Os direitos de autor desta edição revertem a favor da Associação Dar a Mão

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1 Os direitos de autor desta edição revertem a favor da Associação Dar a Mão A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa info@marcador.pt facebook.com/marcadoreditora 2016 Direitos reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo Barcarena Título: Das Margens Nascem Flores O futuro está dentro de nós Autora: Beatriz Matoso Revisão: Isabel Garcia Paginação: Maria João Gomes Capa: Ideias com Peso / Marcador Editora Impressão e acabamento: Multitipo Artes Gráficas, Lda. ISBN: Depósito legal: /16 1.ª edição: junho de 2016

2 ÍNDICE Prefácio... 9 Introdução Porque têm os nossos encontros o nome de Conversas em Roda? O futuro está dentro de nós Não tenho palavras A escolha de um livro é um ato de liberdade Quando os ponteiros do relógio rastejam Os jogos Nota final Agradecimentos

3 PREFÁCIO É na música e na dança que eu fico em Paz com o mundo e comigo próprio. Nelson Mandela Assim, foi através da música e da dança que Mandela ficou em paz com o mundo e consigo próprio. Ele, que esteve preso 27 anos numa ilha, com escassos contactos com a mulher e outros familiares, conservou sempre a capacidade de amar os outros, mesmo aqueles que o prenderam. O mundo prisional é um mundo fechado e esta obra tem o mérito de mostrar que as prisioneiras são mulheres que podem sofrer transformações e reencontrarem o seu verdadeiro self, habitualmente escondido sob a capa dos atos marginais, se houver uma intervenção relacional. A propósito deste mundo fechado lembro um dos reformadores da Psiquiatria, após a década de 70 do século xx: foi o filósofo francês Michel Foucault, falecido em 1984, e que deu uma grande contribuição para a formação da ideologia da antipsiquiatria. Ensinou Filosofia e Psicologia e fez conferências nas Universidades da Alemanha, Suécia, Tunísia, Brasil, 9

4 BEATRIZ MATOSO Estados Unidos e outras. Também trabalhou durante muito tempo como Psicólogo em hospitais psiquiátricos e prisões. Analisou os processos disciplinares aplicados nas prisões e, a partir de então, concluiu que as formas de pensamento são também relações de poder e que a prisão era uma forma de controle e de dominação da burguesia. Daí que tenha criticado a psiquiatria e a psicanálise tradicionais, considerando-as como instrumento de controle e dominação ideológica. Também acompanhámos as autoras a respirar aqueles aromas da natureza, trazidos pelo vento Norte, pisando as folhas caídas no chão, como coisas mortas. E, paradoxalmente, vivemos a mesma tranquilidade, acompanhando as autoras, ao entrar naquele mundo fechado, no centro do qual há gritos de desespero e de falta de esperança. Foi ao aceitar prefaciar esta obra que pensei partilhar algumas notas pessoais e referir experiências sucessivas que fui tendo ao longo dos anos. Em primeiro lugar, no Sul de Angola, no litoral, há mais de sessenta anos, vivi cerca de seis numa povoação para onde iam condenados de toda a colónia. Habitualmente eram pessoas, homens e mulheres, que tinham cometido crimes violentos: assassinatos, infanticídios e filicídios, roubos avultados É de sublinhar que esses homens e mulheres, se tivessem determinadas competências, podiam aplicá-las em diversas tarefas, nomeadamente na cozinha, jardinagem, costura e outras. Havia também os chamados presos políticos por terem participado em movimentos de revolta contra o colonialismo (por exemplo, no Congo Belga), mas o tratamento era idêntico aos prisioneiros de delito comum. Curiosamente, qualquer dos condenados dos dois grupos, não eram marginalizados pela população, sendo aproveitados 10

5 DAS MARGENS NASCEM FLORES para a pesca e para as fábricas de conservas de peixe e derivados. Além disso, andavam em completa liberdade. Poder-se-á dizer que as grades eram naturais: de um lado, o Oceano Atlântico, havendo o risco de ficarem presos nas tempestades; do outro lado, o deserto, cujos riscos não eram menores: morrerem à sede ou serem atacados pelas feras (onças, leões, elefantes). Outra situação diferente desta tem a ver com a negligência, exploração comercial, maus-tratos e abusos sexuais de crianças e jovens. Em Portugal, seria essencial realizarem-se investigações e estudos sobre as causas e efeitos destas situações, para se entenderem as lacunas e se poderem planear as intervenções necessárias, afim de que se pudesse proceder à avaliação da eficácia dos serviços. Seria também necessário estabelecer medidas preventivas. Em relação às crianças, os maus-tratos, sobretudo os abusos sexuais, não são por elas relatados. Os especialistas, só através dos adultos, foram tomando conhecimentos desses factos ocorridos no passado. Habitualmente eram pessoas que apresentavam quadros de inibição, dificuldades de relacionamento com parceiros(as), crises de angústia sem motivo aparente, com o sentimento de terem perdido muito cedo o seu estatuto de crianças, tornando-se uma espécie de «adulto normal». Traços dominantes dessas pessoas: autoestima arruinada, pobreza aparente de vida interior, sentimentos de vergonha e de culpabilidade, por se considerarem responsáveis. A situação tornava-se muito mais grave quando as pessoas do meio envolvente, nomeadamente os familiares, não acreditavam nas suas declarações quando, ainda crianças, tentavam relatar o sucedido. Os serviços de saúde mental de pedopsiquiatria só muito lentamente começaram a tomar consciência da dimensão do 11

6 BEATRIZ MATOSO problema e, de igual modo, as próprias famílias passaram a ousar falar dele. Numa determinada equipa de Psiquiatria e Saúde Mental Infanto-Juvenil, em Lisboa, nas décadas de 70/80 do século xx, apenas foram assinalados 30 casos. Contudo, anos mais tarde, só no primeiro trimestre da década de 90 o mesmo número (30) apareceu nessa equipa. Em 2003, durante o chamado Julgamento da Casa Pia, foi referido que a psicóloga E. Loftus citou Huff que calculou que, nos Estados Unidos, foram condenadas erradamente 7500 pessoas, durante o ano de Foi amplamente discutido o problema das falsas memórias que, segundo alguns seriam induzidas pelos terapeutas, em pessoas muito sugestionáveis. Finalmente, concluiu-se que Loftus teria agido de má fé e, segundo Mitchell Eisen, os erros nas respostas às questões relacionadas com os abusos sexuais são da ordem de 4%, tendo em vista que se tratava de crianças dos 3 aos 16 anos. Este valor diminuía à medida que a idade avançava. Pode considerar-se esta obra como um alerta para as entidades competentes e para o cidadão comum, na necessidade de se estabelecerem medidas eficazes de prevenção. Não posso esquecer a intervenção de uma psicóloga, sobrinha-neta do escritor inglês Oscar Wilde, que lia os contos do seu tio avô a um grupo de presos e que eram depois profundamente discutidos. Os resultados foram muito positivos, na medida em que adquiriram progressivamente a capacidade de pensar, em lugar de passarem imediatamente a agir os seus impulsos. Não nos podemos esquecer que a infância é a idade de ouro para se estabelecerem medidas preventivas. Mas como a criança não vive só, está integrada numa família, é sobre esta que é necessário atuar. Caso não sejam aplicadas em tempo 12

7 DAS MARGENS NASCEM FLORES oportuno, o Estado irá gastar posteriormente somas incalculáveis. Seria também necessária uma intervenção verdadeiramente eficaz nas prisões e não esquecer que é fundamental descobrir o que de bom existe em todo o ser humano para que possa reconciliar-se consigo próprio e com o mundo, reencontrando a criança que foi, no fundo de si próprio Maria José Vidigal Pedopsiquiatra Membro Didata da Associação Internacional de Psicanálise Presidente da Comissão Científica da Associação de Psicanálise Relacional 13

8 INTRODUÇÃO Este livro é o resultado de uma experiência de voluntariado, realizada no Estabelecimento Prisional de Tires (E. P.) no âmbito da Associação Dar a Mão. A Associação Dar a Mão é uma IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social) que existe desde 1999, com a finalidade de dar apoio aos reclusos do E. P. de Tires e preparar a sua reinserção social. Esta associação tem por objetivo promover o desenvolvimento da autoestima e o crescimento pessoal, afetivo e laboral de cada recluso, e incentivar o trabalho e a formação profissional. Para atingir este fim tem em curso vários projetos, tais como: Conversas em Roda, workshop de bijuteria, workshop de costura e malha, aulas de Tai-chi, projeto de desenvolvimento de autoestima e projeto de dinamização de biblioteca. É também preocupação desta associação ajudar os reclusos na aquisição de óculos, 15

9 BEATRIZ MATOSO próteses dentárias, produtos de higiene e roupa, sempre que para isso for solicitada. O conteúdo desta obra expressa o pensamento da autora, o da Enfermeira Pilar Marques e o de outras mulheres que gostam de escrever, mas que se encontram em reclusão. Para realçar esta particularidade, são utilizados três tipos de letras que sublinham a coautoria do texto. As Conversas em Roda tiveram início, há nove anos, no pavilhão das condenadas, ao ritmo de uma sessão mensal, durante uma hora e meia. É um grupo aberto. Na roda cabe sempre mais uma e aceitamos que as pessoas que costumam participar possam faltar. Pretendemos, deste modo, criar um clima de tolerância e de liberdade que contribua para compensar a exigência rígida da vida na prisão e provoque o sentimento de que pensar pode ser libertador e transformador. Começámos por propor, como tema de conversa em grupo, que falassem sobre qualquer experiência que especialmente as tivesse marcado pela alegria ou pela dor, passada com elas ou com outras pessoas. Durante meses foram invocadas situações dolorosas, relacionadas com as suas histórias de vida, desde a infância ao presente. Estes relatos levantavam questões, geravam opiniões, lágrimas e palavras de consolo mas, invariavelmente, terminavam em desabafos sobre a dificuldade de suportar a reclusão. A partir destes relatos, somos levados a pensar que muitas destas mulheres foram crianças maltratadas física e psicologicamente. A nossa posição no grupo é de incentivo à reflexão. Só intervimos para sublinhar o que é positivo, com a intenção de dar ânimo, ou então para orientar a conversa, num sentido que nos pareça mais esclarecedor e construtivo. Consideramos fundamental dar-lhes a palavra, porque é a forma de criar 16

10 DAS MARGENS NASCEM FLORES uma oportunidade que lhes permite libertar emoções, reorganizar o pensamento e constatar o efeito da sua intervenção no clima emocional do grupo. O que partilham de construtivo tem mais impacto do que aquilo que lhes possa ser dito por alguém que esteja fora da difícil situação de vida em que se encontram. É essencial que as pessoas que estão presas possam ter um espaço para falar livremente do que sentem. Sermos ouvidos e compreendidos torna mais suportável o sofrimento, permite a sua elaboração, gera alívio e consequentemente a possibilidade de vivenciar novos sentimentos mais agradáveis, tais como a solidariedade, a esperança e a amizade, fontes de renovação interior. Contudo, sempre que alguém de novo entra na roda, o clima de queixa é intensificado. A queixa é como que um grito de apelo face à dificuldade de suportar a situação que estamos a viver. Ela é necessária ao sujeito aflito como uma forma de libertar tensões e pedir auxílio. No entanto, o prolongar das queixas pode impedir a construção de um pensamento, no sentido de abrir possibilidades à conceção de novos projetos de vida. Com a intenção de aumentar a produtividade destes encontros, decidimos propor que, se quisessem, apresentassem um pequeno trabalho biográfico sobre alguém que admirassem. Esta proposta tinha em vista desfocar as pessoas da situação de queixa, permitindo-lhes projetarem-se nos personagens que são objeto da sua admiração. Com efeito, admiramos aqueles com quem de algum modo nos identificamos, porque correspondem aos nossos desejos de ser. O depararem-se com aquilo que de bom valorizam, facilita o reconhecimento dos seus ideais humanitários, religiosos ou estéticos, o que contribui para aumentar a sua autoestima. 17