CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA TEXTUAL PARA A ANÁLISE DE TEXTOS LANGUAGE TEXTUAL CONTRIBUTIONS TO THE ANALYSIS OF TEXTS

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Transcrição:

REVISTA ISEPRO www.revista.isepro.com.br Rev. ISEPRO, Água Branca (PI), V. 01, Nº. 1, Art. 4, p. 49-59, Jan/Jun. 2015 ISSN Eletrônico: 2319-0833 CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA TEXTUAL PARA A ANÁLISE DE TEXTOS LANGUAGE TEXTUAL CONTRIBUTIONS TO THE ANALYSIS OF TEXTS Franklin Oliveira Silva 1 1 Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Ceará E-mail: franklinolliveira@gmail.com Editor Científico: Levi de Sousa Lima Artigo recebido em 10/01/2015. Última versão recebida em 10/02/2015. Aprovado em 20/02/2015. Revisão: Gramatical, Normativa e de Formatação.

SILVA, F. O. RESUMO Neste trabalho, pretendemos analisar como a conscientização sobre os modos de constituição do referente e de sua focalização/desfocalização no curso da produção escrita podem aperfeiçoar a competência para produzir bons textos, à luz da Linguística Textual. Para isso, elaboramos uma visão panorâmica dos estudos que trataram dos processos de referenciação, analisando a seleção das formas nominais referenciais, levando em conta que essas formas desempenham um papel de maior relevância na progressão textual e na construção de sentido. Apoiamos nossa pesquisa no pressuposto de que a referenciação é uma atividade discursiva (cf. KOCH, 1999 a e b, 2002; MARCUSCHI & KOCH, 1998; KOCH & MARCUSCHI 1998; MARCUSCHI, 1998) posição que é defendida por Mondada & Dubois (1995). Para comprovar esta visão aqui adotada, analisamos diversos textos, de diversos gêneros, para identificar as estratégias de referenciação e dar sugestões de aplicabilidade deste estudo em sala de aula. PALAVRAS-CHAVE: Linguística Textual. Referenciação. Ensino ABSTRACT In this work, we intend to analyze the awareness of the constitution regarding modes and its focus / defocus in the writing production course can enhance the power to produce good texts in the light of Linguistics Textual. For this, we make an overview of the studies that dealt with the referral process, analyzing the selection of reference nominal forms, taking into account that these forms play a more important role in textual progression and the construction of meaning. We support our research on the assumption that the referral is a discursive activity (cf. KOCH, 1999 a and b, 2002; Marcuschi & KOCH, 1998; KOCH & Marcuschi 1998; Marcuschi, 1998) position that is defended by Mondada & Dubois (1995). To prove this view adopted here, we analyze various texts of various genres to identify the referral strategies and advise on the applicability of this study in the classroom. KEYWORDS: Linguistics Textual. Referencing. Teaching

51 CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA TEXTUAL PARA A ANÁLISE DE TEXTOS 1 INTRODUÇÃO Este artigo pretende abordar, ainda que de forma sucinta, a importância da Linguística Textual para a análise de textos em sala de aula, fundamentado nos estudos sobre Referenciação. Para tratar das questões que envolvem a coesão e a progressão referencial, adiantamos que nosso foco é a abordagem em sala de aula, uma vez que não podemos dar conta das questões que emergem sobre o assunto; pois, dependendo da ênfase de interpretação de cada autor, observamos que há, por vezes, destaque ora nos aspectos linguísticos, ora nos cognitivos, ou, ainda, nos contextuais. 2 LINGUÍSTICA TEXTUAL E REFERENCIAÇÃO: Por uma construção 2.1 Consciente do sentido A pesquisa sobre o texto e os processos de produção e compreensão textual e também sobre os processos de ensino aprendizagem da leitura e da escrita tiveram, nos últimos 50 anos um desenvolvimento sem igual. Os enfoques teóricos e metodológicos a partir dos quais se abordaram esses objetos são diferentes às vezes, complementares, às vezes, opostos. Entre outros estudos, esta pesquisa vem, recentemente, recebendo um reforço teórico especial da Linguística textual que oferece aos professores subsídios indispensáveis para a realização do trabalho com o texto, especialmente no que diz respeito ao estudo das condições discursivas que se destacam na construção da textualidade e o estudo dos recursos linguísticos utilizados na produção textual. As pesquisas sobre os processos referenciais presentes nos gêneros textuais servem como parâmetros que devem ser adaptados e utilizados em sala de aula por professores em todas as séries do ensino fundamental e do ensino médio. Na literatura atual sobre o tema, defende-se que a referenciação, bem como a progressão referencial, consiste na construção e reconstrução de objetos do discurso. Ou seja, os referentes não espelham diretamente o mundo real. Eles são construídos e reconstruídos no interior do próprio discurso, de acordo com a percepção de mundo, os óculos sociais (BLIKSTEIN, 1985), as crenças e propósitos comunicativos. Por esta razão, adotaremos aqui a noção de referenciação, em vez de referência.

52 SILVA, F. O. Referenciação é entendida, portanto, como uma atividade discursiva. Levando este conceito para a sala de aula, podemos dizer que o aluno, no ato de produzir um texto, trabalha com o material linguístico que tem à sua disposição e realiza escolhas intencionais para representar estados de coisas, de modo condizente com o seu propósito comunicativo (KOCH, 1999, 2002). A conscientização deste processo é fundamental para a formação de um aluno competente para a produção de textos e para a construção de sentidos. O aluno consciente de tais estratégias as opera mais facilmente e é capaz de compreender melhor outros textos com os quais ele entra em contato, nas diversas disciplinas estudadas por ele. É importante lembrar que a leitura também é um processo que exige estratégias para a construção de significados. Se o leitor/produtor de textos domina as estratégias de leitura (compreensão) e produção de textos, é sinal de que já desenvolveu a habilidade de reconhecer e aplicar todos os recursos linguísticos a partir de propósitos comunicativos inseridos na atividade discursiva em questão. Assim, os estudos dos recursos linguísticos utilizados na construção de sentidos devem ser levados em conta no momento do planejamento das atividades de leitura e produção de textos. Isso significa repensar as práticas de leitura e produção textual a partir do estudo das diversas estratégias de textualidade e organização textual. Aqui destacaremos apenas uma das possibilidades de se fazer esse trabalho, utilizando os processos de referenciação como exemplo do que pode ser realizado em sala de aula, à luz da Linguística Textual, para estimular a habilidade de ler e produzir textos. 2.2 Processos referenciais e produção de sentidos Adotaremos como base teórica para uma definição dos processos referenciais, o trabalho de Cavalcante (2012) que sugere uma divisão dos processos referenciais em dois grupos, como mostra o quadro a seguir: Figura1: Quadro dos processos referenciais

CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA TEXTUAL PARA A ANÁLISE DE TEXTOS 53 autora: Fonte: CAVALCANTE, 2012, P. 127 De acordo com Cavalcante (2012, p. 59): Poderíamos resumir esses dois grandes processos referenciais, fundamentados nesse critério de menção no contexto, dizendo assim: há duas funções gerais das expressões referenciais: 1) introduzir formalmente um novo referente no universo discursivo; 2) promover, por meio de expressões referenciais, a continuidade de referentes já estabelecidos no universo discursivo. (CAVALCANTE, 2012, p. 59) Essa diferença entre os dois grupos é explicada no exemplo (01) a seguir, dado pela (1) O sujeito chega para o padre e pergunta: - Padre, o senhor acha correto alguém lucrar com o erro dos outros? - É claro que não, meu filho! - Então me devolve a grana que eu te paguei para fazer o meu casamento. (piada, As melhores piadas de casseta e planeta, v.4). Cavalcante (2012) explica que o fato de analisarmos as expressões o sujeito e o padre como introduções referenciais leva em consideração o aparecimento de tais elementos no discurso formalmente, sem observar o que vem após cada uma delas, mas lembrando de que nada deve remeter a elas antes. Quanto às anáforas, estas são assim denominadas quando as expressões referenciais apontam para pistas do contexto, que podem estar sinalizadas para frente ou para trás, ou mesmo para ambas as direções. Ela demonstra essa classificação com a palavra garoto que aponta para Joãozinho no exemplo (2) a seguir: (2) A professora tenta ensinar matemática para o Joãozinho: - Se eu te der quatro chocolates hoje e mais três amanhã, você vai ficar com... com... com...? E o garoto: - Contente! (piada, Coleção 50 Piadas Matemática, de Donaldo Buchweitz). Observe que o referente de o Joãozinho, uma introdução referencial, é retomado pela expressão anafórica o garoto. Cavalcante (2012) classifica neste caso uma ocorrência de correferencialidade, porque o mesmo objeto de discurso previamente introduzido foi completamente recuperado pelo anafórico o garoto. A autora propõe assim, duas funções principais para estes dois grupos de processos referenciais: Introduzir formalmente um novo

54 SILVA, F. O. referente no universo discursivo, e promover, por meio de expressões referenciais, a continuidade de referentes já estabelecidos no universo discursivo. Vejamos, no exemplo a seguir, o que Cavalcante classifica como anáforas: (3) O Prefeito foi visitar o hospício da cidade. Chegando na biblioteca, percebe que tem um louco, de cabeça para baixo, pendurado no teto. Preocupado, comenta com o diretor do hospício: - O que é que esse louco está fazendo aí no teto? - Ele pensa que é um lustre. - Mas é muito perigoso, ele pode cair e se machucar. - Por que vocês não o tiram do teto? - Mas e, à noite, como é que a gente vai fazer para ler no escuro? (piada, Coleção 50 piadas loucos, de Donaldo Buchweitz). Neste exemplo, a expressão hospício inaugura um referente no discurso que é retomado indiretamente pelas expressões biblioteca, diretor e louco. Estes termos são classificados, pois, como anáforas indiretas. Já a expressão louco é retomada diretamente por ele, e é classificada como anáfora direta. Há ainda um outro exemplo de anáfora indireta, a qual a autora classifica como anáfora encapsuladora. Sobre este tipo de anáfora, Cavalcante (2011) afirma que: Toda anáfora encapsuladora é uma espécie de anáfora indireta, por também introduzir e mencionar no contexto uma expressão referencial nova, apresentada como se fosse dada, por resumir conteúdos explicitados (mas também implicitados) em porções contextuais anteriores e/ou posteriores. Vejamos um exemplo: (4) APRENDENDO A DIZER NÃO Além das dificuldades que aparecem ao tentarmos conciliar a sobrecarga dos afazeres de tudo aquilo que nos pedem e a que não tivemos coragem de dizer não, corremos o risco também de nos frustrarmos ou deprimirmos diante da sensação de estarem se aproveitando de nós. Outras vezes não conseguimos dizer não por temermos que, se recusarmos um pedido de alguém, essa pessoa vai deixar de gostar da gente, ou por temermos que o outro tenha alguma atitude agressiva. Na realidade esses temores de que pensem algo pejorativo a nosso respeito,

55 CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA TEXTUAL PARA A ANÁLISE DE TEXTOS só por recusamos alguma coisa, é um sentimento que nasce primeiro dentro de nós mesmos e, em seguida, acabamos projetando nos outros como se deles se originasse. (crônica de autoajuda, de Geraldo J. Ballone -, divulgada na internet). Acreditamos que a conscientização sobre tais recursos linguísticos facilita a compreensão dos sentidos do texto e aprimora sua competência não só como leitores profícuos, mas também produtores competentes. Desta forma, passaremos a seguir a algumas sugestões do que pode ser feito em sala de aula para praticar o que analisamos até agora. 3 SUGESTÕES PARA O TRABALHO EM SALA DE AULA Antes de propor atividades de ensino voltadas para a compreensão e emprego de expressões referenciais diversas, é preciso ressaltar que são apenas sugestões, não se trata de um modelo que deve ser levado à risca para a sala de aula. O professor é quem deve balizar o que pode e deve ser feito, segundo as necessidades de cada turma. E para início de análise, é preciso alertar para o fato de que explorar os recursos referenciais de um texto não é meramente solicitar do aluno que ele ligue uma expressão referencial a outra dentro do contexto. Nem sempre a reconstrução do referente é tão perceptível, dentre outros fatores pelo fato de as expressões referenciais remeterem a informações encontráveis em diferentes espaços. Por isso é importante mostrar aos alunos as diversas possibilidades de remissão. Pode-se, por exemplo, pedir que explicitem para onde apontam as expressões referenciais sublinhadas no texto: se a outra expressão referencial que serve de âncora no contexto, se apenas ao conhecimento de mundo, se à situação (extralinguística) da comunicação real, ou se a mais de um desses lugares. Vejamos o exemplo a seguir: (5) PERUA DE LUXO No próximo dia 11, a Daslu vai sortear entre suas clientes um veículo utilitário usado na produção de um ensaio de moda feito na África. Detalhe: o carro foi personalizado com estampa de oncinha. Fonte: JORNAL MEIO NORTE, 31/09/2009

56 SILVA, F. O. No exemplo (5), o enunciador apresenta o referente carro por meio de uma introdução referencial recategorizada, perua de luxo, que pode, numa primeira leitura, sugerir uma ambiguidade. Este rebatizamento ambíguo do referente é explicado com as informações seguintes, as quais confirmam que a perua de luxo não se trata de uma cliente da Daslu e sim de um prêmio oferecido pela empresa. É importante observar junto ao aluno que nem sempre a ambiguidade atrapalha a captação dos sentidos de um discurso. Em certos gêneros textuais, a ambiguidade referencial representa um excelente recurso de produção do humor, como é o caso do exemplo (5). O problema é que nem sempre os destinatários são capazes de reconhecer a remissão a dois referentes ao mesmo tempo e, em vista disso, não compreendem o que há de risível no texto. Por um problema de má reconstrução da referência, portanto, o receptor pode não alcançar os sentidos que o enunciador pretendia dar. Neste exemplo, uma boa sugestão de atividade é listar, com a turma, algumas possibilidades de substituição dos termos destacados, lembrando que os alunos não devem preocupar-se em tirar todas as repetições, pois, em algumas situações, elas podem ser adequadas, para evitar ambiguidades que prejudiquem a compreensão. Há ainda os casos em que os referentes de algumas expressões referenciais só podem ser recuperados se o leitor detiver conhecimentos básicos sobre o assunto, para ser capaz de realizar inferências. Uma das grandes dificuldades para compreender textos é não conseguir identificar a que se referem as expressões referenciais; outra é não conseguir apreender os objetivos do enunciador ao empregar tais expressões e não outras, não entendendo, assim, que opiniões estão sendo defendidas. Vejamos outro exemplo: Exemplo (6) Fonte: JORNAL MEIO NORTE, 31/09/2009

57 CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA TEXTUAL PARA A ANÁLISE DE TEXTOS No exemplo (6), a charge só será compreendida se o leitor ativar seus conhecimentos de mundo, conhecimentos partilhados e enciclopédicos, em que ele fará a inferência de que Lázaro retoma CPMF por que ambos possuem um elemento comum: ambos foram ressuscitados. Para chegar a este sentido, o aluno, orientado pelo professor, deve recuperar os conhecimentos religiosos sobre a ressurreição de Lázaro, em um episódio bíblico, e a tentativa do Governo de ressuscitar o imposto. No caso da charge (6) é possível também destacar o papel fundamental dos elementos não verbais que colaboram para a construção dos sentidos. A caricatura do presidente Lula, vestido de Jesus Cristo e presente em um espaço que lembra um cenário bíblico bastante conhecido contribui para o entendimento dos referentes em questão. O aluno consciente de tais estratégias as opera mais facilmente e é capaz de realizar compreender melhor outros textos com os quais ele entra em contato, nas diversas disciplinas estudadas por ele. É importante lembrar que a leitura também é um processo que exige estratégias para a construção de significados. O professor em sala de aula deve destacar a relevância dos processos de referenciação para a produção/compreensão de textos. Os referentes jogam em diversas posições, dentre as quais destacamos: o papel na organização da informação; a atuação na manutenção da continuidade e progressão do tópico discursivo; a participação na orientação argumentativa do texto assuntos que podem e devem ser estudados nas aulas de leitura e produção de textos. Vale destacar que a orientação argumentativa é um bom exemplo do que pode ser exercitado para a elaboração de bons textos de opinião. O aluno que reconhecer tal estratégia, possivelmente irá utilizá-la com maior facilidade em seus próprios textos. Vejamos um exemplo que pode ser trabalhado em sala de aula: (7) CAPA DA REVISTA VEJA: 10/06/1998 Fonte: Revista Veja, 10 de junho de 1998 - número 1550

58 SILVA, F. O. Na capa da revista Veja, exemplo (7), podemos observar que os processos de construção dos referentes implicam que, no fundo, o papel da linguagem não é o de expressar fielmente uma realidade pronta e acabada, mas, sim, o de construir, por meio da linguagem, uma versão, uma elaboração dos eventos ocorridos, sabidos, experimentados. É muito importante que isso fique claro, pois esse é o principal pressuposto da referenciação: os eventos ocorridos, as experiências vividas no mundo não são estáveis, não são estáticos. Eles sempre são reelaborados a fim de que façam sentido. A expressão referencial Eleição é apresentada como jogo no exemplo (7) e essa reconstrução da realidade é reforçada pela imagem do presidente Lula jogando bola em um gramado, o que configura uma cena de jogo de futebol. Mas a orientação argumentativa, neste caso, é indicada não só pela escolha intencional das expressões referenciais, mas também pela formulação da pergunta, como a instauração de uma dúvida sobre o fato apresentado. Falar na reelaboração da realidade pela linguagem não significa dizer que o papel da linguagem é ludibriar, é maquiar a realidade, é disfarçar a verdade. Significa apenas que é uma função inerente à linguagem a (re)elaboração das práticas sociais, e, se isso é usado para fins mais ou menos lícitos, é algo que, pelo menos em princípio, escapa numa primeira leitura. É esse papel da linguagem que o professor deve levar o aluno a procurar nos textos. Exercitando as estratégias, o aluno ficará mais atento para uma melhor escritura em seus próprios textos. Pode-se observar no texto (7) que a junção do texto verbal e da imagem provoca uma recategorização de jogo. A expressão não significa mais uma prática desportiva bastante comum entre os brasileiros. Aqui, o jogo é, metaforicamente, o momento da disputa política pela presidência do Brasil sendo que a expressão retomada pela expressão eleição, utilizada dentro de uma pergunta, enfatiza a crítica que a revista quis transmitir. O jogo não será fácil para o jogador Lula. Somos capazes de fazer essa associação porque trabalhamos cognitivamente a partir das pistas contextuais, ou seja, usamos nossa capacidade intelectiva para estabelecer as relações textuais explícitas e implícitas. Se o leitor/produtor de textos domina as estratégias de leitura (compreensão) e produção de textos, é sinal de que já desenvolveu a habilidade de reconhecer e aplicar todos os recursos linguísticos a partir de propósitos comunicativos inseridos na atividade discursiva em questão.

CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA TEXTUAL PARA A ANÁLISE DE TEXTOS 59 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente trabalho, tivemos o objetivo de apresentar uma visão geral dos estudos que trataram dos processos de referenciação, demonstrando a seleção das formas nominais referenciais, levando em conta que essas formas desempenham um papel de maior relevância na progressão textual e na construção de sentido. Acreditamos que as atividades de leitura e produção de texto que levam o aluno a refletir sobre as escolhas dos processos referenciais podem contribuir para ampliar sua competência em ler e produzir bons textos. REFERÊNCIAS BLIKSTEIN, I. Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix, 1985. CAVALCANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (Orgs.) Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003, p. 17-52. CAVALCANTE, M. M. Referenciação sobre coisas ditas e não-ditas. Fortaleza, 2011. CAVALCANTE, M. M. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012. KOCH, Ingedore V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1999 CAVALCANTE, M.M. A coerência textual. 14ª ed. São Paulo: Contexto, 2002. JORNAL MEIO NORTE, caderno opinião, pág. 2, 31/09/2009. KOCH, I. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002 a. KOCH, I. V; e MARCUSCHI, L.A. Processos de referenciação na produção discursiva. Revista DELTA, 14, n especial, 1988. KOCH, I. V; e DUBOIS, D. Construction des objets de discours et catégorisation: une approche des processus de référenciation. In: TRANEL (Travaux Neuchâtelois de Linquistique), n.23, 1995, p.273-302. Revista Veja, nº 1550. Ano 1998. Editora Abril.