PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Transcrição

1 fls. 1 ACÓRDÃO Registro: Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº , da Comarca de São Paulo, em que é paciente CAIO CESAR DE PAULO e Impetrante LUIZ AUGUSTO SARTORI DE CASTRO. ACORDAM, em 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "por votação unânime, convalidada a liminar, concederam EM PARTE a ordem para, reconhecida a inépcia da denúncia, anular o despacho que a recebeu, sem prejuízo de que outra seja formulada.", de conformidade com o voto da Relatora, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO ROSSI (Presidente) e BRENO GUIMARÃES. São Paulo, 19 de fevereiro de Angélica de Almeida Relatora Assinatura Eletrônica

2 fls. 2 Voto Habeas Corpus n São Paulo Processo n ª Vara Criminal Impetrante - Luiz Augusto Sartori de Castro Paciente - Caio Cesar de Paulo O ilustre advogado Luiz Augusto Sartori de Castro, apontando como autoridade coatora o(ª) MM(ª) Juiz(ª) da 20ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo, impetra o presente habeas corpus, em favor de Caio Cesar de Paulo, visando seja decretada a nulidade do feito, em face da inépcia da denúncia, posto que deixou de observar o artigo 41, do Código de Processo Penal, eis que a descrição dos fatos não indica a conduta praticada pelo paciente, não podendo o ato de ladear o corréu Willian, representar participação na subtração do numerário. Aduz que, se crime houve, configura furto qualificado, de modo a caracterizar o excesso de acusação, devendo, em decorrência do princípio da fragmentariedade, ser reconhecida a atipicidade da conduta, em virtude do princípio da insignificância e, em consequência, determinado o trancamento da ação penal. Postula, em liminar, a suspensão do andamento do feito até o julgamento final da presente impetração (fls. 2/31). Acompanham os documentos de fls. 32/136. Concedida a liminar (fls. 139/140), a autoridade judicial impetrada prestou informações (fls. 143), acompanhadas da documentação de fls. 144/150. Habeas Corpus nº

3 fls. 3 denegação da ordem (fls. 152/156). A d. Procuradoria Geral de Justiça opina pela É o relatório. A denúncia formulada contra o paciente Caio Cesar de Paulo e corréu Willian Saraceni Marinho está consignada nos seguintes termos: Consta dos inclusos autos de inquérito policial que, por volta de 02:00 horas, dia 10 de março de 2013, na Avenida Luís Dumont Vilares, nº 700, nesta cidade e Comarca, mediante grave ameaça que reduziu a Vítima à impossibilidade de resistência, WILLIAN SARRACENI MARINHO e CAIO CESAR DE PAULO, qualificados, respectivamente às fls. 23 e 16, subtraíram, para eles, R$ 60,00 (sessenta reais) apreendidos (fls. 14), pertencentes a MIKOLAS TORCZYNOWSKI. É dos autos que os indiciados concertaram-se para a prática de delito de furto, e ao ensejo, perceberam onde a vítima deixara as quantias. Sempre ladeado por Caio, Willian arrebatou as quantias, quando então percebeu que sua ação foi notada pela Vítima, que solicitou a ambos a restituição. Nesse momento, ambos de forma agressiva e acintosa dirigiram-se à Vítima e passaram a ameaça-la de agressão e disseram: Nós somos do crime, saia daqui imediatamente, e aqui é ladrão (sic, fls. 06). De posse das quantias e reduzida a Vítima à impossibilidade de resistência, deixaram o local, levando consigo as quantias. Policiais instados a intervirem passaram a fazer buscas, logrando divisar o par criminoso ingressando em outro Bar, quando então só detiveram, apreendendo as quantias. Habeas Corpus nº

4 fls. 4 Assim, denuncio-os a Vossa Excelência como incursos nas penas do artigo 157, 1º e 2º, inciso II, na forma do artigo 29 ambos do Código Penal e requeiro que registrada, autuada e recebida esta, seja o Denunciado citado para se ver processar nos termos dos artigos 394 e seguintes do Código de Processo Penal, ouvindo-se, oportunamente, a Vítima e as testemunhas do rol abaixo, prosseguindo-se o feito até condenação (fls. 33/35). A denúncia, embora deva primar pela concisão, há que descrever o fato criminoso com todas as suas circunstâncias, deve conter a exposição clara e precisa de um fato criminoso, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quilus auxilius), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira por que a praticou (quamodo), o lugar onde praticou (ubi), o tempo (quando) (João Mendes Jr). (Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho. As Nulidades no Processo Penal. Malheiros Editores, 1992, p. 78). Daí observar Antonio Scarance Fernandes que o fato da investigação da denúncia ou queixa é um acontecimento histórico, um trecho da realidade, um momento de uma continua e incessante evolução, e que, por se amoldar a um tipo penal, é destacado e trazido ao processo. O principal parâmetro para se verificar o que deva ser transposto da realidade para o processo é a composição do tipo. É necessário, assim, realizar um corte no espaço e no tempo e descobrir as circunstâncias necessárias para identificar uma infração penal, transpondo para o processo os dados que, reunidos, configuram, segundo prévia descrição narrativa, crime ou contravenção (Reação Defensiva à Imputação, SP:RT, 2002, p. 180). Habeas Corpus nº

5 fls. 5 No caso presente, a determinação do tempo e lugar da ação delituosa, assim como, a individualização da própria conduta mostra-se de fundamental importância. Há necessidade imperiosa de que a imputação venha descrita de forma detalhada a fim de propiciar o exercício da ampla defesa, princípio constitucional assegurado pela Lei Maior. Nesse sentido o posicionamento da doutrina a respeito do tema: O art. 41 do Código de Processo Penal determina que a inicial postulatória, denúncia ou queixa, conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias. A finalidade dessa exigência acha-se inscrita nos arts. 394 e 395 do mesmo Código de Processo Penal: realizar a plenitude de defesa, mediante ciência tempestiva ao acusado dos exatos termos da acusação. É por isso que o juiz, 'ao receber a queixa ou denúncia, designará dia e hora para o interrogatório (tempestividade), ordenando a citação do réu (ciência) e que o 'réu ou seu defensor poderá, logo após o interrogatório ou no prazo de três dias, oferecer alegações escritas'. Nenhum processo penal pode se iniciar sem que o acusado tenha liminar conhecimento 'do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias', fato esse que constitui o conteúdo da acusação. (Joaquim Canuto Mendes de Almeida, : O princípio da verdade real.. In: Revista da Faculdade de Direito da USP, v. LII, 1957, p , apud Benedito Roberto Garcia Pozzer - Correlação entre Acusação e Sentença no Processo Penal Brasileiro, SP:IBCCRIM, 2001, p. 108). Habeas Corpus nº

6 fls. 6 A adoção do sistema processual acusatório, com distinção das funções de acusador e julgador, implica vinculação deste aos fatos acusados por aquele, vale dizer, o juiz só poderá conhecer e julgar fatos acusados - ainda que outros tenham sido provados, durante a fase de instrução, mas que não tenham sido objeto da acusação, nem da defesa -, o que exige explicitude na exposição, para que nenhuma dubiedade provoque dúvidas, quanto à imputação objetiva ou subjetiva. (...) Da fórmula contida no Código de Processo Penal, artigo 41, de exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, verifica-se que a denúncia ou queixa deverá conter o fato processual e o penal, vale dizer, a completa narração do acontecimento naturalístico (concreto) e sua perfeita subsunção a todos os elementos do tipo penal (abstrato), para que não ocorra inépcia técnica, por ofensa às regras da ampla defesa e do contraditório. (Benedito Roberto Garcia Pozzer, Correlação entre Acusação e Sentença no Processo Penal Brasileiro, SP:IBCCRIM, 2001, p. 109, 111). Para haver imputação em sentido estrito, é necessário um ato processual que narre o fato atribuído à pessoa acusada. Esse ato é a denúncia ou a queixa e nele o fato deve estar identificado em seus elementos típicos e individualizado como evento histórico, situado no tempo e no espaço. 1 É para essa finalidade de identificação e individualização do fato que o Código de Processo Penal, em seu art. 41, exige, na denúncia ou queixa, a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Tal exposição é fundamental para a reação do acusado, levando a, com exagero, afirmar-se que para a defesa interessa exclusivamente o fato narrado. (...) ausentes o fato da investigação da denúncia ou queixa é um acontecimento histórico, um trecho da realidade, um momento de uma contínua e incessante evolução, e que, por se amoldar a um tipo penal, é destacado e trazido ao processo. O principal parâmetro para se verificar o que deve ser transposto da realidade para o processo é a composição do tipo. É necessário, assim, realizar um corte no espaço e no tempo e descobrir as circunstâncias necessárias para Habeas Corpus nº

7 fls. 7 identificar uma infração penal, transportando para o processo os dados que, reunidos, configuram, segundo prévia descrição normativa, crime ou contravenção. Não bastam os elementos do fato típico. São essenciais, mas não suficientes. O fato narrado na denúncia, por ser um fato de natureza, concreto, deve estar plenamente identificado como acontecimento histórico por circunstâncias que o delimitem no tempo e no espaço e, assim, o distingam de outro evento naturalístico. O acusado precisa saber, com precisão, qual o fato a ele imputado e não correr o risco de ser condenado por fato diferente daquele da acusação (Antonio Scarance Fernandes, A Reação Defensiva à Imputação, SP:RT, 2002, p ). Basta comparar a moldura dos fatos, estampada no boletim de ocorrência e reproduzida pelas declarações da vítima e depoimento das testemunhas, para verificar que a denúncia formulada contra o ora paciente não atende aos requisitos previstos no artigo 41, do Código de Processo Penal. Assim é que consta do histórico do boletim de ocorrência em questão: a vítima foi abordada pelos dois indiciados, qualificados nas dependências de um estabelecimento comercial nas proximidade do local dos fatos (Av. Luis Dumont Vilares X Rua Tenente Agenor Soares) na mesma circunscrição policial, ocasião que, mediante ameaças de agressão teve subtraída certa quantia de dinheiro, salientando que os dois referidos se evadiram do local. Informa que, a partir dos esclarecimentos da vítima passaram a empreender diligencias nas proximidades, ocasião em que no supra mencionado, avistaram os dois indiciados adentrando um outro estabelecimento (Bar Adega) razão pela qual, após breve perseguição conseguiram abordá-los, ratificando que tanto a vítima quanto as testemunhas reconheceram, sem sombra de dúvidas, os dois indiciados qualificados, razão pela qual deram voz de prisão e os conduziram à esta Distrital (fls. 48). Habeas Corpus nº

8 fls. 8 Verte das declarações prestadas pela vítima Mikolas Torczynowski que por volta das 00h30m, se encontrava nas dependências de um estabelecimento comercial, tipo bar, à Avenida Luis Dumont, esquina com Rua Tenente Agenor Soares e que, logo em seguida, percebeu o momento em que o indiciado WILLIAN SARACENI MARINHO, em gesto rápido, subtraiu dinheiro de sua carteira, fato que percebeu imediatamente, salientando que ao retrucar e solicitar a devolução dessa quantia, passou a ser ameaçado de agressão física pelo tal WILLIAN, bem como pelo tal indivíduo que o acompanhava e claramente agia em conluio, o indiciado CAIO CESAR DE PAULA, salientando que os referidos, além de ameaças de agressão, proferiram palavras como: Nós somos do crime... sic...,... saia daqui imediatamente sic..., aqui é ladrão...sic...,... Nós vamos acabar com você...sic Informa que saiu do local e acionou a Polícia Militar e que, momentos depois os policiais conseguiram localizar os dois indiciados adentrando um outro estabelecimento naquelas proximidades (fls. 42). Ao depoimento da testemunha Katia, em linhas gerais, retrata os fatos de maneira semelhante. O artigo 395, do Código de Processo Penal estabelece que a denúncia ou queixa será rejeitada quando for manifestamente inepta (I); faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal (II); faltar justa causa para o exercício da ação penal (III) No caso presente, caracterizada está a inépcia da denúncia, posto que a descrição dos fatos, na denúncia, não encontra ressonância com os elementos de convicção do auto de prisão em flagrante, como deve ocorrer. Habeas Corpus nº

9 fls. 9 Daí o teor da liminar concedida por esta relatora, consignada nos seguintes termos: Os dados indiciários recolhidos, no auto de prisão em flagrante, notadamente, as declarações da vítima, revelam agir, sem especificar de modo concreto a conduta atribuída a cada um dos agentes. O teor do depoimento da testemunha presencial reproduz com idênticos termos os fatos, sem que tenha sido indicado a quem possa ser atribuído as expressões enunciadas para, em tese, assegurar a posse do numerário. Perplexidade pela qual não passou incólume a própria denúncia, ao deixar expressamente consignado: é dos autos que os indiciados concertaram-se para a prática de delito de furto, e ao ensejo, perceberam onde a vítima deixara as quantias, embora tenha capitulado a conduta como a configurar o delito de roubo impróprio. Em face de tal situação, diante da possibilidade de dano irreparável, caso se efetive a audiência de instrução, debates e julgamento, melhor solução se apresenta o sobrestamento do feito até o julgamento do presente writ. Defere-se assim a liminar para sobrestar o processo n , da 20ª Vara Criminal da Comarca da Capital, até o julgamento do presente writ, sustada a realização da audiência designada para o dia 14 de agosto do corrente ano. Comunique-se com urgência. Segundo se extrai, os atos imputados ao ora paciente teriam ocorrido, no interior de estabelecimento comercial, circunstância diversa daquela apontada pela denúncia formulada contra o paciente. A correta imputação dos fatos, na denúncia, na realidade propicia o exercício da garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório. Habeas Corpus nº

10 fls. 10 É necessário que o acusado tenha conhecimento dos fatos que lhe são imputados, não bastando que os elementos indiciários possam eventualmente representar substrato para a denúncia. Necessário se faz exposição do fato delituoso em todas as suas circunstâncias, inclusive o desenrolar dos fatos em todas as circunstâncias, tendo como base os elementos idôneos previamente recolhidos, na fase da investigação policial. A persecução penal, mediante recebimento da denúncia, atinge o status libertatis a exigir instauração da ação penal, mediante a descrição da conduta delituosa em todas as suas circunstâncias. Entretanto, não se trata de hipótese de trancamento da ação penal. Reconhecida a inépcia da denúncia, anula-se o r. despacho, que a recebeu, sem prejuízo de que outra possa ser oferecida. A participação ou não do paciente, nos fatos em questão, por certo, não pode ser matéria apreciada, em habeas corpus, nem mesmo, desde logo, ser desclassificada para o delito de furto qualificado. Menos ainda, o reconhecimento da atipicidade da conduta, em virtude do princípio da insignificância, mostra-se viável. Habeas Corpus nº

11 fls. 11 Diante do exposto, por votação unânime, convalidada a liminar, concederam em parte a ordem para, reconhecida a inépcia da denúncia, anular o despacho que a recebeu, sem prejuízo de que outra seja formulada. desª. Angélica de Almeida relatora Habeas Corpus nº