores do artigo aqui resenhado, como a pesquisa na Educação Médica e a avaliação como um processo construtivo. Vejamos a seguir, em mais detalhe, cada um dos desafios apresentados pelos autores:
Tornar o treinamento prático mais efetivo Segundo os autores, o treinamento prático na maioria das escolas médicas é feito de maneira não estruturada ou pouco estruturada, na forma de estágios, nos quais os alunos aprendem fazendo, muitas vezes sem o devido apoio de um preceptor qualificado para exercer a função educacional. Em algumas escolas que aderiram a métodos mais inovadores, habilidades médicas, como habilidades clínicas e de comunicação, são desenvolvidas por meio de treinamentos de habilidades (THs), utilizando-se a estrutura de um laboratório de habilidades que inclui pacientes simulados, manequins e outras ferramentas 1. Estudos mostram que tais métodos, apesar de interessantes e eficientes para certas habilidades e situações, não são suficientes para desenvolver todas as habilidades que o médico necessita para a sua prática profissional. Duas evidências provenientes de pesquisas na área da psicologia cognitiva relacionadas ao desenvolvimento de expertise médica podem nos ajudar a entender como tornar o treinamento prático mais eficiente: i) para tornar-se expert são necessárias muitas horas de prática; ii) a prática deliberada é bem mais efetiva para o desenvolvimento de expertise do que a realizada de maneira informal. Ou seja, não basta simplesmente praticar, tem-se que fazê-lo de maneira estruturada. Para enfrentar esse desafio, os autores defendem a idéia de se implementar estratégias que estimulem a prática deliberada, que pode ser definida, de maneira simples, como a combinação da aquisição da expertise com atividades que ajudam os aprendizes a tornarem-se mais conscientes do seu próprio processo de aprendizagem. Segundo os autores, os elementos-chave da prática deliberada são: - Supervisão e feedback detalhado; - Tarefas bem definidas para aprimorar certos aspectos da performance; e - Ampla oportunidade para melhorar a performance gradualmente por meio de prática intensiva. Desenvolver sistema de avaliação de alta qualidade Um outro desafio até maior, segundo os autores, é a avaliação. Vários métodos inovadores de ensino-aprendizagem têm sido propostos, mas a implantação de um sistema de avaliação de qualidade tem-se apresentada como um grande problema na
educação médica. Tradicionalmente os sistemas de avaliação utilizam instrumentos para medir conhecimento, habilidades ou atitudes. Por exemplo, o OSCE (Oral Structured Clinical Examination) foi proposto para avaliar habilidades médicas 3. Mais recentemente surgiram inovações no campo de desenho de currículos baseados em competências e as últimas evidências sugerem que os sistemas de avaliação utilizem múltiplos métodos para avaliar competências médicas. Assim, novos instrumentos de avaliação têm sido desenvolvidos, como o Mini-CEX (Mini-Clinical Examination) e a Avaliação 360 o. O Mini-CEX é um método proposto pela ABIM (American Board of Internal Medicine) no início da década de 90, com duração curta (15-20 min) para avaliar competência e performance clínicas durante uma consulta, incluindo habilidades de anamnese, exame físico, decisão clínica, aconselhamento, profissionalismo, organização e eficiência 4. A Avaliação 360 o é realizada por múltiplas pessoas dentro da área de influência do avaliado (colegas, superiores, subordinados, pacientes e seus familiares) por meio de questionários e escala de escores. Avalia performance individual em diferentes áreas: habilidades interpessoais e de comunicação, comportamento profissional e alguns aspectos do cuidado ao paciente 5. A vantagem desses instrumentos é que eles focalizam o comportamento do avaliado que pode ser observado e ajudam os professores e preceptores no acompanhamento da performance e a dar feedback. O mais importante disso tudo é a constatação que a avaliação da competência médica deve ser feita de modo global e requer a utilização de múltiplos instrumentos e não apenas um instrumento isolado. Diante desse desafio os autores argumentam que, inicialmente, temos que aprender como desenhar um programa de avaliação de qualidade, ou seja, que critérios devem ser utilizados e como combinar as informações qualitativas e quantitativas de diferentes fontes para realizarmos uma avaliação de competência médica de maneira global. Além disso, temos que rever os métodos estatísticos e psicométricos utilizados na avaliação. Atualmente, os indicadores de qualidade e imparcialidade dos instrumentos de avaliação se baseiam na confiabilidade e validade. Os autores acham que tal abordagem não se aplica aos novos métodos de avaliação. Segundo eles, há a necessidade de se encontrar outras maneiras para embasar nossas decisões relacionadas à avaliação.
Criar uma atitude positiva em relação à avaliação Historicamente avaliação é sinônimo de ansiedade, medo, punição e frustração. Praticamente todos os métodos de avaliação, incluindo os utilizados na educação médica, enfatizam a decisão de passar ou reprovar o aluno e não o desenvolvimento profissional e a melhoria do cuidado ao paciente. Como conseqüência, o impacto educacional é muito negativo, ou seja, os alunos tendem a desenvolver um estilo de estudar para passar no teste e não para tornarem-se bons médicos. Segundo os autores, o maior desafio para os educadores é criar estratégias para reverter esse quadro, é mudar a atual cultura do medo para outra na qual a avaliação seja realmente uma ferramenta de aprendizagem e de aprimoramento pessoal e profissional, e onde, como afirmam sabiamente os autores, o principal objetivo não seja ser melhor do que os outros, mas ser melhor hoje do que se foi ontem. Aprimorar os padrões das pesquisas Esse é um aspecto muito relevante do artigo. Os autores apresentam uma série de razões e evidências que nos leva a concordar que o rigor da pesquisa na área da educação médica precisa melhorar. Um primeiro aspecto é o fato de que boa parte da pesquisa na área da educação médica é realizada nos moldes da pesquisa biomédica, enquanto que, para os autores, ela tem mais pontos em comum com pesquisa nas áreas das ciências sociais. Métodos que funcionam muito bem no campo biomédico podem não se adaptar ao contexto da educação médica. Um outro aspecto é o conceito errôneo de que fazer pesquisa no campo da educação médica é fácil e pode ser feita por qualquer profissional, mesmo sem ser treinado para isso. Os autores recomendam enfaticamente que, para fazer pesquisa de qualidade em educação médica é necessário que se passe por um processo formal de treinamento, seja programas de mestrado e PhD na área ou outro tipo de curso. No entanto, os autores alertam para o fato de que especialistas em educação para as profissões de saúde bem treinados têm capacidade para realizar pesquisas de qualidade, mas às vezes é tão especializado e teórico que os resultados de suas pesquisas não são de interesse do médico ou professor que atuam na prática diária da educação médica. Para os autores uma pesquisa de qualidade depende de uma combinação de pesquisadores bem treinados com um bom conhecimento da prática médica e de ensino. Um outro aspecto
interessante enfatizado pelos autores é que, para eles, o que determina o rigor científico de uma pesquisa não é simplesmente o método escolhido, mas até que ponto o método escolhido é adequado para responder à questão proposta, além do valor das definições operacionais e do cuidado com o qual o estudo é realizado. Os autores também levantam a questão da pesquisa na área da educação médica ser muito localizada e raramente multicêntrica, levando a resultados pouco generalizáveis. Por isso eles propõem uma colaboração nacional e internacional entre diferentes centros de pesquisa. Finalmente, um último fator apresentado pelos autores que pode explicar a baixa qualidade de algumas pesquisas é que muitas revistas na área da educação médica têm aceitado artigos com qualidade duvidosa. Muitos artigos são meras descrições de algumas experiências, com pouco valor científico. A opinião dos autores é que as revistas devem ser mais rigorosas, estabelecendo padrões mais elevados, evitando ao mesmo tempo, no entanto, tornar-se periódicos exclusivos de um grupo seleto de pesquisadores. Os autores concluem enfatizando a importância do trabalho colaborativo entre médicos e especialistas em educação das profissões de saúde para se obter uma educação médica de qualidade e eficiente, de modo que responda às necessidades da sociedade. A relevância deste artigo está exatamente em levantar importantes questões bem atuais da educação médica e apontar ao mesmo tempo algumas possíveis respostas baseadas nas últimas evidências científicas. É um bom ponto de partida para se discutir esse tema, tanto em encontros de grande porte, como dentro de cada escola médica. Referências 1. Bradley P & Postlethwaite (2003). Setting up a clinical skills learning facility. Medical Education. 37:6-13. 2. 44º COBEM Congresso Brasileiro de Educação Médica (2006). Inter AÇÃO da Escola, Serviço e Sociedade. http://www.cobem.com.br/ acessado em 05/10/2006. 3. Smee S (2003). ABC of learning and teaching in medicine. Skill based assessment. BMJ, 326; 703-706.
4. Norcini, JJ; Blank LL; Duffy FD & Fortna, GS. (2003). The Mini-CEX: A Method for Assessing Clinical Skills. Ann Intern Med;138: 476-481. www.annals.org 5. ACGME & ABMS (2000). Toolbox of assessment methods. USA. Artigo original Schuwirth LWT & van der Vleuten CPM (2006). Challenges for educationalists. BMJ; 333:544-546.