Comprometimento Cardíaco na Amiloidose Sistêmica. Diagnóstico in Vivo

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Transcrição:

Relato de Caso Comprometimento Cardíaco na Amiloidose Sistêmica. Diagnóstico in Vivo Rosana G. G. Mendes, Paulo Roberto B. Evora, José Antonio Mansur Mendes, Jorge Haddad, Simone Carvalho Ribeirão Preto, SP Descrevemos o caso de um paciente masculino de 42 anos, com amiloidose sistêmica, provavelmente primária, comprometendo o coração. Ressaltam-se os aspectos fisiopatológicos, clínicos e a relativa raridade do diagnóstico in vivo. Discutem-se, ainda que limitados, os aspectos terapêuticos relacionados aos problemas cardíacos. Heart Disease and Systemic Amyloidosis. In Vivo Diagnosis This is the case of a 42year-old male with systemic amyloidosis, probably primary, and heart involvement. Physiopathological and clinical aspects are described as well as the rarity of the diagnosis in vivo. The limited aspects of therapy are also described. Arq Bras Cardiol, volume 70 (nº 2), 119-123, 1998 A amiloidose cardíaca é causada por depósito amilóide derivado de diferentes proteínas plasmáticas humanas, sendo mais comum no idoso. Este depósito amilóide pode levar a distúrbio da condução cardíaca, cardiomiopatia restritiva, baixo débito cardíaco e comprometimentos atriais isolados 1. Entre as cardiomiopatias causadas por distúrbios do metabolismo protéico, a amiloidose, ainda que rara, pode ser mencionada em primeiro lugar. Descrevemos o caso de um paciente com amiloidose sistêmica primária, comprometendo o coração, o fígado e, provavelmente, os pulmões. Ressaltam-se os aspectos fisiopatológicos, clínicos e a relativa raridade do diagnóstico in vivo. Discutem-se, ainda que limitados, os aspectos terapêuticos relacionados aos problemas cardíacos. Relato do Caso Homem de 42 anos apresentou história de tosse seca em agosto/95. Investigação clínica pelo estudo radiológico do tórax, várias pesquisas de escarro, teste Mantoux para tuberculose, além de outros exames laboratoriais rotineiros, Hospital do Coração de Ribeirão Preto/Fundação Waldemar B. Pessoa Correspondência: Rosana G. G. Mendes - Rua Tibiriça, 1094/802-14015- 120 - Ribeirão Preto, SP Recebido para publicação em 1/9/97 Aceito em 3/12/97 Fig. 1 - A) Radiografia do tórax evidenciando cardiomegalia à custa das cavidades direitas; B) eletrocardiograma mostrando, hemibloqueio anterior esquerdo, alterações difusas da repolarização ventricular e áreas inativas ântero-septal e lateral alta, além de baixa voltagem do complexo QRS. 119

Arq Bras Cardiol Fig. 2 - Ecodopplercardiografia evidenciando: A) aspecto granuloso da região apical e demais paredes do ventrículo direito (VD) (corte subxifóide de quatro câmaras); B) espessamento das paredes do VD, ventrículo esquerdo (VE) e septo interventricular (SIV) (corte transverso ao nível dos músculos papilares); C) derrame pericárdico (corte longitudinal); D) derrame pericárdico e hipocinesia importante da parede posterior do VE e SIV (corte transverso ao nível dos músculos papilares. AD- átrio direito; AE- átrio esquerdo; DP- derrame pericárdico; PP- parede posterior. foram infrutíferos na busca de uma causa para esse sintoma. A partir de abril/96 desenvolveu quadro de dispnéia progressiva, ortopnéia, edema de membros inferiores, ascite, tosse seca permanente, com perda de peso de 10kg em seis meses. Ao exame físico apresentava-se debilitado, emagrecido com intensa palidez cutânea, acianótico, ictérico +/4+, estase jugular +/4+ a 45 o, pulmões com estertores crepitantes bibasais e ictus cordis não propulsivo no 4º espaço intercostal esquerdo. À ausculta cardíaca apresentava ritmo regular em dois tempos, sem sopros ou atritos. A freqüência cardíaca era de 110bpm., a pressão arterial era de 90/60mmHg. À palpação abdominal, apresentava fígado palpável a 3cm da reborda costal direita, rombo, doloroso e com superfície lisa. Os membros inferiores apresentavamse com edema +++/4+, mole, frio e indolor. A teleradiografia do tórax mostrava área cardíaca discretamente aumentada às custas das cavidades direitas, derrame pleura bilateral moderado e discreto infiltrado intersticial bilateral difuso. O eletrocardiograma (ECG) revelou hemibloqueio anterior esquerdo, alterações difusas da repolarização ventricular, áreas inativas ântero-septal e lateral alta, além da baixa voltagem do complexo QRS (fig. 1). Com os diagnósticos presuntivos de cardiomiopatia restritiva ou pericardite constritiva procedeu-se ao exame ecodopplercardiográfico que foi compatível com cardiomiopatia hipertrófica ou restritiva do tipo infiltrativa: espessamento da parede ventricular, granulações ao nível de ventrículo direito, hipocinesia importante e derrame pericárdico não muito volumoso e não quantificado. Pelo estudo ecocardiográfico, a fração de ejeção era de 0,42, os diâmetros sistólico e diastólico do ventrículo esquerdo (VE) eram, respectivamente, de 33mm e 42,5mm, e as espessuras do septo interventricular e parede posterior do VE iguais em 17mm (fig. 2). Realizaram-se uma série de outros exames laboratoriais complementares (VHS, mucoproteínas, ácido indolacético, glicemia, uréia e creatinina, fosfatase alcalina, hemograma, gasometria arterial e imunofluorescência para moléstia de Chagas) que se apresentaram com valores normais. Os dados laboratoriais revelaram apenas discreta alteração da função hepática e hipoproteinemia leve. Já com a suspeita de que pudesse se tratar de uma amiloidose, realizaram-se biópsia retal, que foi normal, e biópsia transparieto-hepática por punção que revelou infiltrado amilóide ao redor de pequenos vasos sangüíneos no parênquima hepático. A cineangiocardiografia acom- 120

Fig. 3 - A) Biópsia cardíaca corada com vermelho Congo específico para substância amilóide (a substância amilóide apresenta-se com a coloração avermelhada no interstício e ao redor dos vasos; B) biópsia cardíaca corada com hematoxilina-eosina (a substância amilóide não se cora como pode-se observar ao redor dos vasos e no interstício); C) biópsia hepática corada com vermelho Congo mostrando a substância amilóide em tom avermelhado ao redor dos vasos e, em menor intensidade no interstício; D) biópsia hepática corada pela hematoxilina-eosina mostrando o infiltrado amilóide em tom claro em torno dos vasos e no interstício (aumento 400x). panhada de biópsia miocárdica confirmou o diagnóstico de cardiomiopatia restritiva e amiloidose cardíaca (fig. 3). Pela evidência de deposição amilóide no fígado, a investigação continuou no sentido de classificar a doença, como amiloidose sistêmica primária ou secundária. Já se dispunham de resultados negativos para tuberculose e a pesquisa de anti-hiv fora negativa. Foram ainda investigadas outras doenças do sistema conjuntivo, tumores renais e tumores de células plasmáticas, ressaltando-se que a pesquisa de proteínas de Bence-Jones fora negativa. A tomografia computadorizada de corpo inteiro revelou apenas discretos derrames pleurais e pericárdico, além de hepatomegalia. O paciente foi tratado de maneira convencional para insuficiência cardíaca congestiva, com digital, diuréticos e inibidor da enzima conversora da angiotensina. A utilização de terapêutica vasodilatadora teve que ser suspensa pela tendência de acentuação da hipotensão arterial sistêmica. O baixo débito cardíaco com hipotensão arterial rebelde ao tratamento foi responsável por várias internações, com o paciente dando entrada no setor de emergências, em julho/ 96, em parada cardiorrespiratória sem reversão às manobras clássicas de ressuscitação. Discussão A amiloidose cardíaca é causada por depósito amilóide derivado de diferentes proteínas plasmáticas humanas, sendo mais comum no idoso. Embora seja uma doença causada por um distúrbio do metabolismo protéico, o nome amilóide permaneceu devido à observação de Virchow que considerou a substância semelhante ao amido. Em conseqüência deste depósito podem ocorrer: distúrbio da condução cardíaca, cardiomiopatia restritiva, baixo débito cardíaco e comprometimentos atriais isolados. A origem da proteína amilóide é verdadeiramente um enigma. Foi proposto que este depósito fosse produto direto de células imunocompetentes que sofrem de alguma anormalidade na sua resposta imune normal. Parece claro que a sua produção ocorre, localmente, por ação de células do sistema imunológico, por supressão ou intolerância imunológica, sugerindose a participação de linfócitos inativos no produto final 1. É impossível, na prática, o estabelecimento de um padrão de apresentação clínica da amiloidose. Por este motivo, e a título de ilustração merece menção uma experiência na Índia incluindo seis pacientes (quatro homens e duas mulheres com idades variando de 27 a 60 anos) com amiloidose 121

Arq Bras Cardiol cardíaca comprovada por biópsia endomiocárdica. Quatro apresentaram insuficiência cardíaca e os dois outros, respectivamente, angina do peito e vertigens. Evidências de comprometimento extracardíaco só estiveram presentes em dois pacientes, quatro tinham anormalidades eletrocardiográficas, sendo que somente três apresentaram cardiomegalia ao estudo radiológico do tórax. O ecocardiograma sugeriu diagnóstico de amiloidose apenas em dois casos, cardiomiopatia restritiva em dois pacientes, cardiomiopatia dilatada em um e cardiomiopatia hipertrófica em um. O estudo hemodinâmico foi sugestivo de cardiomiopatia restritiva em quatro pacientes e cardiomiopatia hipertrófica em um 2. Um paciente que apresentou cateterismo cardíaco normal em primeira instância, após nove meses apresentou evidências de cardiomiopatia dilatada ao se repetir o estudo hemodinâmico. Estas observações enfatizam as variadas manifestações da amiloidose cardíaca e a necessidade de se suspeitar do diagnóstico em casos de insuficiência cardíaca de causa desconhecida. Este tipo de observação é pertinente, também, para pacientes idosos com doença coronária crônica que apresentam rápida deterioração da função ventricular, sem infarto agudo do miocárdio evidente 3. O clínico deve suspeitar de amiloidose cardíaca quando insuficiência cardíaca crônica intratável se desenvolve em paciente com 50 anos ou mais de idade 3. No presente caso, apesar da idade ser um pouco abaixo da faixa etária mais freqüente para o aparecimento da amiloidose, chamou a atenção a evolução da insuficiência cardíaca, que tinha, inicialmente caráter restritivo, evoluindo com baixo débito e hipotensão progressivos intratáveis. As manifestações de doença restritiva aliadas à baixa voltagem do complexo QRS no ECG, e um ecocardiograma que mostrava a associação de acentuada hipertrofia de câmaras ventriculares com restrição do enchimento diastólico, foram fundamentais para reforçar a suspeita clínica. Os valores numéricos das enzimas hepáticas, proteínas totais e frações, bem como a eletroforese de proteínas, não foram anotados na história do paciente por falha de observação e, infelizmente, os laudos dos exames que estavam com o paciente foram extraviados. Por esse motivo, os valores não foram apresentados na descrição do caso. Avaliando-se o prontuário do paciente havia anotação qualitativa de que os dados laboratoriais revelaram apenas disfunção hepática discreta e hipoproteinemia leve, que eram compatíveis com os dados do exame físico realizado em diversas consultas. O coração pode ser o órgão alvo, ou ser comprometido durante o desenvolvimento da amiloidose sistêmica primária ou secundária. Neste contexto, a infiltração amilóide cardíaca pode ocorrer em quatro circunstâncias: 1) como parte da amiloidose sistêmica primária ou associada ao mieloma múltiplo, causada pelo depósito da proteína amilóide AL, que é uma imunoglobulina; 2) como parte de amiloidose sistêmica secundária, associada a doenças crônicas inflamatórias (doença de Crohn, artrite reumatóide), causada pelo depósito da proteína amilóide AA, com menor comprometimento do coração; 3) como manifestação de uma doença hereditária autossômica dominante, causada pelo depósito de proteína amilóide AF, que é uma forma variante de uma pré-albumina (ou transtiretina); 4) como fenômeno localizado no paciente idoso, pelo depósito da proteína amilóide SSA, que também é uma pré-albumina (ou transtiretina) anormal 4. A classificação da amiloidose apresentase bastante confusa na literatura. Nesta classificação moderna de acordo com o tipo do amilóide, fica difícil enquadrar o presente caso, já que não foi possível a pesquisa para a identificação do tipo de proteína amilóide. O paciente não tinha história familiar, era jovem (42 anos), não se conseguindo identificar doenças crônicas inflamatórias, infecciosas, auto-imunes clássicas ou tumorais. O diagnóstico foi definido como amiloidose sistêmica primária, com grande comprometimento cardíaco e discreto comprometimento hepático, além de um provável comprometimento pulmonar, o qual não foi possível diagnosticar por biópsia, devido à rápida deterioração clínica do paciente. Mesmo assim, considerou-se uma classificação da amiloidose cardíaca que separa a amiloidose sistêmica primária da amiloidose associada ao mieloma múltiplo. Embora não se tenha pesquisado o tipo de proteína amilóide de depósito, por falta de recursos técnicos, é bastante provável que seja do tipo AL. Pacientes com amiloidose AL e insuficiência cardíaca congestiva têm pior prognóstico. Até o presente, recuperações desses pacientes não têm sido descritas. Experiência com 140 pacientes em centro de referência internacional americano mostrou que, entre 1983 e 1994, apenas 3 (2,1%) pacientes apresentaram importante resolução da insuficiência cardíaca e evidência de remissão da doença. Os três pacientes foram tratados com mostarda nitrogenada (Melphalan), um agente antineoplásico que pode causar depressão da medula óssea e é considerado como carcinogênico 5. Porém, não se tem notícia da possibilidade desse tipo de tratamento como rotina. A terapêutica, infelizmente, é apenas sintomática, devendo se evitar, se possível, digitálicos e antagonistas do cálcio, uma vez que alguns estudos têm demonstrado aumento da sensibilidade a esses medicamentos 4. A formação de trombo no átrio esquerdo é rara em pacientes com ritmo sinusal, mas em pacientes com grave infiltração amilóide atrioventricular pode haver perda da contribuição atrial e formação de trombo. Esta observação sugere que pacientes com amiloidose cardíaca grave necessitam de anticoagulação quando a função atrial estiver comprometida 6. Finalmente, pode-se mencionar o transplante como tratamento da amiloidose cardíaca, porém a pequena experiência mundial demonstra a recidiva da amiloidose no coração transplantado, além de não se tratar a doença amilóide em outros órgãos. No nosso paciente, utilizou-se o tratamento clínico clássico para insuficiência cardíaca refratária com digital, diurético, inibidor da enzima conversora de angiotensina e aminas simpaticomiméticas. Em nenhum momento o paciente demonstrou algum benefício ao tratamento, cursando com incrível progressão da hipotensão arterial até o óbito. Restaria discutir brevemente a participação do sistema nervoso autonômico na amiloidose. Esta participação pode se manifestar por disfunção autonômica cardiocirculatória e 122

disfunção glandular. São manifestações clínicas destas disfunções: hipotensão ortostática, diminuição do coeficiente de variação do intervalo R-R no ECG, diminuição do acúmulo de [123I] metaiodobenzilguanidina (MIBG) no coração, redução da lágrima, de secreções salivares e anidrose 7. A disfunção autonômica cardiocirculatória ocorreu no caso descrito, com certeza, pela tendência progressiva de queda da pressão arterial sistêmica, sem resposta a altas doses de catecolaminas utilizadas na fase terminal. A hipotensão motivou, inclusive, a suspensão da utilização do inibidor da enzima conversora. As manifestações glandulares não foram importantes a ponto do paciente valorizar os sinais e sintomas pertinentes. Aos exames clínicos cotidianos, os sinais e sintomas da disfunção autonômica glandular não foram marcantes a ponto de serem notados. Os dados que justificam este relato incluem: a) a relativa raridade da amiloidose cardíaca; b) a atualização de alguns aspectos da amiloidose cardíaca; c) a comprovação diagnóstica in vivo através da biópsia endomiocárdica utilizando-se a coloração com vermelho Congo e, principalmente; d) o destaque para a importância da suspeita clínica para o diagnóstico. Referências 1. Hesse A, Altland K, Linke RP et al - Cardiac amyloidosis: a review and report of a new transthyretin (prealbumin) variant. Br Heart J 1993; 70: 111-5. 2. Talwar KK, Kumar V, Agarwal R, Chopra P, Wasir HS - Cardiac amyloidosis: hemodynamic, echocardiographic and endomyocardial biopsy studies. Ind Heart J 1991; 44: 387-90. 3. Petersen EC, Engel JA, Radio SJ, Canfield TM, McManus BM - The clinical problem of occult cardiac amyloidosis. Forensic implications. Am J Forens Med Path 1992; 13: 225-9. 4. Mc Mullan MR, O Connel JB - Myocarditis and other specific heart muscle disease. In: Schlant RC, Alexander RW - Hurst s The Heart Companion Handbook. New York: McGraw-Hill, 1994: 181-9. 5. Dubrey S, Mendes L, Skinner M, Falk RH - Resolution of heart failure in patients with AL amyloidosis. Ann Itern Med 1996; 125: 481-4. 6. Dubrey S, Pollak A, Skinner M, Falk RH - Atrial trombi occurring during sinus rhythm in cardiac amyloidosis: evidence for atrial electromechanical dissociation. Br Heart J 1995; 74: 541-4. 7. Arima T, Ando Y, Okamura R, Sakashita N, Tanaka Y, Ychino M, Ando M - Secondary amyloidosis with severe autonomic dysfunctions. J Auton Syst 1995; 52: 77-81. 123