ASPECTOS BÁSICOS PARA COMPREENSÃO, DIAGNÓSTICO E PREVENÇÃO DOS DISTÚRBIOS DE LINGUAGEM NA INFÂNCIA



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ASPECTOS BÁSICOS PARA COMPREENSÃO, DIAGNÓSTICO E PREVENÇÃO DOS DISTÚRBIOS DE LINGUAGEM NA INFÂNCIA BASIC ASPECTS FOR UNDERSTANDING, DIAGNOSIS AND PREVENTION OF THE LANGUAGE DISORDERS IN THE CHILDHOOD Jaime Luiz Zorzi* RESUMO Este trabalho tem por objetivo dirigir a atenção e a reflexão do fonoaudiólogo para alguns aspectos básicos do desenvolvimento infantil. Tais aspectos, apresentados de uma maneira sintética, podem permitir uma melhor compreensão das alterações que prejudicam a aquisição da linguagem, podem auxiliar no planejamento de medidas preventivas, assim como permitir um diagnóstico mais preciso dos problemas de comunicação que uma criança esteja apresentando. UNITERMOS: aquisição de linguagem; atrasos globais do desenvolvimento; distúrbios da linguagem; diagnóstico dos distúrbios da linguagem; evolução dos distúrbios da linguagem. ABSTRACT This work has the objective of drawing speech and language pathologists attention for reflection on some basic aspects of children development. Such aspects, presented in a concise way, can allow a better understanding of the disorders that may interfere in the language acquisition process, they can help the planning of preventive measures, as well as allow a more precise diagnosis of communication problems. KEY WORDS: language acquisition; global delays of the development; language disorders; diagnosis of the language disorders; evolution of the language disorders. * Fonoaudiólogo pela PUC; Doutor em Educação pela UNICAMP; Especialista em Linguagem pelo CFFa; Diretor e Professor do CEFAC; Professor da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC SP. 11

REVISTA CEFAC: ATUALIZAÇÃO CIENTÍFICA EM FONOAUDIOLOGIA INTRODUÇÃO OPROBLEMA Encontramos no curso da evolução do bebê uma série de acontecimentos que são indícios de um bom desenvolvimento. O controle da cabeça e do tronco, o engatinhar e a marcha, quando ocorrem dentro dos períodos normais, são bons indicadores de uma evolução que se processa favoravelmente. Porém, não são somente as conquistas motoras que sinalizam um desenvolvimento saudável. O melhor indicador evolutivo, pensando-se não somente em funções motoras mas considerando-se também as chamadas funções nervosas superiores, diz respeito ao aparecimento da linguagem. Longe de refletir simplesmente um processo maturacional neurológico, a conquista da linguagem manifesta capacidades comunicativas, sociais, afetivas e intelectuais significativamente evoluídas e complexas. Contrariamente, a ausência de linguagem dentro dos limites cronológicos esperados ou um processo de aquisição muito lento e dificultoso podem indicar problemas no desenvolvimento da criança. Porém, a aprendizagem da linguagem nem sempre tem sido considerada um marco evolutivo importante e, desta forma, a maior parte das patologias que podem afetar a evolução satisfatória da linguagem na infância têm sido mal compreendidas ou pouco consideradas. Boa parte dos problemas que alteram o curso evolutivo da linguagem poderiam ser resolvidos caso estes fossem prontamente detectados e tratados de modo conveniente. Por outro lado, outra parte de tais distúrbios, pelas suas características e gravidade, não pode ser resolvida a curto prazo. Porém, a intervenção precoce tem-se mostrado efetiva no sentido de amenizar as conseqüências ou prejuízos destas alterações. As famílias de crianças apresentando distúrbios de aquisição da linguagem necessitam de apoio e orientação. Dizer-lhes, simplesmente, que a criança ainda é nova e que um dia virá a falar não tem se mostrado uma forma adequada de lidar com o problema. Informações a respeito das alterações da linguagem infantil devem estar ao alcance de todos os profissionais que trabalham com crianças a fim de que estes possam orientar e encaminhar as famílias cujos filhos, por algum motivo, não estejam conseguindo evoluir satisfatoriamente. Tomando como referência os trabalhos anteriores de ZORZI (1994, 1999), este artigo tem por finalidade abordar questões relativas ao desenvolvimento da comunicação, às principais patologias que podem interferir com a aquisição da linguagem, às tendências evolutivas de tais alterações, ao diagnóstico precoce e às medidas de prevenção a fim de que o fonoaudiólogo possa melhor desempenhar seu papel, assim como orientar pais e outros profissionais no sentido de garantir uma intervenção a mais precoce possível. A ORIENTAÇÃO TRADICIONAL Tem sido bastante comum encontrarmos crianças que são encaminhadas para um exame fonoaudiológico somente após completarem três ou quatro anos de idade, mesmo apresentando evidente atraso no desenvolvimento da linguagem. Isto ocorre porque existe uma certa crença, infelizmente muito difundida, de que não devemos nos preocupar se uma criança não começar a falar na idade esperada, porque é normal que muitas delas venham a fazê-lo somente mais tarde. Conselhos ou orientações deste tipo, embora aparentemente possam tranqüilizar os familiares que confiam naquilo que os profissionais dizem, em geral, acabam por adiar ou retardar a busca de procedimentos mais adequados. Embora muitos casos de atraso de aquisição da linguagem, por serem problemas leves, possam ser sanados com certa facilidade, também é verdade que boa parte deles pode estar revelando alterações mais graves do desenvolvimento da criança. Qualquer que seja a situação, quer frente a atrasos simples da linguagem quer frente a atrasos mais severos, o fonoaudiólogo é o profissional indicado para realizar um estudo evolutivo da criança. Não estamos nos referindo a problemas circunstanciais, momentâneos, mas sim a alterações de caráter evolutivo, que podem se manifestar de maneiras variadas nas diferentes fases do crescimento. Por exemplo, crianças mais velhas apresentando outros tipos de distúrbios, como aqueles referentes a problemas significativos de aprendizagem ou de aquisição da leitura escrita e dos conteúdos escolares, revelam, com freqüência, uma história de atraso de desenvolvimento manifestada através de distúrbios de aquisição da linguagem. A LINGUAGEM E SUAS FASES DE DESENVOLVIMENTO A linguagem se constitui como uma forma de expressão que permite relações entre as pessoas. Significados que correspondem a conceitos, idéias, sentimentos ou experiências são expressos através de símbolos convencionais (as palavras), que são os significantes. A aquisição da linguagem insere-se no quadro de evolução do processo mais global de comunicação, que engloba símbolos verbais e não verbais. 1. Fase pré-verbal do desenvolvimento da comunicação Até por volta dos 2 meses de idade: o comportamento do bebê é predominantemente reativo ao meio ambiente e sua comunicação não tem ainda o 12

caráter de intencionalidade. Na realidade, os adultos, no esforço que fazem para interpretar as reações do bebê, acabam por atribuir-lhe intenções e significações que ele ainda não é capaz de espontaneamente organizar. Dos 2 aos 8 meses aumenta a atividade e o comportamento exploratório do bebê. Ele deixa de simplesmente reagir aos estímulos para começar, cada vez mais, a agir sobre o ambiente. Apesar de tais progressos, ainda não existe comunicação intencional propriamente dita. Porém, como o bebê age sistematicamente sobre as coisas ao seu redor, demonstrando nitidamente alegrias e frustrações frente às situações, isto facilita a tendência interpretativa dos adultos. Ou seja, fica mais fácil para os pais compreenderem o que pode estar se passando com a criança, o que ela pode estar sentindo em um determinado momento. Dos 8 aos 12 meses, graças aos progressos de sua inteligência, a criança começa a compreender que pode utilizar determinados comportamentos como meio de expressão de seus desejos e, desta forma, agir sobre os outros para poder satisfazê-los. Tais procedimentos comunicativos intencionais são ainda elementares, envolvendo ações como: apontar o objeto desejado, levar a mão do adulto na direção daquilo que deseja, olhar para o objeto e para o adulto, alternadamente, a fim de chamar sua atenção para aquilo que quer. Muitas vezes tais gestos são acompanhados de vocalizações, que estão distantes de poderem ser consideradas como palavras. Entre 12 e 18 meses a comunicação intencional ganha um impulso significativo, com a criança aprendendo gestos comunicativos convencionais, sendo que muitas delas começam, nesta fase, a usar as primeiras palavras. A partir deste ponto, podemos falar em desenvolvimento da comunicação verbal propriamente dita. 2. Fase verbal do desenvolvimento da comunicação A partir do primeiro aniversário, muitas crianças já têm condições de estar usando as primeiras palavras. Nesta primeira fase, a linguagem caracteriza-se por enunciados de uma só palavra. Estas primeiras palavras podem ter múltiplas significações: a palavra banho, por exemplo, pode ser usada para significar a ação de tomar banho, o chuveiro, a toalha, o sabonete ou o próprio banheiro. Dos 18 aos 24 meses começam a surgir os enunciados de dois elementos, formando um esboço de frase: Qué água, Nenê bola, são exemplos típicos desta fase de desenvolvimento da linguagem. Por volta dos 24 meses começamos a observar a chamada fala telegráfica. Novas categorias de palavras são incorporadas nos enunciados, porém há uma tendência de omissão de certos elementos lingüísticos como artigos, preposições e conjunções. Exemplo: Qué suco limão. Tais categorias de palavras são progressivamente dominadas pelas crianças ao longo de sua infância. Quando chega aos 4 ou 5 anos, a criança que vem apresentando uma evolução favorável de linguagem já apresenta um domínio significativo da gramática básica de sua língua. Por volta dos 5 anos também espera-se que a criança já tenha dominado todos os sons da fala, ou seja, não mais apresente dificuldades caracterizadas por trocas ou omissões em sua pronúncia das palavras. A FUNÇÃO SIMBÓLICA A função simbólica ou semiótica diz respeito à capacidade geral de representar ou usar símbolos. A linguagem não é a única conduta simbólica desenvolvida pela criança, uma vez que esta forma de representação surge dentre um conjunto mais amplo de outras manifestações. Linguagem: uso de símbolos sociais, que são as palavras. Brinquedo simbólico ou jogo de faz-de-conta: forma lúdica de lidar simbolicamente com a realidade representando situações do cotidiano. Imitação diferida: capacidade de imitar ou reproduzir modelos (gestos, sons, ações) que foram observados em situações anteriores ou passadas e que mais tarde são evocados. O aparecimento destas condutas simbólicas no decorrer do segundo ano de vida da criança serve como referencial de um bom desenvolvimento. Contrariamente, o não surgimento do simbolismo indica que a criança pode estar tendo problemas quanto ao desenvolvimento de funções que levam à formação de tais condutas. INDICADORES DE DESENVOLVIMENTO NO DECURSO DO SEGUNDO ANO DE VIDA DO BEBÊ Interesse crescente pelos objetos e exploração variada dos mesmos: gradativamente tende a aumentar o tempo de manipulação e a crescer o número de ações que a criança realiza com eles. Interesse em explorar relações espaciais entre os objetos: pôr um dentro do outro, pôr ao lado e empilhar. 13

REVISTA CEFAC: ATUALIZAÇÃO CIENTÍFICA EM FONOAUDIOLOGIA Surgem as condutas instrumentais: puxar objetos amarrados a um barbante; utilizar uma varinha para atrair objetos distantes. Uso convencional dos objetos: imitar o uso que as pessoas fazem das coisas. Aumento da capacidade de compreensão e de expressão por parte da criança, principalmente com relação à linguagem. Têm início as brincadeiras ou jogos de faz-de-conta: a criança finge que toma banho, que dorme ou que se alimenta; reconhece as pessoas e bonecos como seus semelhantes e partilha com eles a situação de brinquedo simbólico: dá comida para os bonecos, coloca-os para dormir, dá banho nos mesmos e assim por diante. Por volta do final do segundo ano, tendem a utilizar objetos simbolicamente, isto é, um objeto passa a representar outro: uma caixa transforma-se em banheira, um bloco de madeira representa um telefone etc. DISTÚRBIOS QUE PODEM AFETAR A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM INFANTIL 1. Atrasos de aquisição da linguagem que fazem parte de atrasos mais globais do desenvolvimento Características principais: Comunicação verbal ausente ou pouco desenvolvida em relação ao que se poderia esperar para a idade da criança. Dificuldades de compreensão verbal, embora não haja deficiência auditiva. Pouca atenção à linguagem ambiente assim como aos sons, de uma maneira geral. Atividade de exploração dos objetos pouco evoluída, tendendo a ser repetitiva, pouco diversificada. Tempos de atenção e concentração reduzidos: dispersividade. Crianças tendem a mexer em tudo, porém não se prendem a nada. Brinquedo simbólico ausente ou pouco evoluído em relação à idade cronológica. Indiferença ou falta de curiosidade em relação ao ambiente e aos brinquedos. Dificuldades de relação social. Problemas comportamentais diversos. Como é possível observar, nestes casos, a alteração da linguagem está manifestando um atraso ou comprometimento mais importante do desenvolvimento, o qual é a base para a evolução favorável da comunicação. O atraso é geral, afetando também a linguagem. 2. Atrasos simples de linguagem Características principais: Embora não existam comprometimentos auditivos, que caracterizem uma deficiência, a linguagem apresenta-se menos evoluída que as outras condutas simbólicas: brinquedo simbólico e imitação diferida. Não existem dificuldades significativas quanto à compreensão da linguagem: problema atinge a expressão. Conseguem desenvolver simbolismo na comunicação, embora de modo não verbal. A linguagem, quando presente, mostra-se pouco evoluída. Desenvolvimento global sem problemas significativos, de modo geral. A evolução do brinquedo simbólico dá mostras de que a criança é capaz de lidar com símbolos, que consegue representar conhecimentos e experiências por meio de brinquedos e gestos, o que não ocorre por intermédio da linguagem. Tais atrasos podem estar freqüentemente ligados a situações de inadequação ambiental em relação à estimulação da criança, principalmente no que diz respeito à linguagem. De maneira geral, nestes casos, o comprometimento ou dificuldade da criança está centrado principalmente na evolução da linguagem, enquanto que outras áreas de desenvolvimento podem não se mostrar prejudicadas a ponto de caracterizar um distúrbio mais geral. TENDÊNCIA EVOLUTIVA DOS ATRASOS GERAIS DE DESENVOLVIMENTO O atraso de linguagem pode ser sintoma de problemas diversos que afetam o desenvolvimento e que irão se configurar com maior clareza mais tarde, à medida que a própria evolução da criança vai delineando as dificuldades mais importantes. Os atrasos globais de desenvolvimento podem vir a configurar patologias como a deficiência mental, a disfasia, o autismo ou distúrbios de aprendizagem em graus variados, dependendo da gravidade das dificuldades apresentadas. Crianças com tais características tendem a evoluir no sentido de virem a apresentar problemas gerais de aprendizagem e de linguagem, que acabam por afetar o aprendizado da leitura e da escrita e também o acompanhamento dos programas escolares, de uma maneira geral. São comuns dificuldades no plano social e afetivo. 14

Necessitam de acompanhamento profissional especializado por tempo prolongado. TENDÊNCIA EVOLUTIVA DOS RETARDOS SIMPLES DE LINGUAGEM As crianças podem reagir com rapidez ao tratamento ou à intervenção fonoaudiológica. Os progressos podem ser imediatos e os tratamentos, de curta duração. O encaminhamento da criança para uma escola pode contribuir para um bom desenvolvimento. Pode surgir um quadro de distúrbio articulatório. As dificuldades podem persistir em função das características da criança ou da família. Podem surgir dificuldades de aprendizagem escolar. Dificuldades afetivas e sociais são freqüentes. Inabilidades do ponto de vista comunicativo em geral. DIFERENCIAÇÕES Os distúrbios de linguagem dizem respeito àquelas alterações que afetam todo o desenvolvimento lingüístico da criança: uso da linguagem, a aquisição de vocabulário, a semântica e o domínio formal, incluindo a sintaxe, os morfemas e os fonemas. Os distúrbios articulatórios dizem respeito às alterações que se restringem ao domínio fonêmico, isto é, ao aprendizado dos sons da fala. FATORES CAUSAIS Embora nem sempre seja possível chegar a um diagnóstico preciso que explique ou justifique o quadro encontrado, pode-se apontar duas classes amplas de fatores que, em muitos casos, estão atuando conjuntamente: características ou fatores relativos à criança e características ou fatores relativos ao meio. Características do sujeito: alterações de natureza orgânica; distúrbios emocionais importantes; alterações de ordem cognitiva. Características do meio: problemas familiares importantes; estimulação inadequada: falta de estimulação ou, contrariamente, níveis de exigência incompatíveis com as capacidades da criança. CONCLUSÕES GERAIS Crianças apresentando um bom desenvolvimento adquirem linguagem no decorrer do segundo ano de vida. Ausência ou evolução alterada da linguagem podem ser indícios de problemas significativos no desenvolvimento das funções nervosas superiores. Crianças apresentando distúrbios importantes podem ser diagnosticadas muito cedo, desde que se considere características gerais de seu desenvolvimento. Quando houver suspeita de algum problema, não se deve deixá-lo ao sabor do tempo. É necessário encaminhar a criança a um especialista, no caso, o fonoaudiólogo. BIBLIOGRAFIA ZORZI, J. L. Linguagem e Desenvolvimento Cognitivo A Evolução do Simbolismo na Criança. Pancast, 1994. ZORZI, J. L. A Intervenção Fonoaudiológica nas Alterações da Linguagem Infantil. Rio de Janeiro, Revinter, 1999. Endereço: Rua Cayowaá, 664 CEP: 05018-000 Perdizes, São Paulo SP Tel.: (0xx11)3675-1677 15