Punição e castigo na primeira infância

Transcrição

1 Punição e castigo na primeira infância Estamos diante de um tema essencial para a educação das crianças e que requer interesse e empenho do adulto educador, seja ele pai, mãe ou profissional de educação. Pensando no dia a dia, sempre nos deparamos com crianças desafiadoras e a grande pergunta que formulamos é qual ação necessária para lidar com a tensão e o desgaste que advém do conflito de comportamento e com o comportamento em si? Para iniciarmos nossa conversa é interessante compreender a definição de ambos os termos pois fazemos muita confusão entre punição, castigo e dar limites: castigo é uma sansão para reprimir conduta incorreta e punição é o reforço negativo que via de regra gera sofrimento. Na história da humanidade passamos por períodos de grande repressão, onde a criança praticamente não era vista como indivíduo; tanto é que não faz muito tempo que existe o estatuto da criança e o movimento Aliança pela Infância, para assegurar que a criança de fato seja vista como tal. Ela não deve ser ignorada, nem tampouco confundida como um adulto em miniatura, capaz de fazer suas próprias escolhas. Ou seja, corremos o risco de pender aos extremos: ora total repressão, ora total liberdade. Sabemos que liberdade está relacionada à responsabilidade e maturidade que adquirimos no decorrer de nossas vidas através de vivências de nossas ações e assumindo as consequências das mesmas. A inversão de valores também é vista no decorrer da história: antigamente nas famílias os adultos, e principalmente o pai, ocupava o lugar de autoridade máxima; e na vida social, o professor e o líder religioso. Ao pai era reservado o lugar especial à mesa, era servido em primeiro lugar, ganhava o maior pedaço de frango. Hoje em dia, na maioria das famílias, isso é radialmente o inverso: a criança escolhe tudo e é atendida prontamente, tanto em casa como na escola. O professor, que antigamente era admirado e visto como uma autoridade, hoje é questionado pelos pais quando os

2 filhos levam uma queixa, e geralmente o professor é acusado até que prove o contrário! A criança agora é vista pela mídia com muito interesse, pois é ela quem determina nos lares, a compra de muitos artigos. A família mudou e temos muitos modelos de família, a casa do pai, a casa da mãe, quando separados, e a criança tem, em termos materiais, tudo em dobro e quando podem os pais concorrem para dar mais e melhor do que o outro, tendo em vista que o tempo é cada vez mais escasso, pois pai e mãe trabalham fora o dia inteiro e se sentem culpados por isso! Em contrapartida não querem traumatizar seus filhos e não querem que eles sofram. Quase ninguém quer causar às crianças qualquer frustração, um exemplo é que já é praxe que, em qualquer campeonato infantil todos ganhem medalhas mesmo quando não houve esforço por parte de muitos. Esse é um grande paradoxo, pois não existe desenvolvimento, crescimento sem crise, dor, esforço ou frustração. Agora façamos um salto para a abordagem bíblica do antigo testamento que faz menção às leis dadas por Moisés: prevalecia a lei olho por olho e dente por dente. O povo precisava de um líder, guia que lhes pregasse as normas de condutas, os dez mandamentos, e quem não as cumprisse estava em pecado e era castigado. Já no novo testamento, tomemos a passagem da mulher adúltera onde diante da multidão estava para ser apedrejada quando Jesus intervém dizendo que aquele que não tivesse nenhum pecado, que atirasse a primeira pedra; ou seja, agora existe a proposta da auto análise. Antes a autoridade era totalmente externa, conforme a humanidade amadurece a autoridade deve seguir o caminho interno da auto reflexão, da auto educação. E toda educação deve visar no fundo a auto educação! Para compreender melhor o assunto nos dias atuais vamos formular uma breve imagem da criança na primeira infância. Um dos aspectos fundamentais que a criança está desenvolvendo nos primeiros anos de vida é a vontade que ocorre porque a criança imita, conhece o mundo, vive e atua sobre ele. Podemos dizer que como educadores temos o papel de educar a vontade da criança.

3 Na prática, estamos com frequência diante de comportamentos que consideramos inadequados e para compreendê-los é necessário saber como para a criança é possível se comportar em cada fase, coerentemente com seu estágio de desenvolvimento: Assim, na criança até 3 anos o comportamento é o resultado da força de sua capacidade volitiva não dominada nem dirigida ainda por ela mesma. As avós definem bem: juízo de menino pequeno é na canela. Para a criança de 3 a 7 anos além de ser ainda o resultado de sua capacidade volitiva não dominada, é também fruto da imitação e ausência de limites claros e firmes. Vale destacar que a neurociência tem trazido contribuições acerca do desenvolvimento que confirmam estudos mais antigos. Uma das contribuições da neurociência do desenvolvimento para a educação foi o conceito de funções executivas, que são funções de controle necessárias quando se está pensando, ou no impulso inicial de uma ação, que dependem de circuitos neurais ligados ao córtex pré-frontal. Há certo consenso entre os pesquisadores sobre três funções executivas: controle inibitório, memória de trabalho e flexibilidade cognitiva, as quais constituem base para desenvolvimento do raciocínio, resolução de problemas e planejamento (Diamond, 2013; Center on the Developing Child at Harvard University, 2011). O controle inibitório compreende estar apto a controlar a própria atenção, focar, controlar comportamentos, pensamentos e emoções e se guiar para fazer o que é apropriado ou necessário em cada momento. A memória de trabalho é a capacidade de guardar informações que serão necessárias em um curto espaço de tempo para a realização de tarefas no dia a dia e que deverão ser priorizadas e selecionadas como mais importantes. A flexibilidade cognitiva consiste na habilidade de mudar de perspectiva e redirecionar o pensamento e formas de pensar com agilidade e de acordo com as exigências do momento. As funções executivas bem desenvolvidas permitem mover e brincar mentalmente com as ideias, pensar antes de agir, encontrar saídas para imprevistos, resistir a tentações e permanecer focado (Diamond, 2013).

4 As funções executivas também se constituem como habilidades essenciais para a saúde física e mental, para o sucesso na escola e na vida e para o desenvolvimento cognitivo, social e psicológico (Diamond, 2013). As evoluções no desenvolvimento das funções executivas dependem da disciplina e da prática com que uma atividade é realizada, da quantidade de tempo que se dedica para fazê-la e da motivação para fazê-la melhor. Todo esse desenvolvimento ocorre aos poucos, uma grande parte dele na primeira infância e tudo depende das relações e do ambiente em que a criança vive, quando suas verdadeiras necessidades são atendidas. Não é possível exigir de uma criança aquilo para o qual ela ainda não está pronta. Será que na família e na escola as reais necessidades da criança para alcançar o desenvolvimento natural estão realmente sendo atendidas? Como a vida das crianças está sendo guiada, pelas necessidades e interesses dos pais, pelas exigências extremas do mundo atual que se reflete na escola, ou por suas verdadeiras necessidades? As crianças tem tido oportunidade de brincar livremente? Estão sendo levadas para caminhadas? Quanto cuidado estamos tendo com a quantidade e qualidade de impressões sensoriais que as crianças estão recebendo? Elas estão tendo contato com a natureza? Estão sendo realmente respeitadas e amadas? A criança é pura vontade, mas essa vontade deve ser educada, para ser fortalecida e se tornar força de vontade, metamorfoseando-se em força para o aprender e para o trabalhar na vida adulta. Se uma criança for deixada a mercê de seus instintos e impulsos, ela vai fazer somente o que ela quiser, tornando-se voluntariosa, uma pequena déspota. Por outro lado, uma criança muito reprimida, onde suas ações indesejadas são confundidas com sua própria personalidade, onde o erro não é permitido, ao ponto que se atinja nocivamente sua auto-estima, ela se vê como burra, feia, inadequada, incapaz. No primeiro caso temos a ausência de autoridade, e no segundo, temos o autoritarismo. Ambos geram adultos doentes e inseguros.

5 A educação entre outras coisas pode promover saúde: incentivar o amor pela ação, repreender a ação inadequada e não a criança, falar o positivo, não estimular a argumentação (explicações) e sim o gesto; a cada ação negativa propor uma ação positiva reparadora (bateu- cuidou; quebrou-consertou, se a criança está descontrolada ajude-a a aquietar-se). Agressividade nada mais é senão vontade não dirigida é importante que crianças irrequietas, com tendência a agressividade, tenham oportunidades de movimentação corporal com frequência e persistência. No campo do desenvolvimento da vontade e a criança necessita imitar a atitude do adulto. Ao adulto cabe criar o ambiente correto. Fazer diante da criança o que deve ou espera-se que seja feito. Dirigir a vontade da criança. Cuidar do vínculo que estabelece com cada criança, especialmente daquela que o desafia. Ser o modelo e fonte de segurança. De maneira geral podemos dizer que diante de comportamentos desafiadores a atitude e estratégia devem ser adequadas a cada fase. Com a criança até 3 anos, o adulto deve trazer calma, estar fortemente ligado a ela na hora de uma birra e muitas vezes distrair a criança desviando sua atenção de um comportamento inadequado para outra situação qualquer. Com crianças acima de 3 anos o adulto não deve deixar passar a situação, ceder, rir, e principalmente não desistir da criança que nos dá trabalho. Não deve prometer e não cumprir, muito menos ameaçar para conseguir o comportamento desejado, menos ainda por meio de barganhas. Evitar chamar o nome da criança o tempo todo bem como dizer não intermitentemente, neste caso substituir por aqui nós fazemos assim, vou te mostrar. Evitar dar tantas explicações e motivos para a criança se comportar bem, ela compreende melhor os gestos. Evitar as admoestações e as prédicas moralizantes que ninguém gosta e em tempo nenhum funcionou. Isso sem falar da violência física e moral que quando recebida com certeza será passada adiante como num ciclo. Da mesma forma sustos e gritos vão fazer estragos até na formação

6 dos órgãos da criança. Se desejar ser ouvido, ouça o pedido de socorro da criança, ela só o consegue expressar pelo comportamento. Falar olhando nos olhos da criança também é essencial. As atitudes que tem se mostrado mais adequadas na condução de situações de comportamento podem ser várias: O uso de imagens que façam sentido podem trazer resultados surpreendentes e serem substituídas pelas intermináveis explicações. Trabalhar com consequência direta em relação a uma causa, seguindo a lógica dos fatos como exemplo: quebrou, conserte; derrubou, pegue de volta; acendeu, apague; e outros mais. Sugerir ou exigir que a criança pequena peça desculpas tem pouco ou nenhum resultado. O pedido de desculpas também precisa ser verdadeiro sendo fruto da imitação e não de imposição. Vale mais uma atitude reparadora construtiva diretamente ligada à atitude e corrigida por meio de gestos. Muitas vezes, a criança não consegue parar sozinha quando está agitada, chorando demais, fora do eixo, assim faz-se necessário que o adulto pare a criança impedindo-a de continuar e trazendo o equilíbrio de volta. Criticar e chamar a atenção em excesso tem efeito contrário na condução do comportamento da criança. O reforço positivo possui melhor efeito, ou seja, utilizar o elogio certo que é reconhecer na criança aquilo que ela conseguiu de fato fazer, elogiar ações. É possível criar situações para que a criança realize algo a seu alcance e que a faça se sentir bem. O reconhecimento e a gratidão dos adultos são a maior recompensa que uma criança pode ter. Já com as crianças acima de 5 anos é necessário despertar nelas o senso para o dever. Ao se aproximar o quinto ano de vida a criança torna-se receptiva a advertências, ao que provém da autoridade, ao que se deve aceitar. Antes a criança não aceita, não tem ainda um senso para o dever, e sim apenas para a imitação. (Steiner, 2008). Desta forma o educador-adulto deve diariamente e repetidas vezes- sugerir, dar tarefas, exigir, esperar, insistir e confiar que a

7 criança será capaz de realizar. A criança deve aprender que servir ao outro faz parte do trabalho que ela deve realizar e assim ela desenvolverá amor pela ação. Só é realmente livre a ação executada com amor. Coerência é uma palavrinha de ouro quando falamos de educação, promoção de saúde e limite, pois traz segurança. Criança precisa de ritmo, cultivo de bons hábitos e modelos dignos de serem imitados. Lembremos que é melhor tomarmos uma decisão diante da criança e assumirmos as consequências da mesma, até se tivermos que readequá-la depois, do que a ausência de posição, ou pior, repassar a responsabilidade à criança. Diante da tomada de decisões devemos sempre nos perguntar: quem é o adulto da relação? Desafiar o mundo externo faz parte do processo saudável de desenvolvimento e assim como a humanidade passou por etapas, a infância é um período no qual a criança precisa ser conduzida. Desta forma, desafiar é um processo que ocorre no interior da criança, é um processo necessário, uma oportunidade de testar forças, aprender e adquirir capacidades. Ele é natural em certos períodos de crise na biografia do ser humano e temos que diferenciar a birra ou teimosia necessárias, daquela que se tornou hábito no relacionamento por falta de limite exterior. Em ambas é o educador que deverá ter o leme do barco nas mãos. A condução da criança por um adulto se dá de forma exterior à criança e ela necessita encontrar resistência e limites para se reconhecer. Somente sendo conduzida e imitando é que ela se tornará um ser humano livre. A criança quer ser apenas criança e agradece ao saber que as decisões a respeito do que é melhor para elas são tomadas por um adulto. Ao nos desafiar a criança pede de nós um posicionamento e também nos impulsiona ao crescimento pessoal e profissional. Para atender suas necessidades e estar a serviço de seu desenvolvimento necessitamos olhar para dentro de nós mesmos e reconhecer nossas próprias habilidades e inabilidades. Precisamos ser verdadeiros para conosco mesmos.

8 Neste ponto o trabalho interior do pai/mãe/professor é imprescindível. Devemos cultivar a autoeducação por meio de um olhar para si mesmo e para a relação com a criança e seus reflexos do dia a dia. Fazer retrospectiva e avaliar. Cultivar a calma interior, a clareza, determinação, firmeza e energia. Buscar o controle dos pensamentos, sentimentos e ações. Um bom trabalho em equipe é também fundamental, toda a relação de confiança e apoio entre o casal ou colegas de trabalho fará muita diferença na condução de um processo difícil em relação a uma criança. Muitas vezes precisamos pedir e oferecer ajuda, afinal também somos seres humanos em desenvolvimento e estamos longe da perfeição. A criança aprende e se beneficia com nosso esforço de superação e para isso devemos realizar em nós o que exigimos dela. Dever é aquilo que se exige de si mesmo. Goethe Texto elaborado por Cleonice Vieira dos Santos e Rosemeire Laviano Bibliografia: O desenvolvimento saudável do ser humano. Rudolf Steiner Consultório pediátrico. Goebel e Glöeckler A educação da criança segundo a ciência espiritual. Steiner Executive functions: Insights into ways to help more children thrive. Adele Diamond

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