Tragédia. Quem sou eu? O que faço da vida? Qual o meu objetivo?
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- Eliza Alcântara Tavares
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1 Tragédia Muitos me perguntam quem sou Quem sou eu? O que faço da vida? Qual o meu objetivo? Todas estas questões começaram naquele dia Oh sim, naquele dia mais turbulento do que o mar, mais tormentoso que o Cabo das Tormentas. Foi ali, ali que tudo mudou, que tudo passou de normal a questionável. Foi desde 16 de junho de 2015 que tudo passou a nada Foi desde aí! Uma mudança terrível que me fez sentir como que se me mudasse de África para o Pólo Norte. De alegria aos molhos a saudade permanente, de algo aborrecido a algo muito importante, de gargalhadas a mares de lágrimas cada qual com o seu sentido. Foi desde esse momento que coisas insignificantes passaram às coisas mais importantes da minha vida. Foi desde esse momento que tudo se tornou branco, que aquela luz que iluminava a minha vida se apagou para nunca mais se reacender Foi o momento mais marcante da minha vida! Bem, devem estar a perguntar-se qual era esse momento de que tanto falo, aquele momento que me arruinou a vida. Pois bem, lembro-me desse momento como se o tivesse vivido ontem. Os gritos, os pedidos de socorro, as tristezas, o desespero, tudo isso se sentiu naquele dia. Tínhamos ido visitar o meu primo a Jersey. Eu, os meus pais, os meus irmãos, toda a minha família Todos reunidos naquele edifício gigante Admito que aquele edifício dava tonturas só de olhar, vertigens de pensar na altura a que estávamos do chão. Isto no dia 16 de junho de 2015, naquele terrível dia, um dia que ficou para a história. Eram sete horas da manhã já eu estava de pé, tão madrugadora como o galo que lá perto cantava. Fui comprar o pão mais fresco que havia naquela barraquita, naquela pequena e velha barraquita. Apesar de pequena e velha, era uma barraquita acolhedora, com empregados também velhos, mas simpáticos acima de tudo. Oh sim, foi essa barraquita que me
2 salvou o corpo, mas que não conseguiu salvar-me a alma, pois ela morreu naquele edifício, juntamente com todas as outras Estava a pagar o pão quando se ouve um estrondo tão grande quanto o Evereste. De onde viria aquilo? Como teria ficado aquela zona de Jersey? Aí mal eu sabia aonde tinha ocorrido aquela tragédia maior que o Titanic, mais estrondosa que um concerto. Assim que se acaba de ouvir o estoiro e todas as pessoas, novas e velhas, foram ver o que se tinha passado Não se via nada além de uma nuvem enorme de fumo, fumo tão preto quanto uma azeitona, que era levado com o vento, sem meta final, apenas ia, descontraído Liguei para os meus pais para ver se eles sabiam o que se tinha passado, mas ambos tinham os telemóveis desligados Liguei para os meus irmãos e obtive o mesmo resultado. Comecei a ficar preocupada. Passado cerca de 30 minutos a nuvem de fumo já tinha sido levada para bem longe, para o além, e aí deu para observar mais do que o que antes era visível. Estava parado no meio da estrada um carro da polícia que não deixava passar automóveis para o lado de onde tinha vindo a explosão. Expliquei o meu caso ao polícia e ele deixou-me passar para o lugar do atentado. Quando eu levanto o olhar, vejo um edifício destruído igualzinho ao que toda a minha família estava a dormitar. Não podia ser, aquilo não me podia estar a acontecer, simplesmente não podia O edifício estava em chamas tão vivas e tão violentas quanto o mar!! Pedidos de socorro era o que mais se ouvia. Havia pessoas à janela com esperança de que lá houvesse um colchão de queda para o qual pudessem saltar Ficavam a olhar, pela janela, a gritar, e eu a vê-las serem devoradas pelo fogo Imagens que me permanecem na cabeça O que mais me preocupava naquele momento era a minha família. Como estaria ela? Estaria viva? Não estariam lá? Será que já teriam sido levadas para o outro lado?
3 Derramei-me em lágrimas que transportavam uma dor intensa, uma vontade de ter sido eu a estar naquele edifício Quando os bombeiros apagaram aquele monstro laranja e vermelho, foram ver se ainda havia almas dentro de corpos, almas vivas que tinham passado por um desastre enorme. Saíram de lá corpos em cima de macas, corpos que dentro de pouco tempo foram postos dentro de sacos de plástico pretos para serem levados para a morgue. Corpos todos queimados, sem identificação, com ossos partidos, com muito sangue Via de tudo, apenas não via a minha família... Olhei para a porta de saída do edifício e saíram todos, em cima de macas... Saíram apenas corpos vazios sem alma, a alma que andava por ali a vaguear perdida, corpos que logo de seguida foram levados para a morgue juntamente com todos os outros. Foi esse o momento que me fez pensar que devia ter aproveitado todos os momentos com eles pois todos eles foram únicos, todos eles foram especiais, todos eles foram importantes A partir daí, eu era só mais um corpo a vaguear vazio, sem sentido nenhum na vida, sem nenhum conhecido, apenas o meu corpo a ocupar espaço Comecei a ficar desesperada, muitos diziam que eu comecei a ficar maluca Pois é, se calhar a maluquice ter-me-ia apanhado. Mas que interessava isso agora? Agora que a vida não tem nenhum sentido? Pois bem, não me importava nada, simplesmente nada. Comecei a ter uma depressão. Consultei psicólogos, psiquiatras, tudo do que podia haver, mas nada resultou De que me servia ir a esse doutores se eles não coravam a dor? Se a dor continuava intacta, mais forte a cada dia que passava? Eu não comia, não dormia, estava a morrer aos poucos. Quer dizer, o meu corpo estava a morrer aos poucos pois a alma já tinha morrido há muito tempo De que me servia esta miserável vida? Esta solitária, horrível vida? Com memórias tão vivas, tão sentidas, tão vividas Só tinha uma opção: desistir
4 Agarrei numa faca, arregacei as mangas, comecei por fazer um corte ao de leve até que ouço: Que pensas que estás a fazer? A tentar mudar a vida para melhor? Ouvi esta voz na minha cabeça, esta voz como a voz doce do meu pai, o meu tão amado pai. Caí em mim Que estava eu a fazer? Pousei a faca e deitei-me no chão a chorar que nem uma perdida. No que me tornei? Cheguei ao ponto de querer desistir de viver? A partir desse momento, decidi que a minha vida teria que mudar, teria que começar ali do zero. Tornei-me uma rapariga nova, cheia de esperanças e com uma grande experiência de vida. Ah, esqueci-me de dizer, tinha-me mudado para Jersey, onde podia relembrar para sempre os meus pais. A primeira coisa que fiz foi arranjar emprego, mas um bom emprego, que desse para pagar as dívidas e para ter uma boa vida, uma vida de luxo e não miserável como a dos meus pais que contavam centavo a centavo para conseguirem sobreviver e alimentar-me a mim, aos meus irmãos e a eles. Encontrei emprego como médica legista de casos criminais (emprego para o qual eu passei quase toda a minha vida a estudar). Comecei a fazer novas amizades, verdadeiras amizades. Conheci nesse dia um rapaz chamado Diogo, conheci-o no trabalho, ele era polícia. Bem, ele era simpático como os meus pais, tinha uma voz doce como o mel, uns olhos verdes e brilhantes como relva fresquinha acabada de regar, um cabelo castanho cor de avelã e era tão compreensivo quanto os meus irmãos. Tivemos um jantar de trabalho, onde ele esteve presente. Nesse mesmo jantar convidou-me para ir jantar com ele no dia que se seguia e eu aceitei, claro. A minha alma reencarnou no meu corpo para de lá não sair tão cedo. Um mês mais tarde fomos jantar, eu fui até casa dele, tivemos ao que se pode chamar um romance, e eu acabei por dormir com ele. Acabámos por ter uma relação tão forte como uma muralha, e tão linda como flores
5 Hoje, um ano mais tarde, escrevo a história da minha vida, com um bebé lindo deitado ao meu colo a dormir que nem um anjinho. Um bebé lindo, chamado Afonso, do qual eu tenho muito orgulho e a quem eu dou todo o meu amor (é claro que também o partilho com o meu marido, o Diogo). Até aos dias de hoje, fui colocar, dia após dia, uma das flores favoritas da minha família, as rosas vermelhas e brancas, na campa deles, dando-lhes um beijinho cheio de amor e saudade, sem exceção de ninguém. Quando o Afonso crescer, irei explicar-lhe como eram os avós e tios dos quais me orgulho muito e que sinto saudades dia após dia e da sua coragem, é claro.
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