MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Transcrição

1 Nº HC/DD/69/15 HABEAS CORPUS Nº /MG IMPETRANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO COATOR : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA PACIENTE : WELTON DE NOVAES LOPES RELATOR : MINISTRO CELSO DE MELLO acórdão assim ementado: Ementa. Habeas corpus. Furto. Princípio da insignificância. Impossibilidade. Extensa ficha criminal do réu em crimes contra o patrimônio. Reincidente específico. Regime inicial de cumprimento de pena mais gravoso. Circunstâncias judiciais favoráveis. Penabase no mínimo legal. Incongruência. Parecer pela concessão parcial da ordem. Trata-se de habeas corpus impetrado contra PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. FURTO. VALOR DO BEM SUPERIOR A 10% DO SALÁRIO MÍNIMO. REINCIDÊNCIA ESPECÍFICA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Sedimentou-se a orientação jurisprudencial no sentido de que a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. 2. A reiteração delitiva tem sido compreendida como obstáculo inicial à tese da insignificância, ressalvada excepcional peculiaridade do caso penal.

2 3. Não sendo módico o valor dos bens que se pretendia furtar, mais de 26% (vinte e seis por cento) do salário mínimo vigente à época dos fatos, e sendo o acusado reincidente específico, não é caso de admitir-se a insignificância de sua conduta. 4. Não há bis in idem na utilização da reincidência concomitantemente para afastar a incidência do princípio da insignificância, majorar a pena e fixar o regime mais gravoso. Tese que constitui vedada inovação recursal. 5. Agravo regimental improvido. O paciente foi condenado pelo juízo de 1º grau à pena de 1 ano e 4 meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, por infração ao art. 155, caput, do CP, visto que no dia 29 de dezembro de 2005, por volta das 8h35min, no interior do bar, pertencente a Antônio José Carlos Alves, localizado na Rua Governador Benedito Valadares, nº 1.135, Bairro Cavaco, Rio Preto/MG, subtraiu, para si, um aparelho de som da marca CCE, 3x1, digital tuner, MD 300, mini system; 3 CDs, duas caixas de som da marca gradiente; 04 DVDs ( ); três pacotes de cigarros ( ) e um capacete da marca Samarino, de cor preta, todos pertencentes à vítima. O aparelho de som foi avaliado em R$ 80,00 e os demais objetos subtraídos em R$ 90,00, alcançando, assim, a res furtiva o valor de R$ 170,00. Interposta apelação criminal, o TJMG a ela negou provimento, o que deu ensejo a recurso especial, que teve o seguimento negado pelo relator. Houve então agravo regimental, cuja conclusão ora se ataca. A impetrante sustenta basicamente ser caso de aplicação do princípio da insignificância, diante da irrelevância do valor da res furtiva. Além disso, alega que a reincidência não pode ser invocada para afastar o referido princípio e que a conduta praticada pelo réu não afetou o patrimônio da vítima, uma vez que o bem foi restituído. Sucessivamente, requer a modificação do regime inicial para o aberto, visto que a consideração da reincidência, tanto para afastar o princípio da insignificância, quanto para impor regime mais gravoso do que a pena permite, viola o princípio do ne bis in idem. 2

3 A primeira questão que demanda análise é a pertinente à ausência de tipicidade da conduta que importa em lesão de pouca monta ao bem jurídico tutelado. Tipo é o modelo legal do comportamento proibido, compreendendo o conjunto das características objetivas e subjetivas do fato punível 1. Assim sendo, há tipicidade quando o fato se ajusta às características objetivas e subjetivas do modelo legal, conceitualmente formulado. No caso do furto (art. 155, CP), o tipo consiste em subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. Desse modo, a só realização dos elementos objetivos e subjetivos ali contemplados enseja a tipicidade, sendo-lhe estranha qualquer noção quanto ao prejuízo suportado pela vítima. Não se nega que o resultado também integre o tipo. Sendo o crime um desvalor da vida social, porque constitui um dano ou perigo de dano a um bem juridicamente tutelado, tem-se como consequência que esse bem ao qual o Direito Penal empresta proteção especial está sempre presente na estrutura de qualquer tipo penal. Se assim o é, o resultado - normativamente considerado, e não em sua acepção naturalística - também integra o tipo, que tem como pressuposto - repita-se - conduta que provoque dano ou perigo ao bem tutelado. Somente em se dando o resultado normativamente previsto é que se tipifica a conduta. No entanto, a ocorrência do dano - e, portanto, do resultado - ao lado dos demais elementos que integram o tipo, importa em 1 Fragoso, Heleno. Lições de Direito Penal - A Nova Parte Geral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p

4 tipicidade, independentemente da extensão desse dano, não considerada, em qualquer momento, na formulação abstrata do modelo legal. Em havendo dano apurável, pois, típica é a conduta que realiza o modelo. Dessa forma, a conclusão quanto à ausência de tipicidade pela pouca monta do dano conduz, na hipótese sob exame, em negativa de vigência ao artigo 155 do CP. Isso não importa concluir, todavia, que a insignificância da lesão não tenha qualquer relevância no tocante à punibilidade, ou seja, que essa circunstância não autorizaria a não imposição da sanção prevista em decorrência da realização da figura típica. Na verdade, o princípio da insignificância, como vem sendo adotado pela jurisprudência pátria, repercute na culpabilidade. Dispõe o artigo 29 do CP que quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. A moderna doutrina penal inclina-se, hoje, por uma versão normativa da culpabilidade, ligada à reprovabilidade da conduta. Daí por que se tem afirmado que a culpabilidade, na dogmática moderna, tem uma evidente vocação de corretivo da pena, constituindo-se em um meio imprescindível, em um Estado de direito, para limitar a potestade penal estatal. Não resta dúvida, por outro lado, de que a culpabilidade - dentre os elementos do injusto aquele em que o matiz axiológico mais se evidencia - vocaciona-se a enfrentar o conflito de valores que se estabelece por ocasião da aplicação da pena: a liberdade em contraposição à segurança e à defesa social. E é dentro dessa perspectiva que se insere o princípio da bagatela. A consideração de que a conduta, pela insignificância 4

5 do dano perpetrado, não estaria a sofrer repúdio social autorizaria a não aplicação da sanção. Tal perspectiva também é que permite se decida pela incidência ou não do princípio em face, por exemplo, de reiteração delitiva, elemento que em nada altera a tipicidade penal. Por outro lado, a constatação, como bem assinalado por Gonzalo Fernández 2, de que a pretendida igualdade das pessoas perante a lei; a eficácia dissuasória da pena e suas possibilidades como fator de reinserção social são princípios absolutamente desvirtuados pela realidade de um sistema penal de enorme violência seletiva, que funciona como mecanismo reprodutor da marginalidade social, torna imperativo reservar a pena privativa de liberdade a situações de maior gravidade. No caso, o STJ afastou a tese da insignificância com base no histórico criminal do réu e no valor da res furtiva. De fato, a sua extensa ficha criminal aponta diversas condenações por furto, inclusive duas com trânsito em julgado (autos nº e ), demonstrando ser o mesmo reincidente específico e contumaz na prática de crimes contra o patrimônio. Nesse quadro, não parece razoável e proporcional admitir a incidência do referido princípio. Em relação ao pleito sucessivo, observa-se que o magistrado fixou o regime inicial semiaberto em decorrência da quantidade de pena fixada e das circunstâncias judiciais. Todavia, na dosimetria da pena, assim se manifestou: Passo à dosimetria da pena, nos termos dos arts. 59 e 68 do Código Penal Brasileiro, fazendo-o fundamentadamente para que se cumpra a exigência do artigo 93, IX, da Constituição da República. A culpabilidade, entendida como juízo de censurabilidade sobre a conduta do réu, é aquela ínsita ao crime; o réu possui antecedentes criminais, além daquele considerado para fins de reincidência; não há elementos nos autos que permitam a valoração 2 Culpabilidad y Teoría del Delito, vol. I. Montevidéu: Julio César Faira Editor, 1995, p

6 negativa de sua personalidade; os motivos confundemse com o elemento subjetivo do tipo; não existem circunstâncias relevantes; não ficou comprovada a existência de qualquer consequência além daquelas comuns ao tipo; o comportamento da vítima em nada contribuiu para a consecução do delito. Considerando que as circunstâncias judiciais acima são favoráveis à ré, fixo a pena-base em 1 (um) ano de reclusão e 10 (dez) dias-multa, também levando em consideração, quanto à última, a menor gravidade do delito. Na segunda fase de aplicação das penas, verifico a existência da circunstância agravante da reincidência (artigo 61, inciso 1,do CPB), razão pela qual agravo a pena em 4 (quatro) meses de reclusão e 5 (cinco) diasmulta. Não havendo atenuantes a serem consideradas, causas de aumento ou de diminuição de pena, fico a pena em definitivo em 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de reclusão e 15 (quinze) dias-multa. Como se vê, o quantum da pena não é suficiente para justificar o regime inicial semiaberto e, muito menos, as circunstâncias judiciais, que foram todas consideradas em benefício do réu. Dessa forma, estabelecida a pena base no mínimo legal por conta de todas as circunstâncias judiciais serem favoráveis, haveria incongruência na imposição de regime mais gravoso para início de cumprimento da pena. A propósito: Habeas corpus. 2. Roubo majorado pelo emprego de arma de fogo e pelo concurso de agentes (art. 157, 2º, incisos I e II do CP). Condenação. Regime inicial fechado. 3. Pedido de fixação de regime semiaberto. Possibilidade: primariedade do agente; circunstâncias judiciais favoráveis (pena-base fixada no mínimo legal); e fundamentação inadequada (gravidade in abstrato do delito). 4. A jurisprudência do STF consolidou o entendimento segundo o qual a hediondez ou a gravidade abstrata do delito não obriga, por si só, o regime prisional mais gravoso, pois o juízo, em atenção aos princípios constitucionais da individualização da pena e da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, deve motivar o regime imposto observando a singularidade do caso concreto. 5. Aplicação das Súmulas 718 e Decisão monocrática do STJ. Ausência de interposição de agravo regimental. Writ não conhecido. Ordem concedida de ofício para fixar o regime semiaberto para o início do cumprimento da pena. (HC , Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, 6

7 ordem, nos termos acima assinalados. julgado em 29/04/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe- 091 DIVULG PUBLIC ) Assim, o parecer é pela concessão parcial da Brasília, 10 de fevereiro de Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira Subprocuradora-Geral da República 7