Capítulo 05. Miopatias e Anestesia Ana Karla Arraes von Sohsten Heber de Moraes Penna Carlos Darcy Alves Bersot

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Transcrição:

Capítulo 05 Miopatias e Anestesia Ana Karla Arraes von Sohsten Heber de Moraes Penna Carlos Darcy Alves Bersot

Miopatias e Anestesia Introdução Miopatias são desordens estruturais e/ou funcionais dos músculos esqueléticos, resultantes de uma variedade de etiologias. Anormalidades na estrutura ou no metabolismo da célula muscular que levam a vários padrões de fraqueza muscular e, consequentemente, de manifestações clínicas. As miopatias devem ser diferenciadas das doenças do neurônio motor, das neuropatias periféricas e das doenças da junção neuromuscular. Apesar de terem baixa prevalência na população em geral, podem levar a graves complicações durante procedimentos anestésicos, como hipertermia maligna, rabdomiólise, crises miotônicas e piora da função respiratória 1. As miopatias podem ser classificadas em duas categorias principais: hereditárias ou adquiridas. O curso temporal, o padrão da fraqueza muscular e a ausência ou presença de história familiar de miopatia ajudam a distinguir entre os dois tipos. O início dos sintomas em idade precoce associado à longa duração da doença sugere o diagnóstico de miopatia hereditária, enquanto um início súbito ou subagudo dos sintomas e em idade mais tardia sugere miopatia adquirida. As duas categorias apresentam ainda subclassificações, conforme o Quadro 1 2. Quadro 1 - Classificação das miopatias Miopatias congênitas Distrofias musculares Miopatias hereditárias Canalopatias Miopatias metabólicas primárias Miopatias mitocondriais Miopatias adquiridas 70 Educação Continuada em Anestesiologia - Volume IV Miopatias inflamatórias Miopatias tóxicas e induzidas por drogas Miopatias associadas a doenças sistêmicas e infecciosas Quadro clínico e diagnósticos gerais A maioria das desordens musculares produz fraqueza e atrofia muscular, especialmente da musculatura proximal, afetando, em menor grau de intensidade, os grupos musculares distais. Algumas miopatias, como as distrofias musculares, desenvolvem-se precocemente; outras, mais tardiamente. Algumas pioram progressivamente sem boa resposta ao tratamento; outras são tratáveis e permanecem estáveis ao longo dos anos. O diagnóstico das desordens musculares é baseado em um tripé investigativo: dosagem de enzimas específicas; estudos eletrofisiológicos e biópsia muscular, mas sempre precedido de um exame neurológico completo e cuidadoso. Os dois primeiros exames são vistos como procedimentos screening e o último, como definitivo, fornecendo, na grande maioria, um diagnóstico mais exato e definitivo. Todos têm falhas e limitações e devem ser analisados

em conjunto com o quadro clínico e outros exames complementares específicos para cada tipo de miopatia 3. É frequente a necessidade de aconselhamento genético familiar. Miopatias Hereditárias Distrofias Musculares e Miopatias Congênitas As distrofias musculares envolvem um grupo diverso de doenças, com herança genética, caracterizadas por fraqueza muscular progressiva e degeneração muscular. Os músculos envolvidos variam de acordo com o tipo de distrofia (Quadro 2) 4,5. Quadro 2 Músculos envolvidos nas diversas distrofias Tipo Distrofia muscular de Becker Distrofia muscular de Duchenne Distrofia muscular de Emery-Dreifuss Distrofia muscular distal Distrofia muscular facioescapuloumeral Distrofia muscular de cintura e membros Distrofia muscular miotônica Distrofia muscular oculofaringeana Músculos Envolvidos Inicialmente, tronco e membros inferiores Na fase avançada, toda a musculatura estriada Ombros, membros superiores e tornozelos Mãos, antebraços e pernas Face, ombros, membros superiores e, ocasionalmente, membros inferiores Ombros e cintura pélvica Face, mãos, pés e pescoço Pálpebras e faringe A distrofia muscular de Duchenne (DMD) e a distrofia de Becker (DB) figuram entre as mais prevalentes, ocorrendo por anormalidades ligadas ao cromossoma X em caráter recessivo. O defeito genético inibe a produção normal de distrofina, proteína estabilizadora muscular, essencial para manter a integridade do sarcolema, que, uma vez rompido, leva ao aparecimento clínico da patologia. A DMD tem incidência de 30 casos para 100.000 nascidos vivos e a DB, de 3-6 por 100.000 nascimentos de homens 6. O início dos sintomas na DMD ocorre na primeira infância como fraqueza muscular e retardo do desenvolvimento motor. O atraso na deambulação até por volta dos 15 meses de vida pode ser o primeiro sinal. Seguem fraqueza progressiva dos membros inferiores, pseudo-hipertrofia das panturrilhas e significativo aumento de CPK. Praticamente todos os pacientes são sintomáticos aos 5 anos. A atrofia muscular progressiva e severa leva à perda da capacidade de deambular em torno dos 14 anos. Na DB, pela perda da distrofina ser parcial, os sintomas se iniciam na adolescência ou na fase adulta e têm evolução mais lenta. Nas duas, nas fases mais evolutivas, ocorrem cardiomiopatia, arritmia cardíaca e falência respiratória com impossibilidade de desmame ventilatório. A avaliação pré-operatória deve incluir provas de função pulmonar e rigorosa investigação do sistema cardiovascular 6,7. Miopatias e Anestesia 71

Por serem mais prevalentes, o registro de anestesias em portadores de DMD e DB também é maior. As complicações anestésicas relatadas nesses pacientes podem ser divididas em quatro grupos de manifestações: 1. Falência cardíaca intraoperatória; 2. Rabdomiólise e parada cardíaca por hipercalemia sem administração de succinilcolina; 3. Hipecalemia e parada cardíaca após o uso de succinilcolina; 4. Síndrome de Hipertermia Maligna (HM). Os relatos de comprometimento cardiovascular grave foram, em sua maioria, de pacientes submetidos à cirurgia de coluna, em que a causa pode ser atribuída a grandes perdas sanguíneas ou à disfunção miocárdica previamente existente. Em pacientes com DMD, as rabdomiólises na ausência de succinilcolina foram observadas durante exposição mínima na indução da anestesia e com uso de halotano. Os níveis de potássio chegaram a 8 meq/l. Dantrolene foi utilizado empiricamente após documentação de acidose metabólica e respiratória, sem a presença de febre ou com discreto aumento de temperatura. Relatos no período de pós-operatório foram confirmados quando do emprego de halotano, isoflurano e sevoflurano, tendo sido a evolução desfavorável na metade dos casos. Há registros de casos semelhantes em portadores de DB em que o dantrolene foi empregado; porém, sintomas de hipermetabolismo que precedessem a rabdomiólise e a hipercalemia não ocorreram. Nas evidências de rabdomiólise e parada cardíaca após succinilcolina, a maioria não apresentava diagnóstico de miopatia por ocasião do evento, sendo investigado e firmado secundariamente ao quadro. A mortalidade foi de 30%. Considerando a possibilidade de anestesia em pacientes sem suspeição de miopatias, o uso da succinilcolina deve se limitar a situações extremas, em que outras alternativas não estejam disponíveis para acessar as vias aéreas 6. Casos suspeitos de hipertermia maligna têm sido reportados na DMD e na DB. Pacientes com DMD desenvolveram febre inexplicada e taquicardia com o uso de halotano e outros tiveram rabdomiólise sem hipercalemia. Na maioria dos casos, já havia diagnóstico prévio de miopatia. A dificuldade em se estabelecer a verdadeira correlação entre as distrofias e hipertermia maligna reside no fato de que as rabdomiólises e os quadros associados compartilham muitos sintomas de uma verdadeira crise de hipertermia maligna, e até mesmo os quadros de hipertermia maligna são bastante variáveis; rabdomiólise e acidose lática podem não existir 8. Parece não haver confirmação genética entre DMD e HM porque a mutação genética da DMD encontra-se ligada ao cromossomo X, enquanto na HM está usualmente locada no cromossomo 19. A existência da demonstração de testes positivos à contratura cafeína/ halotano em portadores de distrofia tem sido questionada; uma vez que já existe alteração intrínseca do músculo distrófico, tornando-o mais sensível ao teste 9. A real preocupação da não utilização de agentes voláteis e succinilcolina em portadores de distrofia talvez seja a prevenção da ocorrência de rabdomiólise e/ou hipercalemia, e não a possibilidade de desencadear crise de hipertermia maligna. 72 Educação Continuada em Anestesiologia - Volume IV

Está bem estabelecido que mutações no gene do receptor de ryanodina (RYR1) estão associadas à suscetibilidade para HM 9-11. Dessa forma, algumas miopatias congênitas, em que as mutações genéticas também se localizam nesse mesmo gene, estão predispostas a desenvolver crise de HM quando expostas aos agentes desencadeantes. A doença do núcleo central (central core disease), a multiminicore disease e a miopatia por desproporção do tipo de fibra encontram-se nesse grupo 12,13. A central core disease constitui uma rara miopatia hereditária autossômica dominante que apresenta, histologicamente, núcleos centrais no interior da fibra muscular, preferencialmente nas fibras do tipo I. A multiminicore disease é transmitida de forma autossômica recessiva, apresenta grave comprometimento da musculatura axial e não há atividade enzimática oxidativa do núcleo da fibra muscular em estudos histoquímicos 14. Ainda sabidamente associada à HM temos a síndrome de King-Denborough e a miopatia de Evans 11. A síndrome de King-Denborough e a síndrome de Noonan compartilham as mesmas características, como estatura baixa, pescoço alado, implantação baixa das orelhas, pectus escavatum, criptorquidia; algumas vezes, surdez e/ou discrasia sanguínea; exceto a miopatia, que ocorre somente na primeira. A herança genética ainda não foi estabelecida e a maioria dos casos é esporádica, existindo um único registro de mutação no gene do receptor RYR1 15. Miopatias Mitocondriais Por meio de processos que incluem o ciclo de Krebs, o transporte de elétrons na cadeia respiratória e a fosforilação oxidativa; a mitocôndria é capaz de fornecer o principal substrato energético molecular para as células 16. Os distúrbios desses mecanismos fisiológicos levam ao aparecimento das doenças mitocondriais, ocasionadas por mutações primárias ou herdadas. O primeiro estágio da fosforilação, a conversão de NADH em NAD e o transporte de elétrons constituem as etapas mais frequentemente acometidas nas anomalias mitocondriais. As três principais formas de apresentação das doenças mitocondriais congênitas são desordem multissistêmica infantil fatal; miopatias e encefalopatias, tendo as duas últimas evoluções e prognósticos variáveis, conforme o uso de suplementos metabólicos, as modificações dietéticas e, às vezes, o transplante de órgãos; esse último pode ser o único tratamento definitivo. A incidência é estimada em 1 para 4.000 nascimentos 17. Atualmente, mais de 200 pontos de mutação no genoma mitocondrial estão reportados e, por causa disso, as manifestações clínicas se mostram extremamente variáveis e podem se apresentar em diferentes idades. Em geral, fraqueza muscular progressiva e intolerância ao exercício são mais frequentes. Entretanto, pode haver debilidade da musculatura extrínseca do olho, das pálpebras, da face e do pescoço. Em estágios mais avançados, dificuldade na fala e na deglutição também tem sido relatada. O grau de intolerância ao exercício tem grande variabilidade, indo desde problemas com o simples caminhar até aqueles que manifestam sintomas somente com exercícios físicos extremos. Dor e lesão muscular resultam em rabdomiólise e mioglobinúria, que podem culminar em insuficiência renal temporária ou permanente. Uma vez que a deficiência na produção de ATP constitui o principal ponto de acometimento da doença, órgãos com altas demandas metabólicas como cérebro, coração e rins, Miopatias e Anestesia 73

quando atingidos, demonstram quadro clínico com cefaléia, deficiência auditiva, convulsão, dificuldade de aprendizado e até retardo mental. Devem ser levadas em consideração as cardiomiopatias e as anormalidades da condução cardíaca, como bloqueios de ramo e a síndrome de Wolff-Parkinson-White. Podem ocorrer ainda insuficiência respiratória com necessidade de suporte ventilatório, distúrbios gastrointestinais traduzidos por vômitos ou disfagia inexplicada, deficiência pancreática exócrina e diabetes 18 Pacientes com miopatias. ainda não esclarecidas merecem cuidados especiais, mesmo tendo o risco estimado de desenvolver hipertermia maligna ou rabdomiólise em torno de 1,09% 19. Um caso de teste positivo à contratura com cafeína e halotano em paciente portadora de miopatia mitocondrial foi relatado, mas o emprego de anestésicos capazes de desencadear crises não parece estar relacionado em caso de miopatias mitocondriais 20. Miopatias adquiridas Miopatias Inflamatórias As miopatias inflamatórias são um grupo de doenças raras (incidência anual de 1/100.000 nos EUA) que inclui a polimiosite (PM), a dermatomiosite (DM) e a miopatia necrotizante auti-imune (MN). São doenças da fase adulta e acometem mais mulheres que homens 21 A dermatomiosite se apresenta como fraqueza muscular proximal de início agudo. ou insidioso, dolorosa, além de rush cutâneo característico nas superfícies extensoras das mãos e dos dedos, calcificação subcutânea e prurido. Na polimiosite, os sintomas se limitam ao tecido muscular e a disfagia aparece em um terço dos casos, assim como o quadro de fraqueza na musculatura facial. A miopatia necrotizante se apresenta como fraqueza muscular proximal progressiva, de início subagudo e sem rush cutâneo, geralmente mais severa que na polimiosite. Há aumento de incidência das doenças pulmonares intersticiais, que leva a dispnéia e tosse 22 ; desordens autoimunes, neoplasia e doenças cardiológicas, que geram defeitos na condução e arritmias dos pacientes portadores de PM, DM e MN 23. Em relação ao diagnóstico laboratorial, a creatina kinase sérica (CK) está bastante aumentada (acima de dez vezes a taxa normal) na maioria dos casos de miopatia inflamatória. Por causa das doenças pulmonares e cardíacas associadas, testes de função pulmonar e estudos por imagem do tórax, assim como rigorosa avaliação cardiológica, estão indicados na avaliação pré-operatória. Miopatias Tóxicas Induzidas por Drogas Várias drogas usadas na prática clínica podem levar à toxicidade do tecido muscular de forma inesperada, gerando diferentes graus de manifestações clínicas: de sensação de desconforto e fraqueza muscular a danos permanentes. Pode haver elevação da CK e mioglobinúria em pacientes sem história prévia de doenças musculares. A miotoxicidade induzida por drogas é causada por uma variedade de mecanismos: lesão de organelas da fibra muscular, como mitocôndrias e lisossomos; alterações dos antígenos musculares, que geram respostas imunológicas ou causam distúrbios hidroeletrolíticos e desequilíbrio nutricional na célula muscular. No entanto, a miopatia 74 Educação Continuada em Anestesiologia - Volume IV

tóxica deve ser um diagnóstico de exclusão, após serem afastadas as causas endócrinas, as miopatias hereditárias e as diversas miopatias adquiridas 24. Entre as possíveis substâncias que produzem as miopatias tóxicas, as mais comum são as estatinas (estudos recentes mostram que cerca de 10% dos usuários apresentam mialgia como principal efeito colateral) e os corticosteroides usados cronicamente, que levam à seletiva perda dos filamentos de miosina 25,26. Quadro 3 Principais substâncias envolvidas nas miopatias tóxicas e induzidas por drogas Estatinas e fibratos D-Penicilamina Interferon Procainamida Zidovudina Colchicina Vincristina Cloroquina Hidroxicloroquina Álcool Germanium Corticosteroides Amiodarona Quinacrina Miopatias Associadas a Doenças Sistêmicas e Infecciosas Algumas doenças sistêmicas podem cursar tanto com disfunção da junção neuromuscular como com as miopatias. Diabetes mellitus, alcoolismo, insuficiência renal e doenças neoplásicas, além de infecção pelo HIV, sepse e infecções fúngicas, estão entre as principais entidades que podem causar fraqueza em diversos grupos musculares 27. Não se pode esquecer que, com o avanço da medicina intensiva, um grande número de pacientes sobrevive por longos períodos em ventilação mecânica e, muitas vezes, o diagnóstico de fraqueza muscular pode ser negligenciado por causa da maior atenção ao sistema cardiorrespiratório 28. Como principais fatores predisponentes à miopatia associada a doenças sistêmicas encontram-se o tempo prolongado de ventilação mecânica, o uso de relaxantes musculares, principalmente o pancurônio, e longos períodos de imobilidade. Do ponto de vista histológico, essa miopatia é caracterizada por variações anormais das fibras musculares, presença de vacúolos, degeneração gordurosa e necrose muscular 29. Essa necrose pode progredir para rabdomiólise franca em muitos casos. Conduta anestésica O manejo anestésico de pacientes com patologias musculares é um desafio. Além das respostas esporádicas imprevisíveis, como rabdomiólise e intenso catabolismo, podem ocorrer complicações associadas à fraqueza muscular respiratória, miocardiopatia prévia e alterações na anatomia das vias aéreas, entre outras. Para identificar e minimizar os riscos, uma avaliação pré-anestésica minuciosa é fundamental. Portadores de miopatia devem ter diagnóstico baseado em aspectos clínicos, mas, se possível, deve-se estabelecer o mecanismo molecular subjacente, identificado através do exame histopatológico. Miopatias e Anestesia 75

Todos os pacientes portadores de miopatia devem ser investigados do ponto de vista cardiológico. Em muitas miopatias, de fato, pode-se observar uma cardiopatia pré-clínica ou uma cardiomiopatia dilatada manifesta, além de distúrbios de condução, encurtamento do intervalo PQ, prolongamento do QT, especialmente em estágios avançados 30,31. A função respiratória e a capacidade do paciente para mobilizar secreções devem ser avaliadas. Em estágios avançados, essas patologias são acompanhadas por insuficiência respiratória; assim, adequado suporte ventilatório pós-operatório pode ser necessário e a disponibilidade de uma unidade de terapia intensiva pós-operatória, prudente. Baseado no grau de fraqueza da musculatura esquelética, a indução com via aérea em sequência rápida pode prevenir a aspiração broncopulmonar. A dosagem pré-operatória do potássio sérico basal e da creatina quinase em pacientes com doenças musculares é importante para avaliar a integridade da membrana muscular, por causa do risco aumentado de rabdomiólise. Considerar a não utilização de soluções com lactato. Distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos, alterações da coagulação e hiperglicemia devem ser rapidamente corrigidos. É recomendado jejum mínimo de 6-8 horas para sólidos e de 2 horas para líquidos claros, conforme recomendações habituais. Estudos sugerem que esses pacientes não só estão em maior risco de aspiração do conteúdo gástrico, por causa da fraqueza muscular e dismotilidade intestinal, mas também podem desencadear uma crise metabólica pelo inadequado metabolismo da glicose 32. Todas as técnicas anestésicas e drogas apresentam vantagens e desvantagens em pacientes portadores de miopatias. Assim, os anestésicos voláteis são contraindicados apenas nas miopatias congênitas com o risco associado de hipertermia maligna 32. Esses fármacos também têm sido implicados em rabdomiólise e reações semelhantes a HM. O uso de bloqueador neuromuscular despolarizante deve ser evitado em pacientes com doenças neuromusculares. A succinilcolina é um gatilho reconhecido para desencadear HM em pacientes suscetíveis. Além disso, pode levar à despolarização prolongada com liberação de potássio para o meio extracelular e influxo de cálcio muscular, que aumentaria o risco de rabdomiólise. Esses efeitos são mais proeminentes em pacientes com receptores de acetilcolina extrajuncional, como ocorre no paciente portador de DMD. Como os mesmos efeitos podem ser desencadeados por anticolinesterásicos, estes também não são recomendados. A recente introdução da gamaciclodextrina (sugamadex) oferece alternativa atraente nessas circunstâncias. Se o bloqueio neuromuscular for necessário, um bloqueador neuromuscular adespolarizante deve ser preferido. A anestesia venosa total tem sido defendida por muitos autores como a técnica anestésica mais segura, porém, o uso de propofol tem sido questionado por apresentar componente lipídico, que pode afetar a oxidação de ácidos graxos, e por seus efeitos diretos sobre a função mitocondrial. Ambos podem predispor o paciente à síndrome de infusão do propofol, sendo essa caracterizada por acidose láctica, bradicardia, rabdomiólise e insuficiência renal. Embora seja mais frequente com infusões de maior duração (> 48 horas), em pacientes suscetíveis, mesmo infusões de curta duração podem levar ao quadro 33-35. 76 Educação Continuada em Anestesiologia - Volume IV

A ketamina não tem sido implicada como agente prejudicial, e suas propriedades analgésicas podem ser um adjuvante nesses pacientes 17. Por fim, autores sugerem que esses pacientes deveriam ter prioridade para realizar o procedimento anestésico e todas as medidas profiláticas e terapêuticas para o adequado preparo cirúrgico disponível. Mesmo em casos de extremo cuidado no intraoperatório, o acompanhamento em unidade de terapia intensiva logo após a cirurgia é altamente recomendado. Referências bibliográficas: 1. Trevisan CP, Accorsi A, Morandi LO et al. Undiagnosed myopathy before surgery and safe anaesthesia table. Acta Myol, 2013;32:100-105. 2. Muthusamy P, Tavee J Myopathy. Disponível em: http://www.clevelandclinicmeded.com/medicalpubs/diseasemanagement/neurology/myopathy/ 3. Barnes PRJ, Hilton-Jones D. Myopathies in Clinical Practice, 1st Ed. London, Martin Dinitz, 2003. 4. Ramani R. Skin and Musculoskeletal Diseases, em: Hines RL, Marschall KE. Stolelting s Anesthesia and Co- -Existing Disease. 6th Ed. New York, Saunders Elsevier, 2012; 437-465. 5. Domingo R, Satya-Murti S, Baustian GH. Muscular Dystrophies and Related Myophathies. Elsevier BV; 2011 [Acesso em 31 de mar 2014]. Disponível em: 2.0-1014471 www.clinicalkey.com/#!/contentplayerctrl/ doplaycontent/21-s2.0-1014471 6. Gurnaney H, Brown A, Litman RS. Malignant hyperthermia and muscular dystrophies. Anesth Analg, 2009;109:1.043-1.048. 7. Urban MK. Muscle Diseases, em: Fleisher LA. Anesthesia and Uncommon Diseases. 6th Ed. Philadelphia, Saunders Elsevier, 2012;296-318. 8. Bandschapp O, Iaizzo PA, Girard T. Malignant Hyperthermia - Update of diagnostics. Trends Anaesth Crit Care, 201;2:218-223. 9. Litman RS. Management of malignant hyperthermia and malignant hyperthermia-susceptible patients in the ambulatory setting. ASA Refresher Courses Anesthesiol, 2011;39:86-91. 10. Correia ACC, Silva PCB, Silva BA. Hipertermia maligna: aspectos moleculares e clínicos. Rev Bras Anestesiol, 2012;62:820-837. 11. Davis M, Brown R, Dickson A et al. Malignant hyperthermia associated with exercise-induced rhabdomyolysis or congenital abnormalities and a novel RYR1 mutation in New Zealand and Australian pedigrees. Br J Anaesth, 2002; 8:508-515. 12. Rosenberg H. Myopathic changes in malignant hyperthermia-susceptible patients. Can J Anesth, 2013;60:955-959. 13. Clarke NF, Waddell LB, Sie LT et al. Mutations in TPM2 and congenital fibre type disproportion. Neuromuscul Disord, 2012;22:955-958. 14. Klingler W, Rueffert H, Lehmann-Horn F et al. Core myopathies and risk of malignant hyperthermia. Anesth Analg, 2009;109:1.167-1.173. 15. Benca J, Hogan K. Malignant hyperthermia, coexisting disorders, and enzymopathies: risks and management options. Anesth Analg, 2009;109:1.050-1.053. 16. Reddy SK, Levy RJ. Mitochondrial Disease, em: Fleisher LA. Anesthesia and Uncommon Diseases. 6th Ed. Philadelphia, Saunders Elsevier, 2012;433-443. 17. Ellinas H, Frost EAM. Mitochondrial disorders: a review of anesthetic considerations. Middle East J Anesthesiol, 2011;21:235-242. 18. Driessen J, Willems S, Dercksen S et al. Anesthesia-related morbidity and mortality after surgey for muscle biopsy in children with mitochondrial defects. Pediatr Anesth, 2007;17:16-21. 19. Flick RP, Gleich SJ, Herr MM et al. The risk of malignant hyperthermia in children undergoing muscle biopsy for suspected neuromuscular disorder. Pediatr Anesth, 2007;17:22-27. 20. Fricker RM, Raffelsberger T, Rauch-Shorny S et al. Positive malignant hyperthermia susceptibility in vitro test in a patient with mitochondrial myopathy and myoadenylate deaminase deficiency. Anesthesiology, 2002; 97:1.635-1.637. 21. Dimachkie MM, Barohn RJ. Idiopathic inflammatory myopathies. Semin Neurol, 2012;32:227-236. Miopatias e Anestesia 77

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