Um diálogo entre a Análise do Comportamento e a Psicologia Evolucionista sobre a influência da filogênese no surgimento do comportamento religioso.

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Transcrição:

ISSN 1982-3541 Volume XIX no 1, 71-77 Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva Um diálogo entre a Análise do Comportamento e a Psicologia Evolucionista sobre a influência da filogênese no surgimento do comportamento religioso. A dialogue between Behavior Analysis and Evolutionary Psychology regarding the influence of phylogenesis on the emergence of religious behavior Un Dialogo entre el Análisis de la Conducta y la Psicología Evolutiva sobre la influencia de la filogénesis en el surgimiento de la conducta religiosa André Luiz Universidade Estadual de Londrina (UEL) Josiane de Fatima Farias Knaut Universidade Positivo RESUMO Este ensaio visou discorrer, por meio do diálogo entre a Análise do Comportamento e a Psicologia Evolucionista, sobre a influência dos aspectos filogenéticos no surgimento do comportamento religioso. Concluiu-se que a filogênese está intimamente ligada ao processo de aprendizagem do comportamento religioso devido à espécie humana ter desenvolvido um aparato biológico que permite exercer atribuições animistas sobre o ambiente sendo, muitas vezes, reforçadas por aumentar a probabilidade de sobrevivência da espécie. Por fim, hipotetiza-se que o comportamento religioso surgiu por meio da associação de outras funções * andreluizbmt@gmail.com 71

Um diálogo entre a Análise do Comportamento e a Psicologia Evolucionista sobre a influência da filogênese no surgimento do comportamento religioso comportamentais (como sistemas de alerta) ligadas à sobrevivência da espécie e não à própria religiosidade e desenvolveu-se devido a uma capacidade biológica da espécie do comportamento ser reforçado. Palavras-chave: religião; religiosidade; aprendizagem. ABSTRACT This essay aimed to discuss the influence of phylogenetic aspects in the emergence of religious behavior through a dialogue between Behavior Analysis and Evolutionary Psychology. It s concluded that the phylogenesis is closely linked to learning processes related to religious behavior, because the human species has developed a biological apparatus that allows animists attributions to the environment, which are often reinforced by increasing the probability of species survival. Lastly, it s hypothesized that religious behavior emerged in association with other behavioral functions (such as warning systems) linked to species survival, which was not necessarely linked to religiosity, but a biological capacity (of the species) to be reinforced. Key-words: religion, religiousness, learning. RESUMEN Este estudio tuvo como objetivo analizar, a través del diálogo entre el Análisis de la Conducta y la Psicología Evolutiva, sobre la influencia de los aspectos filogenéticos en la aparición del comportamiento religioso. Se concluyó que la filogenia está estrechamente vinculada con el proceso de aprendizaje del comportamiento religioso, porque la especie humana ha desarrollado un aparato biológico necesario para practicar poderes animistas sobre el medio ambiente a menudo se ve reforzada por el aumento de la probabilidad de supervivencia de la especie. Por último, se plantea la hipótesis de que el comportamiento religioso surgió a través de la asociación de otras funciones de comportamiento (tales como los sistemas de alerta) vinculados a la supervivencia de la especie y no muy religiosa y desarrollado debido a la capacidad biológica (de la especie) para ser fortalecido. Palabras clave: Religión, religiosidad, aprendizaje Em diversos âmbitos da ciência não se encontram muitas discussões aprofundadas sobre o surgimento do comportamento religioso. Boa parte dos pesquisadores que se dedicam a esse tema tendem a discorrer sobre as consequências produzidas tanto no nível individual quanto social de indivíduos que seguem, praticam ou pregam alguma crença religiosa. Os resultados produzidos por esses pesquisadores têm grande valor para a construção de um olhar refinado acerca dos aspectos que influenciam na 72

André Luiz Josiane de Fatima Farias Knaut Correio manutenção do comportamento religioso, mas restringem-se aos níveis ontogenético e cultural, deixando de lado ou explicando muito brevemente as possibilidades evolutivas para o surgimento desse comportamento, mesmo sendo um comportamento comum em toda a história da humanidade (Rodrigues & Dittrich, 2007) e que apresenta uma vasta pluralidade de topografias para sua apresentação. Devido à pluralidade de crenças religiosas existentes em culturas distintas, mantidas por diversos períodos históricos e o ínfimo número de pesquisas que discorrem sobre suas possibilidades evolutivas, principalmente dentro da Psicologia, este ensaio visa discorrer sobre possibilidade da influência da filogênese sobre o surgimento do comportamento religioso por meio do diálogo entre duas abordagens teórico-metodológicas: A Análise do Comportamento e a Psicologia Evolucionista que por fundamentação teórica, tem preocupação principal no estudo e na explicação de aspectos evolutivos essenciais para entender a filogênese. Na primeira abordagem, Análise do Comportamento, ainda que exista uma literatura já estabelecida sobre religião ou comportamento religioso, não se encontram estudos que discorrem sobre o papel da filogênese no surgimento de tal comportamento. De forma geral, a literatura analítico-comportamental sobre o comportamento religioso abrange apenas dois tipos de análise: (1) A função da religião na cultura, em que discorre-se sobre os aspectos que exercem a manutenção do comportamento religioso, como fizeram Houmanfar, Hayes e Fredericks (2001), Rodrigues e Dittrich (2007) e Skinner (2003); (2) A religião como objeto de estudo na clínica, sendo em alguns momentos retratados os problemas que a religião pode acarretar na vida do indivíduo em terapia (e.g., Banaco, 2001) e em outros como realizar o manejo dos aspectos religiosos dentro da clínica comportamental (e.g., Banaco, 1996; Vanderberghe, 2005) Talvez, a falta de atenção sobre os aspectos filogenéticos que podem influenciar o surgimento do comportamento religioso se dê pela própria falta de estudos que discutam os aspectos evolutivos acerca desse comportamento dentro da Análise do Comportamento. Essa lacuna na literatura prejudica tanto o âmbito acadêmico na criação de novas áreas de pesquisas quanto o âmbito social onde as informações poderiam auxiliar as pessoas a discriminarem o que, realmente, está exercendo influência sobre seus comportamentos e, até mesmo, as possíveis bases biológicas de suas ações. A Psicologia Evolucionista, ao contrário da Análise do Comportamento, apresenta diversas pesquisas sobre as bases evolutivas do comportamento religioso. Algumas das principais hipóteses sobre o surgimento e a manutenção do comportamento religioso, sob a ótica dessa linha de pesquisa, são apresentadas nos estudos realizados por Boyd e Richerson (2002) e Johnson e Bering (2006). O primeiro sugere que o comportamento religioso surgiu como uma crença transmitida socialmente com o objetivo de gerar a cooperação de indivíduos em grupo, caracterizando-o como uma ferramenta para manutenção de controle sobre o grupo social. Já o segundo estudo, realizado por Johnson e Bering (2006), o qual terá maior atenção neste ensaio, caracteriza com maior clareza as modificações no nível filogenético que agem no surgimento do comportamento religioso, presume que o comportamento religioso foi selecionado no nível individual, de acordo com modificações fenotípicas do organismo, constituindose como uma adaptação do indivíduo que o desenvol- Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn., 2017, Volume XIX no 1, 71-77 73

Um diálogo entre a Análise do Comportamento e a Psicologia Evolucionista sobre a influência da filogênese no surgimento do comportamento religioso veu durante o processo de evolução da espécie em que determinadas características biológicas aumentavam a probabilidade de sobrevivência dos indivíduos. Sugere-se, dessa maneira, que a religiosidade é um subproduto de capacidades cognitivas cooptadas, ou em outras palavras, agregadas a outros tipos de funções comportamentais que não a própria religião. As afirmações de que a religiosidade é um subproduto de capacidades cognitivas cooptadas apoiamse em estudos de neuroimagem, demonstrando que quando o indivíduo realiza alguma atividade religiosa outras áreas cerebrais são ativadas (Bortolini & Yamamoto, 2013). Nesse sentido, o comportamento religioso seria fruto da interação de determinadas estruturas neurais selecionadas para outros fins como, por exemplo, o Dispositivo Hiperativo de Detecção de Agentes (DHDA) 1. O comportamento religioso sendo fruto da interação entre estruturas neurais selecionadas para outros fins (que não a própria religiosidade) é um fato curioso para a Análise do Comportamento, pois Skinner (2003) sugeriu que a religião não seria claramente entendida sem se considerar sua utilização para outros fins que não aqueles empregados dentro do próprio campo da religião. Sendo assim, sua análise deve ir além das especulações apregoadas ao sobrenatural, buscando enxergar e explicar os processos atrelados ao comportamento religioso, como rituais supersticiosos (Banaco, 1996) em que os indivíduos apresentam classes de comportamentos supersticiosos 2 com o objetivo de produzir ou evitar algo no ambiente 3. Nota-se, no trecho anterior, a importância de investigar os aspectos atrelados ao comportamento religioso para conseguir entendê-lo, mas, além disso, também é importante diferenciar o que é comportamento religioso e comportamento supersticioso. Neste ensaio, o comportamento religioso é entendido como constituinte de uma classe de comportamentos supersticiosos, porém, que se distingue em sua apresentação, pois há a necessidade de uma atribuição animista. Talvez a utilização de um mesmo exemplo com a atribuição e a não atribuição animista possa deixar mais claro o que foi dito no parágrafo acima. Imaginemos que um jogador de boliche em sua última jogada na final do campeonato dos colegas do trabalho deve lançar a bola para derrubar o último pino. Antes de ele lançar a bola, o jogador dá duas olhadas para o lado esquerdo e uma para o lado direito, pois seu pai (que foi campeão de boliche 25 vezes consecutivas) sempre fazia isso e ele, supersticiosamente, acredita que se fizer o mesmo conseguirá derrubar o pino. Por fim, ele joga e derruba e tem, dessa maneira, sua superstição reforçada, uma vez que após sua apresentação, conseguiu fazer aquilo que queria, caracterizando um comportamento supersticioso. Em um segundo exemplo, o mesmo indivíduo, na mesma situação, antes de lançar a bola, tira a imagem 1 O DHDA é um aparato fisiológico inato que tem como função identificar ou detectar agentes no ambiente. A função desse dispositivo sobre a sobrevivência da espécie fez com que ele mesmo tenha evoluído e possa ser considerado, hoje, um dos motivos para explicar a tendência animista utilizada para interpretar o ambiente a nossa volta, tornando-se, portanto, uma predisposição ao surgimento do comportamento religioso. Para ver mais: Bortolini e Yamamoto (2013). 2 Os comportamentos mantidos por relações de contiguidade entre o organismo e o ambiente são chamados, na Análise do Comportamento, de Comportamentos Supersticiosos, pois surgem por meio da utilização de contingências acidentais e pela proximidade temporal entre a ação e a consequência, mas que não apresentam, necessariamente, uma relação funcional. (Benvenuti, Souza e Miguel, 2009; Skinner, 1948). 3 Como a utilização de amuletos ou a realização de uma oração antes de sair de casa na qual se pede para que não ocorra nenhum mal. 74

André Luiz Josiane de Fatima Farias Knaut Correio de seu santo e coloca sobre o balcão de frente para a pista e pede para que o mesmo conduza a bola até a o pino. Nesse caso, o indivíduo atribui ao santo ou imagem do santo, o poder de controlar a bola. Após isso, ele lança a bola e derruba o pino. Tem, dessa forma, sua crença no santo reforçada, caracterizando um comportamento religioso e, também, um ritual supersticioso estabelecido, pois aumenta-se a probabilidade de que o jogador leve a imagem do santo e apresente o mesmo padrão comportamental antes de jogar. A tendência animista, que caracteriza o comportamento religioso, pode ser o aspecto de principal ligação com as bases evolutivas do desenvolvimento de crenças religiosas e fundamenta o diálogo entre a Análise do Comportamento e a Psicologia Evolucionista. Segundo Skinner (2006): (...)Quando tivermos passado em revista as contingências que geram novas formas de comportamento no indivíduo, estaremos em melhor situação para avaliar as que geram o comportamento inato na espécie (...) (p. 38-39) Para passar em revista as condições que aumentam a probabilidade do surgimento de novos comportamentos, dentro deste modelo de estudo (diálogo entre abordagens), é necessário voltar as explicações da Psicologia Evolucionista e então realizar uma leitura sob a ótica da Análise do Comportamento. Com o objetivo de explicar o funcionamento do comportamento religioso vinculado à associação cognitiva, a Psicologia Evolucionista apresentou a existência de um módulo mental denominado DHDA, que, como descrito anteriormente, tem como principal função identificar e detectar agentes no ambiente, sejam eles da mesma espécie ou não. A função desse módulo estaria, portanto, intimamente ligada à sobrevivência da espécie, uma vez que a apresentação de respostas assertivas frente à possível existência de agentes que poderiam representar ameaças aumentou a probabilidade de uma seleção positiva sobre tais indivíduos, levando a Psicologia Evolucionista a levantar a hipótese de que o próprio DHDA poderia ter evoluído junto com a espécie. No entanto, nesse caso, o que realmente evoluiu foi o DHDA ou a capacidade de responder assertivamente (de forma a ser reforçado com o menor custo de resposta possível) a determinados estímulos? Segundo a descrição sobre o DHDA realizada por Bortolini e Yamamoto (2013), quando um indivíduo, em um ambiente de savana escuta algum barulho, por exemplo, seria mais adaptativo, para esse sujeito, imaginar que existe algum agente no ambiente, podendo com isso apresentar respostas que aumentem a probabilidade de sobrevivência, como fugir. Tem-se, como exemplo disso, o processo de aquisição de novos comportamentos, baseado no condicionamento respondente 4, em que determinadas funções do organismo respondem antes da apresentação de uma determinada consequência e, somente por via do condicionamento respondente, uma determinada característica do estímulo pode suscitar a apresentação de uma determinada resposta (Skinner, 2006). Portanto, um determinado arranjo de condições ambientais pode sinalizar que determinadas respostas classificadas como atribuições animistas serão reforçadas se apresentadas. 4 O Reflexo condicionado é um exemplo relativamente simples. Certos reflexos cardíacos suportam um grande esforço, como por exemplo fugir ou lutar com um predador; e há provavelmente uma vantagem se o coração responder antes que a fuga ou a luta comece; a aparência dos predadores varia, porém, e só por via do condicionamento respondente que uma determinada aparência pode suscitar o comportamento cardíaco apropriado antes da fuga (Skinner, 2006). Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn., 2017, Volume XIX no 1, 71-77 75

Um diálogo entre a Análise do Comportamento e a Psicologia Evolucionista sobre a influência da filogênese no surgimento do comportamento religioso Não extingue-se aqui a existência de respostas incondicionadas (que não inatas do organismo), como a hipótese apresentada sobre o DHDA, mas considera-se essa como, possivelmente, apenas a primeira resposta e que, após isso, as novas respostas apresentadas foram selecionadas pelas consequências produzidas, ou seja, por meio do condicionamento operante 5. Portanto, a partir de uma ótica analíticocomportamental, não foi o DHDA que evoluiu junto com a espécie, mas sim a capacidade de ser reforçado sob determinadas condições ambientais. Ainda assim, a afirmação de que o que evolui junto com a espécie é a capacidade de ser reforçado e não o DHDA, não exclui a análise da influência dos aspectos filogenéticos, pois sem a existência de um equipamento ou aparato biológico inato, a tendência animista, que exerce um papel central na apresentação e classificação do comportamento religioso, talvez não pudesse ser exercida e, nem mesmo reforçada. Segundo Skinner (2006): Num sentido importante todo comportamento é herdado, uma vez que o organismo que se comporta é produto da seleção natural. O condicionamento operante faz parte da dotação genética tanto quanto a digestão ou a gestação. O problema não consiste em saber se a espécie humana tem uma dotação genética mas em como deve ser analisada. Ela começa por ser e continua a ser um sistema biológico e a posição behaviorista é a de que não é nada mais que isso (p. 41). Ao descrever o condicionamento operante como uma forma de dotação genética e não excluindo, dessa forma, os aspectos filogenéticos sobre o surgimento do comportamento religioso, é possível sugerir que o comportamento religioso pode ter surgido por meio de duas capacidades filogenéticas: a primeira é a capacidade da espécie de ser reforçada e, portanto, pode-se aumentar a probabilidade de apresentar determinadas respostas que são importantes para a sobrevivência. A segunda é a existência de um aparato biológico que permite a existência de uma tendência animista e que pode ser reforçada pela primeira capacidade filogenética. Conclui-se, portanto, que o papel da filogênese é essencial sobre o surgimento do comportamento religioso, pois está intimamente ligado a sua aprendizagem Esta ligação ocorre por meio da junção de duas capacidades filogenéticas, a predisposição animista e a capacidade de ser reforçado que criou condições suscetíveis para o surgimento de crenças e de comportamentos baseados nessas crenças, que foram, por sua vez, reforçados durante os processos de seleção presentes na evolução da espécie. Se a capacidade de ser reforçado permitiu o surgimento do comportamento religioso, sugere-se que crenças religiosas também são aprendidas, pois surgem por meio da associação de outras funções comportamentais utilizadas para outros fins que não a religião como, por exemplo, a tendência animista. Dessa maneira, quando se busca explanar sobre aspectos filogenéticos que podem exercer influência no surgimento do comportamento religioso, deve-se primeiramente, entender se há e quais são as 5 Muitas coisas no meio exterior, tais como comida e água, contato sexual e fuga a danos são cruciais para a sobrevivência do indivíduo e da espécie e, por isso, qualquer comportamento que as produza tem valor de sobrevivência. Através do processo de condicionamento operante, o comportamento que apresente esse tipo de consequência tem mais probabilidade de ocorrer. Diz-se que o comportamento é fortalecido por suas consequências e por tal razão as próprias consequências são chamadas de reforços (Skinner, 2006). 76

André Luiz Josiane de Fatima Farias Knaut Correio classes de funções comportamentais envolvidas na apresentação de tal comportamento, tanto no sentido de sobrevivência, quanto na propagação ou fortalecimento de uma cultura, para que, por fim, se possa identificar o aparato biológico que permite a apresentação desses comportamentos específicos. Seguindo essa linha, é possível elencar (ainda que de forma hipotética) os aspectos fisiológicos ligados ao comportamento religioso que, no caso desse estudo, centralizou-se na capacidade da espécie de ter o comportamento reforçado. Por fim, considera-se importante a existência de pesquisas que avaliem com maior clareza os aspectos do reforço sobre o surgimento de crenças ou sobre o comportamento religioso, a fim de identificar quais são as características ambientais que mais influenciam no surgimento de tal comportamento. Talvez seja possível, por meio disso, identificar a influência do ambiente sobre os tipos de crenças existentes e propor modelos explicativos empíricos sobre o surgimento do comportamento religioso. Um segundo ponto de grande importância é a continuidade de estudos dentro da Análise do Comportamento sobre esse tema, pois a religião é uma grande agência de controle que, se entendida com clareza, pode ajudar a entender diversas formas de controle e comportamentos da espécie humana. REFERÊNCIAS Banaco, R. A. (1996). O manejo de aspectos religiosos na prática clínica comportamental. Psicologia em Revista, 3, 103-109. Banaco, R. A. (2001). Religião e psicoterapia. Fragmentos de Cultura, 11(1), 55-64 Benvenuti, M. F. L., Souza, J., & Miguel, C. F. (2009). Avaliando a interação de instruções e comportamento supersticioso em esquemas concorrestes. Interação em Psicologia, 13(1), 69-79. Bortolini, T., & Yamamoto, M. E. (2013). Surgimento e manutenção do comportamento religioso: contribuições da teoria evolucionista. Estudos de Psicologia, 18(2), 223-229. Boyd, R., & Richerson, P. J. (2002). Group beneficial norms can spread rapidly in a structured population. Journal of Theoretical Biology, 215(3), 287-296. Houmanfar, R., Hayes, L. J., & Fredericks, D.W. (2001). Religion and Cultural Survival. The Psychological Record, 51, 19-37. Johnson, D., & Bering, J. (2006). Hand of God, mind of man: Punishment and cognition in evolution of cooperation. Evolutionary Psychology, 4(2), 219-233. Rodrigues, T. S. P., & Dittrich, A. (2007). Um diálogo entre um cristão ortodoxo e um behaviorista radical. Psicologia: Ciência e Profissão, 27(3), 522-537. Skinner, B. F. (1948). Superstition in the pigeon. Journal of Experimental Psychology, 38(2), 168-172. Skinner, B. F. (2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo, SP: Martins Fontes. Skinner, B. F. (2006). Sobre o Behaviorismo (7a. ed.). São Paulo, SP: Cultrix. Vanderberghe. L. M. (2005). Religião, Espiritualidade, FAP e ACT. In J. H. Guilhardi & N. C. Aguirre (Org.), Sobre Comportamento e Cognição (pp. 323-337). Santo André, SP: ESETec. Recebido em 06/04/2016 Revisado em 25/09/2016 Aceito em 20/11/2016 Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn., 2017, Volume XIX no 1, 71-77 77