Participação social na Política Nacional de Medicamentos brasileira: análise a partir do modelo de coalizão de defesa
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- Lucas Gabriel Alencar Clementino
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1 Participação social na Política Nacional de Medicamentos brasileira: análise a partir do modelo de coalizão de defesa Maísa Cavalcanti 1, José Lamartine Soares Sobrinho 2 1 Bolsista CAPES Processo PDSE nº 14272/13-0, Brasil. Prefeitura do Recife, Brasil. maisarecife@hotmail.com; 2 Núcleo de Inovação Terapêutica da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. joselamartine@hotmail.com; Resumo. Uma política farmacêutica nacional deve ser essencialmente intersetorial. Portanto, durante todo o processo de elaboração, deve se desenvolver um amplo diálogo e negociação com todos os atores sociais interessados. O objetivo deste artigo foi analisar a participação social durante a fase de formação da agenda e da formulação da Política Nacional de Medicamentos brasileira, descrevendo as mudanças ocorridas com base no modelo teórico Coalizão de Defesa. Houve um amplo processo de discussão com todos os setores e atores sociais interessados. No entanto, durante as negociações, predominaram os interesses do governo, evidenciados tanto na mobilização das coalizões quanto no núcleo profundo do subsistema da referida política. Identificaram-se mudanças no núcleo político no tocante à participação da sociedade civil na seleção de medicamentos e no aspecto secundário referente à importância da alocação de recursos para pesquisa, produção e do processo de incorporação de medicamentos inovadores no Sistema Único de Saúde. Palavras-chave: Participação Social;Política Pública; Política Nacional de Medicamentos. Social participation in the Brazilian National Drug Policy: analysis based on the Advocacy Coalition framework Abstract. A national pharmaceutical policy must be essentially intersectoral. Therefore, throughout the elaboration process, a wide dialogue and negotiation with all interested social actors ought to be developed. This article paper aimed to analyze the social participation over the formation of the agenda and formulation of the Brazilian National Drug Policy, describing the changes that occurred based on the Advocacy Coalition framework. There was a wide process of discussion with all the sectors and interested social actors. However, throughout the negotiations, the interests of the government predominated, evidenced both in the mobilization of the coalitions and in the deep core of the policy subsystem. Changes were identified in the policy core regarding the participation of civil society in new drug selection and the secondary aspects related to the importance of the allocation of resources for research, production and the process of incorporation of innovative medicines at the Brazilian Public Health System. Keywords: Social Participation; Public Policy; National Drug Policy. 1 Introdução Uma política farmacêutica nacional, segundo as recomendações da Organização Mundial da Saúde (2001), deve ser essencialmente intersetorial. Portanto, durante todo o processo de elaboração, deve se desenvolver um amplo diálogo e negociação com todos os atores sociais interessados, incluindo Ministérios de Estado, profissionais de saúde, indústria farmacêutica nacional e internacional, instituições acadêmicas, organizações não governamentais, associações de profissionais e de usuários. Para a governança democrática, a participação de uma ampla variedade de atores nos processos de tomada de decisão é uma questão importante na política científica e tecnológica e, ao mesmo tempo, um grande desafio (Bora, 2010). Nesse sentido, é fundamental que o cidadão possua conhecimentos sobre ciência e tecnologia, seus principais resultados, métodos e usos, riscos e limitações, bem como seus interesses, suas determinações (econômicas, políticas, culturais), dando-lhe, condições de atuar politicamente (Moreira, 2006). No caso da formulação e implementação de uma Política Nacional de Medicamentos, esses processos envolvem tensões 1477
2 políticas, especialmente em razão da concorrência entre os grupos e setores envolvidos (World Health Organization, 2001). Nesse contexto, a oposição à política e as tentativas de mudança, durante a implementação, podem ser esperadas em virtude da diversidade de interesses e da importância econômica das questões envolvidas (World Health Organization, 2001; Stamford & Cavalcanti, 2012). Segundo Bora (2010), a participação de uma ampla variedade de atores nos processos de tomada de decisão, no âmbito das Políticas Científicas e Tecnológicas, é uma questão importante para a governança. De acordo com Dagnino & Dias (2007), Dias (2011) e Souza & Secchi (2014), a comunidade científica participa de forma hegemônica na elaboração das políticas públicas no âmbito da ciência e tecnologia, tornando-se seu ator dominante ao lado dos servidores do governo e dos empresários que também têm atuação destacada. No caso brasileiro, os empresários da indústria nacional teriam uma participação menor em relação aos outros dois atores (Dagnino & Dias, 2007; Dias, 2011). No Brasil, a participação social na área da saúde foi institucionalizada a partir dos conselhos e das conferências de saúde concebidas na perspectiva do controle social. Sob essa ótica, a intenção é propiciar a participação ativa dos setores organizados da sociedade civil na formulação de políticas públicas, dos planos, de programas e de projetos, acompanhando suas execuções e definindo a alocação de recursos (Correia, 2006). Nessa perspectiva, para análise de uma Política Pública, é necessário um modelo explicativo que considere não apenas os múltiplos atores participantes do processo de formulação, mas também os conflitos, as negociações e os interesses antagônicos. Além disso, esse modelo deve considerar o papel relevante do Poder Judiciário em virtude do fenômeno da judicialização das políticas públicas de saúde (Franzese, 2011). O objetivo deste artigo foi analisar a participação social durante a fase de formação da agenda e da formulação da Política Nacional de Medicamentos, bem como descrever as mudanças ocorridas nessa política, aplicando-se o modelo teórico Coalizão de Defesa. Essa análise foi norteada pelas seguintes questões: houve um amplo processo de discussão e negociação com todos os setores nacionais e atores sociais interessados, incluindo profissionais de saúde, indústria farmacêutica nacional e internacional, instituições acadêmicas, organizações não governamentais e associações de profissionais e de usuários na fase de formação da agenda e de formulação da Política Nacional de Medicamentos? Como os atores sociais se mobilizaram e agiram nas coalizões de defesa? Quais as principais trajetórias das mudanças da referida Política? 2 Metodologia Trata-se de um estudo de caso, com abordagem qualitativa, baseado na técnica de pesquisa bibliográfica e documental. A coleta de dados foi realizada a partir de três fontes: atas de reunião do Conselho Nacional de Saúde (CNS), artigos científicos e legislações na base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). A busca na base de dados foi realizada com as seguintes palavras-chave combinadas ou isoladas: judicialização, decisão judicial, medicamento e política nacional. Adotou-se a estratégia de busca de bola de neve proposta por Ridley ( 2008), dessa forma as referências das publicações científicas selecionadas na base de dados foram incluídas na análise. Aquelas consideradas relevantes para o estudo de caso foram recuperadas até atingir-se um ponto de saturação teórica, ou seja, quando novas referências não adicionaram mais informações relevantes. Da mesma forma, procedeu-se para avaliar a contribuição incremental dos documentos citados pelos artigos e pelas atas de reunião do CNS, que englobaram o período de 1963 a No total, foram obtidas e analisadas 83 atas de reunião do CNS no período de 1991 a 1999, sete atos normativos relativos ao setor de medicamentos e três publicações científicas. A fim de se verificar quais os problemas abordados na Política de Medicamentos de acordo com as discussões dos atores sociais, foi elaborado um formulário de coleta de dados no formato de planilha Excel com os seguintes dados: número da ata e data, trecho pronunciamento 1478
3 relacionado ao setor de medicamentos, nome do enunciador e representação no CNS, problema levantado, diretriz ou prioridade correspondente à Política de Medicamentos. Os problemas relatados nas atas de reunião do CNS foram agrupados e categorizados com base nas diretrizes e prioridades contidas na Política Nacional de Medicamentos. Para o cálculo da frequência absoluta dos problemas, considerou-se o total de pronunciamento de todos os membros em todas as atas analisadas no período de 1992 a 1999 (n=114), o número absoluto dos pronunciamentos de cada membro representante e dos problemas relatados por cada um. Foi feita a análise da formação da agenda e da formulação da Política Nacional de Medicamentos, utilizando-se o modelo de Coalizão de Defesa. Há vários modelos de análise de políticas públicas, entretanto para análise de uma Política Pública no setor de medicamentos, é necessário um modelo explicativo que considere não apenas os múltiplos atores participantes do processo de formulação, mas também os conflitos, as negociações e os interesses antagônicos. Além disso, esse modelo deve considerar o papel relevante do Poder Judiciário em virtude do fenômeno da judicialização das políticas públicas de saúde (Franzese, 2011). Por essa razão, esse modelo de análise foi escolhido visto que permite explicar o porquê das mudanças ocorrerem nas políticas públicas e ressalta que crenças, valores e ideias são importantes no processo de formulação de políticas públicas (Souza, 2006). Esse modelo se baseia na integração dos estágios do ciclo de políticas públicas, com ênfase na definição dos problemas, formulação, implementação e avaliação da política, considerando aspectos top down e bottom up. Além disso, enfatiza aspectos como o aprendizado e o comportamento das coalizões envolvidas, bem como as alterações na política em longos períodos de tempo. As coalizões são formadas em torno de crenças, opiniões, ideias e objetivos partilhados pelos atores envolvidos no processo, os quais mantêm, com certa regularidade, influência política sobre um subsistema (Weible, Sabatier, & McQueen, 2009). Para esse modelo, a unidade primária de análise é um subsistema da política que se caracteriza por uma dimensão funcional/substantiva e uma territorial (Souza & Secchi, 2014). Para esta pesquisa, a dimensão funcional/substantiva é a política pública de medicamentos e a dimensão territorial é nacional. Nesse modelo, um subsistema de política pública é caracterizado por um sistema de crenças identificado em três categorias estruturais (Weible et al., 2009): núcleo profundo, núcleo político e aspectos secundários. Os sistemas de crenças do subsistema Política de Medicamentos foram estruturados a partir do Quadro 1. Para identificar as trajetórias que explicam as mudanças nesse sistema de crenças e na política pública em longos intervalos de tempo, buscou-se verificar nessa Política Pública: aprendizagem orientada pela política pública, choques externos, choques internos e impasse de política - policy stalemate, conforme Weible et al. (2009). Com base no método aplicado, os resultados desta pesquisa foram apresentados a partir de três categorias de análise do modelo de Coalizões de Defesa: i) O papel dos atores sociais na formação da agenda e na formulação da Política Nacional de Medicamentos (PNM); ii) Coalizões, sistema de crenças e recursos; iii) Principais trajetórias das mudanças da PNM. Quadro 1- Tópicos para construção do sistema crenças do subsistema da Política Nacional de Medicamentos e as fontes de Localização estrutura crença da de dados Características Componentes ilustrativos Fonte de dados Núcleo profundo - Deep core Normas fundamentais e axiomas ontológico Susceptibilidade à mudança: muito difícil. Relativo à prioridade de componentes de vários básicos: liberdade, poder, conhecimento, saúde. Critério básico de distribuição de justiça: O bem-estar de quem conta? Projeto n. 161 (1963) Decreto n (1963) Decreto nº (1973) Portaria n (1998) Ata da 31ª reunião 1479
4 Número de pronunciamentos >>Atas CIAIQ2017 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 ordinária do CNS (1993) Loyola ( 2008) Lucchesi ( 1991) Núcleo político - Aspectos Centrais Posições políticas fundamentais relacionadas às estratégias básicas para alcançar o núcleo de valores dentro do subsistema: Susceptibilidade à mudança: difícil, mas é possível ocorrer se as experiências revelarem sérias anomalias. Preceitos normativos fundamentais: 1.Identificação de grupos ou outras entidades cujo bem-estar é uma grande preocupação; 2.Distribuição de autoridade entre governo e mercado, bem como entre os níveis de governo. 3.Método de financiamento 4.Participação da sociedade ( cidadão, especialistas e servidores públicos) Portaria n (1998) Decreto n (2006) Portaria n. 506 ( 2012) Ata da 16ª reunião ordinária do CNS (1992) Lima & Cavalcanti Filho ( 2007) Loyola ( 2008) Aspectos Secundários Decisões instrumentais pesquisa informações necessárias implementação núcleo político. e de à do Decisões relacionadas às normas administrativas e alocação orçamentária Portaria n (1998) Resolução CNS n. 338 (2004) Ata da 75ª reunião ordinária do CNS (1998) Susceptibilidade à mudança: moderadamente fácil. Este é o tópico mais administrativo e de formulação política. Fonte: Sabatier e Jenkins-Smith (1993; 1999) e Sabatier (1998) adaptado por Gurgel (2007). 3 Resultados e Discussão 3.1 O papel dos atores sociais na formação da agenda e na formulação da Política Nacional de Medicamentos Durante a fase de formação da agenda, de formulação e início da implementação da Política Nacional de Medicamentos, os representantes dos usuários no Conselho Nacional de Saúde (CNS) tiveram grande contribuição nas discussões, seguidos pelos representantes do governo e da comunidade científica. Apesar do papel de destaque dos usuários, os demais atores sociais juntos somaram quase 70% dos pronunciamentos sobre problemas levantados nas atas de reunião do CNS ( Fig. 1) usuários outros atores
5 Número de pronuciamentos >>Atas CIAIQ2017 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 Fig. 1. Evolução da participação dos usuários em comparação aos outros membros do Conselho Nacional de Saúde nas atas de reunião,no período de 1992 a 1999, sobre os problemas relacionados ao setor de medicamentos Houve maior destaque na participação dos representantes dos usuários, do governo e da comunidade científica nas reuniões do CNS nas fases da formação da agenda e da formulação da PNM (Fig.2). A participação dos empresários do setor farmacêutico (indústria e comércio) foi menos expressiva. Esse resultado foi semelhante ao estudo realizado por Machado (2013) que identificou os mesmos atores com maior envolvimento na formulação da PNM comunidade científica indústria farmacêutica usuário governo Legislativo Prestador de Serviço de Saúde Fig. 2. Pronunciamentos dos atores sociais presentes nas atas de reunião do CNS, conforme as categorias de problemas levantados relacionados ao setor de medicamentos no período de janeiro de 1992 a dezembro 1999 Em se tratando de uma política de cunho técnico era esperada a participação predominante da comunidade científica. No entanto, essa hipótese não foi confirmada, diferentemente dos estudos conduzidos por Souza & Secchi (2014), Dagnino & Dias (2007) e Dias (2011), com base no modelo de coalizão de defesa na análise da Política de Ciência e Tecnologia, que indicaram a comunidade científica, os burocratas e os empresários como atores de atuação destacada. Da mesma forma, Bora (2010) verificou a participação dominante da comunidade científica quando analisou uma política do campo da biotecnologia. Esse pesquisador observou a exclusão do discurso político em virtude da ciência e da lei estarem acoplados na forma de normatividade tecnocientífica. Nesse estudo, a lei e a ciência construíram uma forte aliança, excluindo da comunicação o discurso político. 3.2 Coalizões e sistema de crenças De acordo com Dias (2011), a comunidade de pesquisa deve ser colocadas como uma instituição que está envolvida com atividades científicas, tecnológicas e acadêmicas e, em geral, compartilham de valores, interesses, ideologias e práticas profissionais bastante próximas. Por esse motivo, a categoria dos representantes da Comunidade Científica e Sociedade civil englobou as categorias dos profissionais de saúde. A coalizão A, denominada de em prol da autonomia industrial na produção nacional de fármacos e medicamentos, foi constituída por representantes do governo, dos usuários e da Comunidade Científica que foram atores estáveis nessa coalizão (Quadro 1). A comunidade científica se posicionou, fortemente, em prol dos medicamentos genéricos. No entanto, durante a fase da implementação da política, a categoria dos profissionais médicos se posicionou contrária aos medicamentos genéricos (Loyola, 2008). A coalizão B, denominada de em prol da dependência tecnológica na produção de fármacos e medicamentos, foi estruturada a partir das crenças da 1481
6 indústria farmacêutica internacional, do comércio varejista de medicamentos e, durante a implementação da política, formou aliança com os profissionais médicos. Quadro 2 - Coalizões de Defesa e as crenças no subsistema da Política Nacional de Medicamentos Nome da Coalizão Coalizão A em Prol da autonomia industrial na produção nacional de fármacos e medicamentos Coalizão B em Prol da Dependência tecnológica na produção de fármacos e medicamentos Atores Usuários, Governo e Comunidade Científica. Indústria internacional, comércio varejista de medicamentos e a classe médica. Núcleo profundo -Deep core Núcleo político -Aspectos Centrais Aspectos Secundários Promoção da competitividade das indústrias nacionais e internacionais: Competitividade na fabricação de medicamentos e fármacos, redução do custo do medicamento, estimulo à fabricação, à comercialização e ao uso de medicamentos genéricos, pesquisa e produção nacional de medicamentos. 1. Flexibilização da lei de propriedade industrial sobre fármacos e medicamentos; 2. Fomento dos laboratórios públicos; 3. Parcerias com setor privado e os laboratórios públicos para transferência de tecnologias estratégicas para o SUS. 4. Cooperação entre o governo e as empresas privadas para desenvolver a capacidade produtiva nacional de medicamentos; 5. Estimular a capacidade produtiva, o desenvolvimento tecnológico e industrial por meio do poder de compra do Estado; 6. Forte participação de especialistas e baixo nível de participação da sociedade civil na seleção de medicamentos no âmbito do SUS. 1. Forte alocação de recursos para produção e aquisição de medicamentos essenciais; 2. Baixa importância para pesquisa, produção e o processo de incorporação de medicamentos inovadores no âmbito do SUS. Monopólio na produção e estímulo ao uso de medicamentos pela marca registrada (nome comercial). 1. Manutenção das atividades de pesquisa nos países desenvolvidos; 2. Práticas monopolistas e oligopolistas na oferta de ativos farmacológicos e medicamentos de determinadas classes terapêuticas; 3. Bloqueio da competitividade de preço por meio do mecanismo da propriedade intelectual de fármacos e medicamentos. 4. Atualização da RENAME no sentido de favorecer o processo de incorporação de medicamentos inovadores no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 5. Forte participação da sociedade civil na seleção de medicamentos no âmbito do SUS. 1. Alocação de recursos governamentais para aquisição de medicamentos para o Sistema Único de Saúde, especialmente para procedimentos de alta complexidade. O estudo de Araújo (2005) identificou que os partidos políticos de oposição, a Classe Médica e a Indústria Farmacêutica divergiram da Política Nacional de Medicamentos, confirmando o choque interno dentro da comunidade científica na Coalizão A no tocante à categoria dos profissionais médicos. O recurso para ganhar a opinião pública, que desestabilizou a Coalizão A, foi relatado na pesquisa Araújo (2005) por meio da carta da Federação Brasileira de Hospitais para o Ministro da Saúde, em 1999, a qual acusava a Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica (ABIFARMA) de deixar médicos e farmacêuticos dos hospitais confusos e inseguros quanto à qualidade dos 1482
7 medicamentos genéricos. Na referida carta, a ABIFARMA alertava a população e os profissionais de saúde sobre o risco do uso de genéricos e similares. 3.3 Principais trajetórias das mudanças da Política Nacional Medicamentos e os recursos das coalizões Em relação às principais trajetórias que ajudam a explicar a tendência a mudanças na Política Nacional de Medicamentos no período analisado, foram identificadas duas trajetórias: choque externo e choques internos. Os choques internos identificados foram provocados pela instabilidade da Coalisão A referente a uma categoria de profissionais, representante da comunidade científica ligada à classe médica, que, durante a fase da implementação da Política, posicionou-se contrária aos medicamentos genéricos. O choque interno da Coalizão A provocado pela Coalizão B com consequente mudança da política é corroborado pelas afirmações de Araújo (2005): as indústrias farmacêuticas exercem grande influência nas decisões políticas no mundo inteiro, uma vez que produzem insumos de grande interesse para todas as populações e, quanto à categoria médica: os médicos conformam-se como peças-chave, uma vez que estão diretamente ligados aos usuários do sistema de saúde, e são os principais prescritores de medicamentos. Em 2009, quase dez anos após o início da implementação da PNM, houve uma forte perturbação externa relacionada à mudança da opinião pública, principalmente em relação à alocação de recursos para o acesso a medicamentos inovadores. Essa perturbação foi evidenciada na Audiência Pública do Supremo Tribunal Federal sobre a judicialização das políticas de saúde e influenciou a trajetória da PNM. Em 2011, a Lei Federal n (2011) instituiu a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) que ficou obrigada a realizar consulta pública com divulgação do parecer emitido e, no caso de relevância da matéria, realizar audiência pública. Identificaram-se mudanças no núcleo político no tocante à participação da sociedade civil na seleção de medicamentos e no aspecto secundário referente à importância da alocação de recursos para pesquisa, produção e do processo de incorporação de medicamentos inovadores no âmbito do SUS. Essa mudança merece ser destacada visto que, em geral, os pacientes e a população têm tido um papel periférico no processo de incorporação e determinação das prioridades em Avaliação de Tecnologia em Saúde, bem como na utilização dos resultados dessas avaliações para estabelecer prioridades na atenção à saúde (Oliver, Mossialos, & Robinson 2004). Por outro lado, não foi identificada nenhuma modificação no subsistema de crença do núcleo profundo da Política Nacional de Medicamentos Nacional de Medicamentos ao longo de 14 anos. Os rumos da política foram modificados pela coalizão B com a utilização dos seguintes recursos: i) A participação de Policy Brokers (mediadores) que são atores com autoridade formal institucionalizada. Houve envolvimento de legisladores e, principalmente, dos magistrados devido ao fortalecimento do fenômeno da Judicialização das Políticas de Saúde. A participação do legislativo ficou evidenciada na tramitação da lei dos medicamentos genéricos durante a formulação da PNM e, quando o Ministro da Saúde retomou o projeto de lei do deputado Eduardo Jorge sobre os medicamentos genéricos. Nessa ocasião, o presidente da Abifarma afirmou que visitou cerca de cem gabinetes de deputados e senadores para convencê-los o projeto original era inadequado. Esse projeto foi aprovado, em 1999, com uma alteração: os medicamentos que ostentavam o nome comercial deveriam incluir também o nome genérico, cujo tamanho não podia ser inferior a 50% do nome de marca (Loyola, 2008). ii) Ganhar a opinião pública, como suporte à coalizão, por meio de reportagens jornalísticas. A intensa campanha das indústrias farmacêuticas multinacionais para influenciar os médicos e desestimular a população a procurar os medicamentos pelo princípio ativo foi veiculada na mídia. Durante o processo de tramitação da lei dos genéricos, ocorreu uma forte mobilização da indústria multinacional para influenciar a opinião pública. A Abifarma, em artigo publicado no Jornal do Brasil, 1483
8 alertava a sociedade e os segmentos envolvidos no assunto do perigo que seria, para o Brasil, instituir o remédio de segunda classe. Segundo a Abifarma, o governo brasileiro deveria convocar as empresas farmacêuticas multinacionais para colaborar a fim de tornar os medicamentos, os quais são caros em todo mundo, acessíveis por intermédio do SUS aos cidadãos que não poderiam pagar por esses produtos (Loyola, 2008). 4 Conclusões Houve um amplo processo de discussão com todos os setores nacionais e atores sociais interessados, incluindo profissionais de saúde, indústria farmacêutica nacional e internacional, instituições acadêmicas, organizações não governamentais e associações de profissionais e de usuários na fase de formação da agenda e formulação da Política Nacional de Medicamentos. No entanto, durante as negociações predominaram os interesses do governo que foram evidenciados tanto na mobilização das coalizões quanto no núcleo profundo do subsistema da referida política. A partir da análise dos resultados da presente pesquisa, conclui-se que os interesses dos representantes do governo prevaleceram na formulação da Política Nacional de Medicamentos. Por outro lado, houve uma baixa inclusão dos interesses da indústria farmacêutica multinacional na fase de formulação da Política Nacional de Medicamentos. Do rol de quinze hipóteses do modelo de coalizões de defesa, conforme Weible et al. (2009), este estudo confirmou as seguintes: Hipótese 2: Quando há grandes controvérsias dentro de um subsistema, em que as crenças centrais estão em disputa, a linha de separação entre aliados e oponentes tende a ser bastante estável por um período de uma década ou mais. Hipótese 7: Atores dentro de uma coalizão mostrarão consenso sobre problemas pertinentes aos valores centrais (policy core), embora menos nos aspectos secundários. Nem todos os membros de uma coalizão compartilham do mesmo e preciso sistema de crenças. Os resultados das análises, a partir desse modelo, indicaram que as mudanças ocorridas na PNM estavam relacionadas ao acesso a medicamentos inovadores no âmbito do SUS. Nesse sentido, ressalta-se que a trajetória de aprendizagem orientada pela política pública pode, em pesquisas futuras, se destacar perante as demais em virtude da criação dos Comitês Executivos Estaduais e os Núcleos de Assessoria Técnica para subsidiar tecnicamente as decisões dos magistrados a partir de A participação dos membros da comunidade científica é crucial considerando que sempre estiveram de alguma forma, vinculados e próximos das esferas decisórias do governo na coalizão A. É importante enfatizar que o modelo teórico Coalizão de Defesa, vem sendo aplicado em vários países da Europa, da África, da Ásia, da América do Norte e do Sul, bem como na Austrália para analisar mudanças nas políticas socioeconômicas com foco na saúde e no meio ambiente (Weible, Sabatier, Jenkins-Smith, Nohrstedt, Henry, & deleon., 2011). Contudo, esta é a primeira pesquisa realizada no âmbito de Políticas Farmacêuticas. Por fim, o enfoque de pesquisa qualitativa se revelou essencial no que diz respeito à identificação das necessidades, dos valores e do papel do cidadão no campo da atenção integral à saúde. A participação dos usuários em um sistema de saúde universal é cada vez mais necessária e complexa, particularmente no que se refere à definição de prioridades para a alocação dos recursos financeiros e à tomada de decisões sobre a farmacoterapia custo-efetiva. Referências Araújo, E. F.(2005). Análise da Política Nacional de Medicamentos no Brasil, 1999 a 2002: o caso dos medicamentos Genéricos Dissertação de Mestrado, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/ Fundação Oswaldo Cruz, Recife,Pernambuco, Brasil. Bora, A. (2010).Technoscientific Normativity and the Iron Cage of Law. Science, Technology & Human Values, 35,
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