Para Viver e Para Lembrar. por Cintia Henriques

Transcrição

1 Para Viver e Para Lembrar por Cintia Henriques 1

2 Personagens Bianca: 27 anos, formada em Artes Visuais. Branca, estatura mediana, cabelos castanhos e compridos, olhos claros. David: 29 anos, na época de sua morte, que aconteceu há seis meses. Também era formado em Artes Visuais. Pele morena, cabelos castanhos encaracolados, não muito compridos. Alto e magro. Pedro: Responsável pelo guarda-volume do museu. 20 anos, magro, alto, branco Carol: Responsável pelo atendimento ao público na recepção do museu. 35 anos, baixa, branca, cabelos loiros e um pouco acima do peso. 2

3 Cena 1 - Int./Dia Quarto de Bianca Um quarto simples. Uma cama de casal, um guarda-roupa e uma cômoda. Bianca está deitada, dormindo. Há uma lágrima parada em seu rosto. Um terninho está pendurado na porta do guardaroupa, em um cabide. O despertador do celular toca. Ela acorda, desliga o despertador, e passa as mãos pelo rosto. Estica a mão sobre o travesseiro ao lado. Não há ninguém lá. Levanta-se lentamente. Tem olheiras profundas. Vai até o guarda-roupa e pega o cabide com o terninho. Olha-a atentamente, refletindo, e joga-o sobre a cama. Pega a agenda na bolsa que está no criado mudo e abre. Há uma foto no meio. Ela observa a foto. Fecha a agenda e guarda novamente na bolsa. Abre o guarda-roupa e escolhe outra roupa. Cena 2 Ext./Dia Saída do Metrô / Entrada da Pinacoteca do Estado de São Paulo Bianca saí do metrô. Ela usa uma calça jeans, uma camiseta e uma jaqueta, com a bolsa pendurada no ombro. Cai uma garoa fina. Ela abre o guarda-chuva. Para na calçada e observa a entrada o Museu. Fica por um tempo observando. Olha para os lados e atravessa a rua. Passa pelo portão e sobe a escadaria do museu. Cena 3 Int./Dia Entrada da Pinacoteca Bianca para em frente ao guarda-volume. PEDRO Bom dia, Bianca. (parecendo surpreso com a presença dela) Bom dia. Ela entrega o guarda-chuva para o rapaz. 3

4 PEDRO Fazia tempo que você não aparecia por aqui. É, as coisas ficaram um pouco complicadas pra mim. PEDRO Eu imagino. Mas, já que está aqui, boa visita. Obrigada. Ela se vira e vai até a bilheteria. Uma entrada, por favor. A moça lhe entrega a entrada. Ela paga e entra no museu. Cena 4 - Int./Dia - Saguão da Pinacoteca Bianca vai até o balcão e observa os panfletos. A recepcionista lhe observa. CAROL Como vai, Bia? Melhorando. A vida continua, não é?! CAROL Sempre. Carol sorri e Bianca retribui com um sorriso triste. Bianca pega um dos panfletos e se afasta da recepção. 4

5 Cena 5 - Int./Dia - Corredor da Pinacoteca Bianca desce do elevador e observa as esculturas no corredor. Passa a mão por cima de uma, sem encostar, seguindo os contornos da obra. Em seguida, entra em uma das salas do segundo andar. Cena 6 - Int./Dia - Sala de Exposição Fixa Bianca está sentada em uma dos bancos da sala, observando o quadro Retrato de Moça, de Almeida Júnior. Um homem se aproxima, mas não é possível ver o seu rosto. Sempre me perguntei o que será que ela está pensando? Parece tão concentrada. (Bianca respira profundamente e fecha os olhos por um segundo) Acho que ela está pensando no homem que ama, no que o futuro reserva para eles. Se ele vai aparecer para vê-la, se os sentimentos dele são reais, se os sentimentos dela são reais, se algo terrível vai acontecer para separar os dois... Quantas preocupações para uma pessoa só. (faz uma pausa, como se estivesse refletindo enquanto olha para o quadro) Ela parece um pouco com você. (sorrindo, tristemente) Já me disseram isso. Você vem sempre aqui? 5

6 Até parece uma cantada barata. (segurando o riso) Nós costumávamos vir aqui sempre aos sábados. Por que a entrada é de graça aos sábados? (rindo) Não...(abrindo um pequeno sorriso) Não só por isso. Eu sempre gostei de ver o movimento por aqui. É sempre cheio de gente, crianças aprendendo com a arte, impressionadas com a sensação de realidade que alguns quadros transmitem. Então porque você veio hoje? Não é sábado. Porque era algo que eu precisava fazer. Bianca caminha para fora da sala. O homem a segue a certa distância. Ainda não podemos ver o seu rosto. CENA 8 - Int./Dia - Outra sala de exibição Bianca entra sozinha em outra sala de exibição. Olha os quadros expostos e senta-se em um dos bancos. O homem senta-se ao seu lado logo em seguida. O que eu mais gosto daqui é a possibilidade de me imaginar vivendo outras vidas. (Ela aponta um dos quadros de paisagem, onde há uma praia) Quem não gostaria de morar num lugar como esse. Parece tão real que por muito pouco não consigo ouvir o barulho das ondas batendo na praia e os pássaros cantando. É a mesma sensação que eu tenho ao assistir um filme ou seriado 6

7 que gosto muito, ou ler um dos meus livros favoritos. A vontade de viver aquilo, uma vida que está fora do meu alcance, mas que parece tão melhor do que a minha própria vida. Mas isso só é bom por um tempo. Logo a vida real lhe alcança e não há para onde fugir. (Bianca abre um sorriso triste) Você finalmente entende como eu meu sinto. Bianca se afasta e sai da sala. O homem já não está mais lá. CENA 7 - Int./Dia - Outra sala de exibição Bianca entra em outra sala de exibição. O mesmo homem já está lá, mas ainda não podemos ver seu rosto. Ele observa o quadro Crianças, de Ernest Papf (1886). Ela para ao seu lado, se olhar diretamente para ele. Essas crianças sempre me fascinaram. É como se elas estivessem vigiando todos os movimentos daqueles que passam por aqui. Elas parecem querer sair da tela. Como se quisessem viver neste mundo que elas só conhecem através dessa janela. Se elas ao menos soubessem que viver por aqui nem sempre é fácil. Há muitas coisas boas, mas nem tudo é alegria. 7

8 Você não parece estar de bem com a vida. Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar? Eu gostaria, mas, não acho que você possa me ajudar. Não agora. (Bianca suspira e olha ao redor. A sala está vazia com exceção da monitora, que se encontra na entrada da sala) Na verdade, eu só vim até aqui hoje para dizer adeus. (ainda sem olhar para ele) Como assim? (confuso, aumentando um pouco o tom de voz, mas continua olhando para o quadro) Do que é que você está falando? Foi aqui que eu conheci o amor da minha vida. (Bianca se aproxima do quadro e passa a mão pela placa de identificação) Ele estava fazendo um trabalho para a faculdade e eu estava em uma excursão da escola. Foi aqui que trabalhamos juntos e foi aqui que ele pediu minha mão em casamento. E também foi aqui que nos encontramos pela última vez. Mas agora ele se foi. Um estúpido acidente o tirou de mim. E se ele não tiver partido de verdade? E se, apesar disso, ele pudesse ficar para sempre com você? E se houvesse um jeito? (Ela finalmente se vira para encarar o homem. Faz menção de tocar nele, mas desiste e afasta a mão. Ainda não podemos ver o seu rosto) Mas não há. Pelo menos não nesta vida. 8

9 E se houvesse um jeito? (desesperado, já desanimando. Ele estende a mão para ela) Você mesmo disse que a realidade sempre nos alcança. Algumas coisas são para ser vividas, outras são apenas para serem lembradas. Tudo o que me restou foram as lembranças. E ninguém pode viver apenas de lembranças. Se isso fosse possível, haveria pessoas morando em museus. Vim aqui para me despedir. Sei que sempre que eu quiser, posso voltar aqui pra me lembrar. E isso precisa ser o suficiente agora. Bianca abre a bolsa e tira a foto do meio da agenda. O homem apenas a observa. Ela beija a foto e se aproxima de um expositor. Coloca a foto sobre o expositor e pode-se ver que é uma foto dela com um rapaz. Eles estão abraçados e sorriem, apaixonados. Ela se afasta. O homem a observa ir embora. Finalmente podemos ver o seu rosto agora. É o mesmo homem da foto com Bianca. Sua imagem desvanece à medida que Bianca se afasta, até que ele desaparece. 9