Casamento, Família e Felicidade: Gênero, código civil e jornais do século XX
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- Helena Rico Corte-Real
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1 Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro APERJ Praia de Botafogo, 480 2º andar - Rio de Janeiro RJ CEP Tel.: (21) Casamento, Família e Felicidade: Gênero, código civil e jornais do século XX Ana Carolina Eiras Coelho Soares 1 Este trabalho faz parte de minhas reflexões iniciais de meu projeto de doutorado, que busca compreender como os conceitos 2 sobre casamento, família, pátrio poder, condição legal feminina, aparecem no código civil de 1916 e foram caracterizados como comportamentos socialmente desejáveis pelos homens e mulheres na imprensa feminina, especificamente na Revista Feminina publicada em São Paulo, através de uma análise comparativa das fontes. O questionamento de ambas as fontes tem como ponto de partida as diferentes percepções sobre as liberdades atribuídas por uns e conferidas por outros às mulheres nas primeiras décadas do século XX, tanto no discurso impresso como no discurso legal. Desta forma, desenvolvo este estudo pontuando semelhanças e antagonismos entre dois discursos: o aspecto legal do código civil, que regula e regulamenta os efetivos direitos e deveres sociais do homem e da mulher, e o da imprensa, com suas construções de feminilidade e masculinidade específicas. Analisarei o código civil de 1916, contextualizando historicamente todo o questionamento político e moral em torno desta regulamentação formal da sociedade, nas primeiras décadas do século XX. O projeto do Código civil de 1916, elaborado por Clóvis Beviláqua, foi discutido no Congresso por 16 anos. Esta demora aconteceu, em parte, devido à própria importância que este conjunto de leis exerce socialmente, uma vez que para os políticos e juristas da época, a elaboração do código civil era algo essencial para a modernização brasileira. Defendiam também que sobre este instrumento jurídico recaía a responsabilidade da legislação sobre praticamente todas os tipos de relações entre as pessoas na sociedade (por exemplo: conjugal, paternal, trabalhista, hereditária...), tornando-o mais elaborado e levando a muitas polêmicas. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2 Para a análise destes conceitos utilizarei os estudos de Reinhardt Koselleck: The practice of conceptual history: timing history.stanford, Califórnia (USA): Stanford Press, 2002; Crítica e Crise. Rio de Janeiro: EdUEJ/Contraponto, 1999; Uma História dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 5 (10): , 1992.
2 Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 Buscarei no texto final aprovado no Congresso Nacional, a maneira pela qual as questões que tangenciam as mulheres foram abordadas. Também destacarei que tipo de argumentos foram apresentados levando em consideração a utilização desta documentação considerada oficial, que não deixa de revelar as intenções e o universo mental nos quais se move o pensamento do poder. 3 Uma discussão pertinente a este projeto foi aquela que levantou a questão da igualdade jurídica entre homens e mulheres. Na redação do projeto do código Clóvis Beviláqua propunha que não houvesse diferença de representação jurídica entre os gêneros, partindo do conceito de igualdade. Em seu texto, a igualdade entre homens e mulheres apenas não era total em relação aos papéis sociais distintos que o homem e a mulher deveriam exercer, acarretando portanto, em alguns direitos e obrigações distintas, como por exemplo, a obrigatoriedade do sustento de esposa e filho pelo marido. No entanto, a comissão considerou imprópria a questão da igualdade entre os gêneros e no texto final acabou prevalecendo a idéia da incapacidade representativa feminina, que deveria necessariamente ter um tutor que a amparasse juridicamente. A discussão sobre a condição jurídica das mulheres, realizada na elaboração do código civil de 1916, possui uma relação direta com o tipo de representação social estabelecido entre os gêneros. Um estudo que compare o texto jurídico e uma revista elaborada especialmente para o público feminino, possibilita uma análise das diversas construções que a sociedade tinha de si mesmo. Enfatizarei também aspectos sobre o universo intelectual que permeiam os conceitos sobre os papéis e relações estabelecidas entre os gêneros nas primeiras décadas do século XX. Aquilo que vinha exposto através da linguagem na imprensa é percebida neste projeto como uma das formas de se perceber o político, uma vez que a história política dos meios de comunicação deve enriquecer-se com um estudo da socialização dos homens, da formação de suas opiniões ao longo de seu itinerário particular 4. Para a análise da imprensa utilizarei a Revista Feminina, editada de 1914 a 1936, que será compulsada do início ao final de sua edição. Pretendo abarcar com maior ênfase as mudanças qualitativas e quantitativas dos temas de interesse em relação aos conceitos analisados. A escolha deste período histórico deve-se em grande parte por serem as primeiras décadas do século XX importantes para as primeiras transformações e reivindicações que foram influentes no entendimento das relações entre homens e mulheres no século XX e suas maneiras de pensar e viver 5. 3 Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Corcundas e constitucionais. A cultura política da independência ( ). Rio de Janeiro: FAPERJ/Revan, 2003, p René Remond. Por uma História Política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996, p Sobre este assunto consultar Fernando Novais (dir.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 4v.
3 Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3 A importância deste estudo reside na possibilidade do estabelecimento de uma rede de conexões sobre as referências socialmente condicionadas e condicionantes da natureza dos femininos e masculinos possíveis. Procurarei compreender a rede de significados que compõem a construção social entre os gêneros, a partir destas idéias que representam estes conceitos e atendem a determinadas expectativas sociais e culturais no período em que foram representados, tanto na linguagem jurídica como nos textos de imprensa, evidenciando o processo construtor destes contornos e definições dados ao gênero. Sobrevém a preocupação em desfazer noções abstratas de mulher e homem, enquanto identidades únicas, a-históricas e essencialistas, para pensar a mulher e o homem como diversidade no bojo da historicidade de suas inter-relações. (...) já se sente a necessidade de uma síntese que abarque as continuidades e descontinuidades, as desigualdades persistentes e as experiências sociais radicalmente diferentes. 6 Pretendo, portanto, compreender historicamente os conceitos formalizados código civil e veiculados na revista sobre casamento, família, pátrio poder, condição legal feminina e suas relações, mostrando que estas construções de referências estavam inseridas em um processo mais amplo de elaborações sociais ensinadas às mulheres e aos homens. Além disso, será necessário contextualizar historicamente os conceitos destes termos, sendo necessário pensar em uma significação do sentido dado a estes conceitos 7 no período estudado. A Revista Feminina foi fundada por Virgilina de Souza Salles e editada de 1914 a 1936, e foi um dos periódicos de maior circulação na época atingindo a tiragem de 25 mil exemplares por mês 8. Continha diversas seções sobre etiqueta, moda, relacionamento conjugal, bordados e comportamento, publicava matérias traduzidas da imprensa estrangeira, e contava com a colaboração de leitores e de escritores renomados do período tais como Coelho Neto e Júlia Lopes de Almeida. A Revista Feminina foi considerada em sua época inovadora, corajosa e bem-sucedida, atraindo um público leitor em geral feminino e das classes médias. 9 Esta pesquisa pretende perceber em que momentos esta publicação teve uma postura de vanguarda em sua época, e em outra medida, em quais momentos suas idéias apenas reforçavam as conceitos legais sobre os papéis sociais do homem e da mulher, expressos no Código Civil de Maria Izilda S. de Matos, Estudos de Gênero: percursos e possibilidades na historiografia contemporânea. Em Cadernos Pagu: trajetórias do gênero, masculinidades..., Campinas, (11) 1998, p. 74, grifos meus. 7 Penso esta questão a partir da seguinte citação: As maneiras de falar não são inocentes; para além de sua aparente neutralidade, revelam estruturas mentais, maneiras de perceber e de se organizar a realidade denominando-as. Traem os preconceitos e os tabus por seus estereótipos ou silêncios. René Remond. Por uma história política. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996, p Informações a partir do artigo de Marina Maluf e Maria Lúcia Mott. Recônditos do mundo feminino. Em Fernando Novais (dir.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Curioso notar que seu editor era homem: o escritor Cláudio de Souza escrevia sob o pseudônimo de Ana Rita Malheiros.
4 Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4 A revista é um tipo de periódico dirigido para um determinado público leitor. Ao lançar-se no mercado seu apelo comercial busca atingir a atração e interesse deste público transformando-os em leitores. Simultaneamente, este grupo de leitores intervém na própria produção, numa espécie de troca dialógica de idéias, em que as revistas vão adaptando-se cada vez mais para agradar e vender. O que se coloca em questão neste projeto é o fato destas revistas terem não somente um caráter informativo, mas sobretudo uma intenção formativa de opinião. As revistas tentam corresponder à demanda do público leitor, considerando seu modo de agir e pensar, ao mesmo tempo em que procuram discipliná-lo e enquadra-lo nas relações de poder existentes, funcionando como um ponto de referência, oferecendo receitas de vida, impingindo regras de comportamento, dizendo o que deve e principalmente o que não deve ser feito. 10 É justamente neste processo pedagógico, por assim dizer, que a mulher consome qual o seu espaço social e os limites do espaço masculino, através das linguagens subjetivas editadas. As palavras [e as imagens] carregam valores experienciais, relacionais e expressivos que podem ser significativos para identificar a ideologia presente (...). 11 Partindo destes valores experienciais e relacionais a idéia de casamento e de família, é representada nas primeiras décadas da república de maneira bastante conservadora, dentro de pressupostos bastante semelhantes aos do império: cabia a mulher o espaço da casa e o domínio do homem seria o espaço público. FONTES: Revista Feminina a Fundação Biblioteca Nacional, seção de periódicos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BASSANEZI, Carla. Virando as Páginas, Revendo as Mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, BONFIM, João Bosco Bezerra. Ideologia no Discurso da Mídia. Em MOTTA, Luiz Gonzaga (org.) Imprensa e Poder. Brasília/São Paulo: UNB/Imprensa Oficial, KOSELLECK, Reinhardt. Uma História dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 5 (10): , The practice of conceptual history: timing history.stanford, Califórnia (USA): Stanford Press, Carla Bassanezi. Virando as Páginas, Revendo as Mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.p. 16 grifos meus. 11 João Bosco Bezerra Bonfim. Ideologia no Discurso da Mídia. Em Luiz Gonzaga Motta (org.) Imprensa e Poder. Brasília/São Paulo: UNB/Imprensa Oficial, 2002, p. 329.
5 Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5. Crítica e Crise. Rio de Janeiro: EdUEJ/Contraponto, MATOS, Maria Izilda S. de. Estudos de Gênero: percursos e possibilidades na historiografia contemporânea. Em Cadernos Pagu: trajetórias do gênero, masculinidades..., Campinas, (11) NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais. A cultura política da independência ( ). Rio de Janeiro: FAPERJ/Revan, NOVAIS, Fernando (dir.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 4v. REMOND, René Remond. Por uma História Política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.
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