... e a Colagem Surrealista.

Transcrição

1 ... e a Colagem Surrealista. Hugo Leonardo Goes Bento 1 A montagem da pulsão é uma montagem que, de saída, se apresenta como não tendo nem pé nem cabeça - no sentido em que se fala de montagem numa colagem surrealista. (LACAN, J (1964), p.161) Em dias caracterizados pela tentativa onipotente de delimitar as sexualidades por meio de classificações e nomeações específicas que visam naturalizá-las bi, pan, hetero, poli, etc., a escrita freudiana, que destaca a sofisticação pela qual os impulsos de preservação alcançam um caráter artificial, torna-se, além de sempre atual, subversiva e necessária. Por tratar-se de manifestações que ultrapassam o biologicamente determinado e não se constituírem como séries inalteradas de produtos todos idênticos, as sexualidades podem ser compreendidas, a partir da Psicanálise, como singulares criações de sujeitos que possuem distintas trajetórias, histórias e estórias. Impossível tratar com toda a ambigüidade que o verbo proporciona: abordar e cuidar das sexualidades desconsiderando o Trieb de Freud, neste breve escrito, objetivase resgatar princípios elementares da teoria pulsional a fim de que uma contribuição à reflexão sobre as proximidades entre o período vitoriano e a contemporaneidade, no que diz respeito ao sexual, possa ser registrada, a partir da noção de collage, ou colagem surrealista, sobretudo, com o trabalho de Max Ernst. A pulsão. No resumo de um colóquio realizado em Roma, em janeiro de 1964, acerca do desenvolvimento da Ciência e suas conseqüências para a Psicanálise e a ética do psicanalista, Jacques Lacan escreve que a pulsão freudiana nada tem a ver com o instinto (nenhuma das expressões de Freud permite essa confusão) (LACAN, J. 1998, p.865). Confusão que, se não esclarecida, resulta em uma leitura biologizante da obra de Freud e desemborca em um trabalho clínico distante do que é proposto pela Psicanálise. 1 hugo_lgb@hotmail.com. Tel.: (31) / Hugo Leonardo, psicólogo formado pela Fundação Mineira de Educação e Cultura, pesquisador da área do campo da epistemologia da Psicanálise com projeto de investigação fomentado pelo programa de iniciação científica da mesma instituição de ensino, psicanalista de orientação lacaniana que exerce atividade clínica em Ribeirão das Neves - MG.

2 A tradução do termo Trieb, certamente, é um dos pontos mais polêmicos no meio psicanalítico, uma vez que, as peculiaridades e significações a ele concedidas pela língua alemã não estão presentes em outros idiomas e possibilidades de tradução (HANNS, L. A. 1996, p.338). De acordo com o próprio Freud, trata-se de uma palavra por cuja causa somos invejados por muitas línguas modernas (FREUD, S (1926), p.195). Brevemente, Françoise Samson, registra que Trieb é energía, movimiento y empuje e que, apesar de aparecer na escrita freudiana como um verdadeiro conceito a partir dos Três Ensaios, de 1905, los primeros estremecimientos de la pulsión se encuentran em el Proyecto, de 1895, através de la expresión excitación endógena (SAMSON, F. 2008, p.17-18). No tradicional Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis, encontramos a afirmativa de que certos autores reservam o termo instinto para designar, em zoologia, por exemplo, um comportamento hereditariamente fixado e que aparece sob uma forma quase idêntica em todos os indivíduos de uma espécie (LAPLANCHE e PONTALIS. 2004, p. 394). Assim, enquanto a pulsão está relacionada não apenas ao universal, mas principalmente, ao singular, ao sujeito, a noção de instinto consiste em algo que é característico entre os indivíduos de uma mesma espécie e que não varia em sua manifestação. O instinto está para a determinação natural enquanto a pulsão, para a montagem e a sofisticação. O humano, caracterizado pelas diversas possibilidades do pulsional, aproxima-se do desejo e, ao contrário do que se possa imaginar, não negligencia o necessário, mas nele se apóia e o modifica. Em seu Seminário, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, a partir da proposta de retorno a Freud, Lacan, declaradamente, apresenta a pulsão como conceito fundamental, junto de Inconsciente, Transferência e Repetição. Entretanto, como bem declara, é essencial, primeiro, lembrar que Freud mesmo nos diz, no começo de A Pulsão e suas Vicissitudes, que a pulsão é um Grundbegriff 2, um conceito fundamental (LACAN, J. 1988, p.155), ou seja, apesar de retomá-la como conceito fundamental, a pulsão recebeu este lugar de importância já na própria escrita freudiana. E, conforme a escrita freudiana, o conceito-limite entre o psíquico e o somático, a pulsão, é dotada de quatro termos, a saber: pressão, meta, objeto e fonte. Quanto à fonte da pulsão, esta, sempre, é somática, corpórea e diz respeito ao processo que ocorre em um órgão ou em uma parte do corpo. Sobre a pressão pulsional, Freud registra que esta é a soma da força ou a medida de exigência de trabalho que ela representa, ou seja, seu 2 Grundbegriff = Grund (base, fundamento, solo, causa, razão) + Begriff (conceito, termo).

3 fator motor. Acerca da meta, é sempre a satisfação e, de maneira precisa, no texto freudiano, não é possível negar que são diversos os caminhos que podem conduzir a essa meta. Finalmente, quanto ao objeto, trata-se do elemento mais variável na pulsão, daquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta (FREUD, S (1915), p ). Importante ressaltar que, uma vez que o objeto primordial, por estrutura, é perdido e a marca de sua ausência gravada no psiquismo, a satisfação da pulsão impossível de ser completa só se dá no contorno, ao redor de a (LACAN, J. 1988, p. 160). A pulsão, de caráter irreprimível mesmo através das repressões, possui seus quatro termos analisados de mais perto, no Seminário de Lacan, e, por meio deste olhar com mais atenção, a associação com a montagem surrealista surge e se esclarece (LACAN, J. 1988, p ). A Colagem Surrealista e a Pulsão. Incorporada a diversas expressões artísticas, a colagem, enquanto técnica que utiliza a sobreposição, a dispersão de imagens e a junção de figuras distintas, foi desenvolvida desde os tempos antigos, porém, evidenciada a partir do século XX através de movimentos como o Cubismo, o Dadaísmo e, principalmente, o Surrealismo (FONSECA, A. 2004, p.54). Entretanto, é a partir das propostas surrealistas que, de uma técnica específica, a colagem ganha a dimensão de conceito e, através da reflexão de Max Ernest, passa a ser caracterizada não pelos materiais envolvidos em seu processo, mas à sua linguagem poética. Afinal, se são as plumas que fazem a plumagem, não é a cola que faz a colagem (ALEXANDRIAN, S. 1973, p. 66). Nascido no dia 02 de abril de 1891 na Alemanha, Max Ernst é um dos mais significativos nomes das artes plásticas no estilo dadaísta e surrealista que a história da Arte foi capaz de registrar. Conhecido por ter reinventado as técnicas de raspagem, fricção, decalcagem e colagem, mudou-se para Paris em 1922, onde se consagrou como um dos membros fundadores do Movimento Surrealista. Entre seus diversos trabalhos, destaca-se, Uma Semana de Bondade, um romance-colagem melancólico e surreal, apresentado em 1934 como um encadeamento de panfletos, com figuras e pedaços de ilustrações de livros retirados da literatura vitoriana. Sua concepção de mundo como lugar do absurdo tornouse presente em sua obra por meio de um alter ego um homem-pássaro. Após a Segunda Guerra Mundial, dos Estados Unidos retornou à Paris em 1949 e abandonou as montagens surrealistas que qualificavam suas criações. Dedicou-se à escultura e à pintura, foi premiado

4 (FARTHING, S. 2009, p ; MASP. 2010). Uma Semana de Bondade / Domingo Max Ernst, em 1954 na Bienal de Veneza e, no dia 01 de abril de 1976 faleceu (FARTHING, S. 2009, p ; BRITANNICA DO BRASIL. 1997, p.450). Quanto às colagens de Uma Semana de Bondade, foram criadas no clímax do Movimento Surrealista, em 1933, enquanto viajava pela Itália, durante três semanas. Divididas pelos dias da semana, tais colagens foram recheadas de violência, orgias e morte. Homens com cabeça de leão, mulheres segurando varas e com conchas sobre as faces, guerreiros com bicos de pássaros e outras montagens conferem ao trabalho do surrealista uma originalidade inquietante Curioso destacar que, no processo de colagem, dois elementos são fundamentais: primeiro, a fragmentação e, depois, a junção desses fragmentos (FONSECA, A. 2004, p.60). Assim, enquanto outros trabalhos e elaborações dedicam-se a pensar nos distanciamentos entre a era vitoriana e a contemporaneidade, no que diz respeito à vivência das sexualidades, proponho, a partir das colagens de Max Ernst e o conceito de pulsão, a pontuação de algumas aproximações: - Em um contexto histórico-cultural que reprime as manifestações explicitamente sexuais ou em uma época que escancara a carne, as sexualidades, sempre, respondem a construções singulares, pois dizem respeito ao que é da ordem do pulsional e não ao determinismo biológico característico do instinto; - Seja através dos sintomas histéricos conversivos ou pelas manifestações políticas que visam o reconhecimento de direitos sócio-afetivos, à insubmissão da sexualidade à função reprodutora e o caráter parcial da pulsão, que se apóia em órgãos relacionados à alimentação, excreção ou visão, por exemplo, são evidenciados; - Pelos caminhos pulsionais que as sexualidades percorrem, o encontro com a impossibilidade da satisfação plena é inevitável, uma vez que o objeto primeiro de satisfação é perdido e um quantum de aprazimento se dá em torno do registro de sua ausência; - Os quatro termos da pulsão, à semelhança de uma colagem de Max Ernst, configuram-se de um modo específico na história de um determinado sujeito, e, o psicanalista, ciente de que a realização de uma análise é sempre um caso singular, é este

5 que se atenta para a peculiaridade daquele que o procura (LACAN, J ( ), p.31). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXANDRIAN, Sarane. O Surrealismo. Lisboa: Editorial Verbo, BRITANNICA DO BRASIL. Nova Enciclopédia Barsa. Rio de Janeiro / São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, V. 05. ERNST, Max. Uma Semana de Bondade Domingo gravura, preto e branco. Disponível em: Acesso em 17 de junho de FARTHING, Stephen (Org). 501 Grandes Artistas. Rio de Janeiro: Sextante, FONSECA, A.. Collage: A Colagem Surrealista. In: Revista Educação - UnG, América do Norte, 4, nov Disponível em: Acesso em: 16 Jun FREUD, Sigmund. Pulsões e Destinos da Pulsão. (1915) In: FREUD, Sigmund. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente / Coordenação geral da tradução: Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Editora Imago, p FREUD, Sigmund. A Questão da Análise Leiga. (1926) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Volume XX. Rio de Janeiro: Editora Imago, p HANNS, Luiz Alberto. Dicionário Comentado do Alemão de Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, HANNS, Luiz Alberto. A Teoria Pulsional na Clínica de Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, LACAN, Jacques. O Seminário Livro I: Os Escritos Técnicos de Freud. (1953/1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, LACAN, Jacques. O Seminário Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. (1964) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, LACAN, Jacques. Do Trieb de Freud e do desejo do Psicanalista. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p LAPLANCHE. PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, MASP. Max Ernst Uma Semana de Bondade. In: Exposição das Colagens de Ernst. 2010, São Paulo. Disponível em: Acesso em 17 de junho de SAMSON, Françoise. Pulsión y Ficción. Buenos Aires: Mármol / Izquierdo, 2008.