Paraparesia aguda - um desafio diagnóstico

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Transcrição:

86 RELATO DE CASO Diana Manuela Gonçalves Baptista 1 Ana Catarina Dias Magalhães 2 Liliana Dias Macedo 3 Armandina Moreira da Silva Neto 4 Cristina Maria Gonçalves Ferreira 5 Paraparesia aguda - um desafio diagnóstico Acute paraparesis - a diagnostic challenge RESUMO Objetivo: Descrever o caso clínico de um adolescente com neuropatia axonal motora aguda, variante mais rara da síndrome de Guillain-Barré. Descrição do caso: Adolescente do sexo masculino, 15 anos de idade, raça caucasiana e saudável, com instalação súbita de fraqueza muscular simétrica com atingimento distal, dor neuropática localizada nos músculos gastrocnemius e marcha miopática. Não apresentava distúrbios neurosensoriais e os reflexos osteotendinosos eram normais. Referência a infecção respiratória e gastrointestinal prévia. Com base nos achados clínicos e eletrofisiológicos foi feito o diagnóstico de síndrome de Guillain-Barré, variante axonal motora e iniciado tratamento com imunoglobulina endovenosa, registando-se recuperação progressiva e completa. Conclusão: A síndrome de Guillian-Barré constitui a causa mais frequente de paralisia neuro-muscular aguda nas crianças. Apresenta uma incidência estimada de 0,38-0,91/100.000 casos por ano. Trata-se de uma síndrome que engloba diversas variantes, o que contribui para a heterogeneidade clínica, levantando, por vezes, dificuldades no seu diagnóstico. O reconhecimento precoce é fundamental, no sentido da instituição terapêutica e vigilância adequadas. PALAVRAS-CHAVE Adolescente, Polineuropatias, Síndrome de Guillain-Barré. ABSTRACT Objective: To report a case of a teenager with acute motor axonal neuropathy, rarer variant of Guillain-Barré syndrome. Case description: 15-year-old Caucasian boy, previously healthy, with sudden symmetric muscle weakness involving the distal muscles of lower extremities, neuropathic pain localized in the gastrocnemius muscles and myopathic gait. He presented no neurosensory disorders and osteotendinous reflexes were normal. Reference to prior respiratory and gastrointestinal infection. Based on the clinical and electrophysiological findings the diagnosis of Guillain-Barré syndrome was made, motor axonal variant and treatment with intravenous immunoglobulin was started with progressive and complete recovery. Conclusion: The Guillain-Barré syndrome is the most frequent cause of acute neuromuscular paralysis in children. It presents an estimate of 0.38 to 0.91/100,000 cases per year. It is a syndrome that encompasses several variants which contribute to the clinical heterogeneity, sometimes raising difficulties in diagnosis. Early recognition is critical towards the institution of appropriate therapy and monitoring. KEY WORDS Adolescent, Polyneuropathies, Guillain-Barre Syndrome. 1 Interna de Formação Específica de Pediatria Médica - Centro Hospitalar do Alto Ave. Guimarães, Portugal. 2 3 4 5 Diana Manuela Gonçalves Baptista (dianbaptista@hotmail.com) - Rua Arqueólogo Mário Cardoso nº 371 4ºAR - Guimarães, Portugal. CEP: 04835-076. Recebido em 27/05/2014 - Aprovado em 30/06/2014

LCR com 11-50 leucócitos/mm 3 continua Baptista et al. PARAPARESIA AGUDA - UM DESAFIO DIAGNÓSTICO 87 INTRODUÇÃO A síndrome de Guillain-Barré (SGB) foi descrita pela primeira vez em 1916 por três médicos parisienses (Guillain, Barre e Strohl) 1. Trata-se de uma polineuropatia periférica que constitui a causa mais comum de paralisia flácida aguda nas crianças (0,38-0,91/100.000 casos descritos por ano) 2. A incidência varia conforme a localização geográfica e a idade, sendo mais rara abaixo dos dois anos de idade 2 e mais frequente nos adolescentes, existindo um predomínio do sexo masculino em todas as faixas etárias 3. A fraqueza muscular progressiva, associada a arreflexia e aumento das proteínas no líquido cefalorraquidiano (LCR) sem pleocitose (dissociação albumino-citológica), constitui a tríade clinica clássica (Quadro 1. Critérios de diagnóstico Asbury and Cornblath). Contudo, permanece sem um marcador específico, constituindo um diagnóstico de exclusão 4. Quadro 1. Critérios de Diagnóstico (adaptado de Asbury and Cornblath, 1990 4 ). Critérios necessários para o diagnóstico Diminuição da força muscular progressiva em mais de um membro (grau de parésia muito variável, desde ligeira diminuição da força nos membros inferiores até paralisia total do tronco e membros, paralisia facial e bulbar e oftalmoplegia externa) Arreflexia osteotendinosa universal (aceitável apenas diminuição dos reflexos rotuliano e bicipital se as outras características são consistentes com o diagnóstico) Critérios que apoiam fortemente o diagnóstico 1. Clínicos (por ordem de importância) Caráter progressivo da diminuição da força muscular: 50% atingem o plateau em duas semanas, 80% em três semanas e 90% em quatro semanas Simetria relativa Sinais e sintomas sensitivos leves Envolvimento dos pares cranianos: paralisia facial em 50% dos casos, frequentemente bilateral; envolvimento de outros nervos cranianos: Recuperação após 2-4 semanas após a paragem da progressão; ocasionalmente demora meses Disfunção autonômica (taquicardia, hipotensão postural, hipertensão arterial, sinais vasomotores) Ausência de febre no início da sintomatologia Variantes clínicas (sem ordem de importância): Febre no início da sintomatologia Diminuição muito significativa da sensibilidade com dor Progressão dos déficits superior a quatro semanas Ausência de recuperação ou déficits maiores residuais permanentes Disfunção esfincteriana: pouco frequente, embora possa ocorrer disfunção vesical transitória Envolvimento do SNC: implica descartar outros diagnósticos 2. Critérios do LCR Aumento das proteínas na primeira semana 10 leucócitos mononucleares/mm 3 Variantes do LCR Sem aumento de proteínas 1-10 semanas após início dos sintomas

88 PARAPARESIA AGUDA - UM DESAFIO DIAGNÓSTICO Baptista et al. continuação do Quadro 1 3. Critérios eletrofisiológicos Estudos de condução nervosa: diminuição da velocidade ou bloqueio da condução Latências distais podem estar aumentadas (podem não estar alteradas nas primeiras semanas de doença) Critérios que tornam o diagnóstico duvidoso Assimetria significativa persistente Disfunção vesical ou intestinal persistente Disfunção vesical ou intestinal desde o início dos sintomas Nível sensitivo evidente Pleocitose 50 leucócitos mononucleares/mm 3 Presença de leucócitos polimorfonucleares no LCR Critérios que excluem o diagnóstico História de intoxicação por hexacarbonetos (inalação de solventes voláteis, cetonas, cola, verniz) Porfiria aguda intermitente Difteria recente Neuropatia por chumbo Síndrome puramente sensitivo Diagnóstico definitivo de outra doença como poliomielite, botulismo, paralisia histérica ou neuropatia tóxica (ex. nitrofurantoína, dapsona, organofosforados) Aproximadamente 2/3 dos casos são precedidos de uma infecção, habitualmente respiratória ou gastrointestinal, que pode ser ligeira ou mesmo assintomática 1. O agente infeccioso raramente é identificado, mas os mais frequentemente descritos são o Campylobacter jejuni (o mais frequente, descrito em 30% dos casos 4 ), vírus Epstein-Barr (EBV), Citomegalovírus (CMV), Mycoplasma pneumoniae, Chlamydia pneumoniae, Haemophilus influenzae, Varicela- Zoster, Enterovírus, vírus da hepatite A e B e Herpes simplex 5. A administração de determinadas vacinas e medicamentos, alguns procedimentos e doenças sistêmicas têm sido associadas à SGB, contudo não existe, na atualidade, evidência científica que comprove essa associação 1. Embora não totalmente definida, pensa-se que a base fisiopatológica da doença seja autoimune, não existindo nenhum fator genético conhecido. A identificação de autoanticorpos antigangliosideos em percentagens significativas de doentes, nomeadamente nas variantes axonais e na síndrome de Miller-Fisher, apoia a origem imunológica 1. Inicialmente interpretada como uma patologia única, foram sendo gradualmente reconhecidas várias formas clínicas que fazem desta uma síndrome heterogênea com um espectro de entidades imunes que afetam o sistema nervoso periférico 2. A forma clássica e mais frequente no mundo ocidental é a polineurorradiculopatia inflamatória desmielinizante aguda. Esta ocorre por um processo desmielinizante primário com vários graus de dano axonal secundário 6. Clinicamente caracteriza-se por disfunção motora, sensitiva e autonômica (esta última em cerca de 15% dos casos) 5. As formas axonais (motora aguda e sensitivo-motora aguda), síndrome de Miller-Fisher, polinevrite craniana, pandisautonomia aguda e variante faringocervicobraquial constituem subtipos menos frequentes, entre outros cujo reconhecimento nem sempre é consensual 5.

Baptista et al. PARAPARESIA AGUDA - UM DESAFIO DIAGNÓSTICO 89 Na criança há, com maior frequência do que no adulto, formas atípicas de apresentação, o que implica maiores dificuldades diagnósticas 2. DESCRIÇÃO DO CASO Adolescente de 15 anos de idade, sexo masculino, raça caucasiana, sem antecedentes pessoais ou familiares de relevo. Recorre ao serviço de urgência por um quadro, com três dias de evolução, de fraqueza muscular simétrica ao nível dos membros inferiores, dor localizada em ambos os músculos gastrocnemius e dificuldades na marcha. Negava ingestão de tóxicos/fármacos ou traumatismos. Referia antecedente de infecção respiratória e gastrointestinal, um mês e duas semanas antes do início das queixas, respectivamente. Na admissão apresentava-se consciente e colaborante, apirético e hemodinamicamente estável. Constatada diminuição simétrica da força muscular nos membros inferiores de predomínio distal grau 3 (mais evidente na dorsiflexão dos pés grau 2), marcha miopática e manobra de Gower positiva. Não se registraram distúrbios neurossensoriais e os reflexos osteotendinosos eram normais e simétricos. O restante exame neurológico e objetivo era normal. O estudo analítico efetuado (que incluiu hemograma, ionograma, marcadores inflamatórios e creatininafosfocinase séricos) não revelou alterações. Realizou tomografia axial computadorizada cranioencefálica que foi normal. A análise do LCR evidenciou a presença de 14 leucócitos mononucleares/ul, com proteinorráquia de 0.34 mg/dl e glicorráquia normal. O adolescente foi internado para vigilância clínica e esclarecimento etiológico. No internamento efetuou ressonância magnética cerebral e vértebro-medular que evidenciou reforço do sinal ao longo das raízes da cauda equina, possivelmente de natureza inflamatória. Realizou eletroneuromiografia que revelou uma polineuropatia axonal aguda com grave lesão axonal motora, compatível com uma variante axonal motora da síndrome de Guillain-Barré. As serologias para Mycoplasma pneumoniae, CMV, EBV, Herpes simplex 1 e 2, Chlamydia pneumoniae e Chlamydia trachomatis foram negativas. Os marcadores víricos para hepatite A, B, C e VIH foram também negativos. A coprocultura que incluiu pesquisa de Campylobacter jejuni foi negativa e não se registrou crescimento microbiológico no LCR. No primeiro dia de internamento registrou- -se um agravamento do déficit motor, observando-se grau 4 na escala funcional de gravidade clínica de Hughes (Quadro 2), sendo o adolescente incapaz de caminhar. Iniciou terapêutica com imunoglobulina endovenosa na dose de 0.4 g/kg/dia durante cinco dias, tendo se recuperado progressivamente, apresentando ao 5º dia de internamento (9º dia de doença) marcha mais autônoma, ainda miopática (grau 2 escala de Hughes). Teve alta ao final do 8º dia de internamento, não se registrando compromisso respiratório ou cardiovascular, progressão da fraqueza muscular ou outras alterações neurológicas. O adolescente foi observado por Medicina Física e de Reabilitação, tendo iniciado tratamento fisiátrico e acompanhamento psicológico. Um mês após o início dos sintomas apresentava ainda ligeira dificuldade na dorsiflexão do pé direito, com repercussão na marcha, não sendo capaz de correr. A recuperação total ocorreu quatro meses após o diagnóstico, com o adolescente regressando às suas atividades quotidianas, sem sequelas ou quaisquer limitações. Em quatro anos de seguimento, não foram registradas recidivas ou outras intercorrências. Quadro 2. Escala funcional de gravidade clínica de Hughes 5. 0. Saudável, sem sinais ou sintomas de SGB 1. Sinais ou sintomas minor, capaz de correr 2. Capaz de caminhar 5 metros sem ajuda 3. Capaz de caminhar 5 metros só com ajuda 4. Confinado à cama; incapaz de caminhar 5. Necessidade de ventilação mecânica 6. Morte

90 PARAPARESIA AGUDA - UM DESAFIO DIAGNÓSTICO Baptista et al. CONCLUSÃO A neuropatia axonal motora aguda constitui uma variante da SGB. É um subtipo que predomina na Ásia e América Central e do Sul, correspondendo apenas a 10% dos casos diagnosticados na Europa e América do Norte. Tem habitualmente incidência sazonal com associação mais frequente a infeção por Campylobacter jejuni 4. Existe um envolvimento predominante dos nervos motores com um padrão eletrofisiológico sugestivo de dano axonal 7. O caso clínico descrito é particular não só por constituir uma variante mais rara da SGB, mas sobretudo pela apresentação clínica atípica. Apesar da fraqueza muscular simétrica progressiva, o adolescente não apresentava um dos critérios considerados necessários, segundo Ashbury and Cornblath (Quadro 1), para estabelecer o diagnóstico: a arreflexia ou hiporreflexia. Embora se saiba que cerca de 1/3 dos doentes com neuropatia axonal motora aguda possam apresentar hiperreflexia 5, os reflexos osteotendinosos do adolescente foram sempre normais. Por outro lado os achados do LCR, como a pleocitose e proteinorráquia normal (ausência de dissociação albuminocitológica), integram os critérios menos típicos da síndrome, o que contribuiu para a complexidade diagnóstica. O estudo eletrofisiológico é essencial no diagnóstico e caracterização da SGB 2, tendo sido fundamental como peça diagnóstica. As alterações neurofisiológicas associadas aos achados clínicos permitiram o diagnóstico atempado e início da terapêutica com imunoglobulina, tendo-se registrado uma excelente resposta terapêutica e evolução clínica muito favorável, com recuperação total dos déficits sem sequelas, aos quatro meses após o diagnóstico. O tratamento inclui a vigilância e monitorização dos doentes em centro clínico adequado e terapêutica específica com imunoglobulina ou plasmaferese 6. Embora existam poucos estudos nas crianças, a terapêutica com imunoglobulina é a utilizada pela grande maioria dos autores por ser mais segura e mais fácil de administrar que a plasmaferese 8. Parece acelerar a recuperação interferindo nos mecanismos inflamatórios e autoimunes associados à doença 7-10. O reconhecimento precoce dos doentes com SGB é fundamental. Sabe-se que cerca de 20% das crianças e adolescentes apresentam insuficiência respiratória com necessidade de ventilação mecânica, sendo esta mais comum nos doentes com sintomatologia rapidamente progressiva 5. Assim, torna-se essencial a vigilância clínica adequada e orientação terapêutica correta. Quadro 3. Diagnóstico diferencial da síndrome de Guillain-Barré 2. Cerebral Cerebelar Medula Nervos periféricos Junção neuromuscular Músculo Enfartes bilaterais Histeria Síndromes de ataxia cerebelar aguda Lesões estruturais da fossa posterior Mielopatia compressiva Mielite transversa Síndrome da artéria espinhal anterior Neuropatia tóxica (drogas, toxinas) Neuropatia do doente crítico Difteria Doença de Lyme Porfiria Botulismo Myasthenia gravis Agentes bloqueadores neuromusculares Miosite viral aguda Miopatias inflamatórias agudas Miopatias metabólicas Paralisia periódica

Baptista et al. PARAPARESIA AGUDA - UM DESAFIO DIAGNÓSTICO 91 REFERÊNCIAS 1. Michael TA. Guillain-Barre syndrome [Internet]. Uptaded Feb 2014 [cited 2014 Mar 20]. Available from: http://emedicine.medscape.com/article/315632-overview. 2. Cruse, RP. Overview of Guillain-Barré syndrome in children [Internet] 2014 Aug 29 [cited 2014 Mar 28]. Available from: http://www.uptodate.com/contents/overview-of-guillain-barre-syndrome-in-children 3. Gamarra G, Rosciani F, Sosa FA. Una Revision: Síndrome de Guillain Barre. Rev Posgrado Via Cátedra Med. 2010;199:22-6. 4. Asbury AK, Cornblath DR. Assessment of current diagnostic criteria for Guillain-Barr6 syndrome. Ann Neurol. 1990;27(Suppl):S21-S4. 5. Sampaio MJ, Figueiroa S, Temudo T, Gomes S, Janeiro P, Lopes da Silva R. Síndrome de Guillain-Barré. Protocolo. Acta Pedatric Port. 2011:42 (1):33-42. 6. Winer JB. An update on Guillain-Barré syndrome. Autoimmune Dis. 2014; 2014: 793024. 7. Winer JB. Guillain-Barré syndrome. Mol Pathol. 2001;54(6):381-5. 8. Cruse RP. Treatment of Guillain-Barré syndrome in children [Internet]. 2014 Aug 29 [cited 2014 Mar 28]. Available from: http://www.uptodate.com/contents/overview-of-guillain-barre-syndrome-in-children. 9. Pascual-Pascual SI. Sindrome de Guillain-Barré. Asoc Esp Pediatr [Internet]. 2008 [citado 2014 Mar 30]. Disponible en: www.aeped.es. 10. Yo JS. A case of acute motor and sensory axonal neuropathy following hepatitis A infection. J Korean Med Sci. 2013 Dec;28(12):1839-41.