ARGUMENTAÇÃO E INTERSUBJETIVIDADE: QUANDO PARTIR DO ZERO É VANTAGEM Eliana TAVARES Universidade Federal do Rio Grande - FURG Resumo Neste artigo, exploro a relação entre como o Jornal Correio do Povo apresentou as primeiras notícias relativas à renúncia do papa Bento XVI, a partir do texto EUA: católicos querem partir do zero (14/02/2013: 08), e o texto apresentado pelo publicitário Alexandre Periscinoto, durante encontro da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, em 1977 (Periscinoto: 1995). Para tanto, valho-me da noção de intersubjetividade, tal como a apresenta Benveniste (1995: 293), no final do capítulo Da subjetividade na linguaguem, buscando relacioná-la à noção de argumentação, como a apresenta Tavares (2007). Palavras-chave: argumentação; intersubjetividade; significação Introdução Neste artigo, exploro a relação entre como o Jornal Correio do Povo apresentou as primeiras notícias relativas à renúncia do papa Bento XVI, a partir do texto EUA: católicos querem partir do zero (14/02/2013:08), e o texto apresentado pelo publicitário Alexandre Periscinoto, durante encontro da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, em 1977 (Periscinoto, 1995). Para tanto, valho-me da noção de intersubjetividade, tal como a apresenta Benveniste (1991:293), no final do capítulo Da subjetividade na linguagem, buscando relacioná-la à noção de argumentação, como a apresenta Tavares (2007). Enquanto a manchete do jornal, na medida em que apresenta um desejo de renovação, constitui a Igreja Romana e cerca de 2000 anos de História como um passado a ser superado, o texto de Periscinoto, ao estabelecer uma analogia entre o marketing e essa Igreja, faz surgir seu equivocado eixo de atuação, por deixar de propagar o que seria seu produto mais precioso: a fé. Periscinoto (1995) chama a atenção para o quanto a Igreja Romana, e o papa de então, Paulo VI, sabiam se valer do sentido promocional de uma imagem. Assim, seria
pertinente questionar: em que crise tal se encontra a Igreja para que um de seus representantes veja recomeçar do zero como uma oportunidade, uma vantagem. Revisão bibliográfica Tavares (2007) trabalha com uma concepção enunciativa de argumentação, a partir da qual evoca a necessidade de investigar, por exemplo, a natureza do auditório e, dessa forma, dos papéis atribuídos aos interlocutores. Diante de tal configuração, a intersubjetividade, de que trata Benveniste (1991), é constituída, uma vez que o próprio orador, ethos, e as imagens ou paixões que dá a conhecer, pathos, configuram-se na perspectiva enunciativa analogamente à retórica aristotélica. Estabelecer um estudo produtivo a partir de uma noção de semântica-enunciativa requer não apenas estudar a natureza das relações linguísticas que estabelecem as operações argumentativas, mas antes ver de que maneira essas unidades assumem funções linguísticas a partir das relações interativas estabelecidas pelos interlocutores. A enunciação aparece então como eixo de articulação que envolve os aspectos constitutivos do contínuo semântica-pragmática: entre aquilo que é da língua stricto sensu e aquilo que seria relativo a seu exterior discursivo. Aproximar argumentação e enunciação possibilita explorar as relações existentes, portanto, entre semântica e pragmática, bem como perscrutar as fronteiras em que se tocam - liame a partir do qual a fluidez da relação interior e exterior linguístico pode ser posta em evidência. Se por um lado não resta dúvida quanto à natureza semântica da argumentação, por outro se impõe a dificuldade de estabelecer sua relação com o discurso, a partir da enunciação. É preciso lembrar que, na interação, os interlocutores manipulam não somente ferramentas argumentativas colocadas à disposição pela língua, como também uma série de regras pragmáticas, discursivas, relativas à sua possibilidade de estabelecimento e de desenvolvimento, construindo, assim, uma orientação argumentativa. Dessa forma, é nesse eixo, nessa borda enunciativa, que os interlocutores exibem suas habilidades no manuseio de categorias da língua e de categorias postas pela enunciação; categorias marcadas, notadamente, no sistema gramatical da língua, bem como categorias relativas ao funcionamento discursivo da argumentação. Considerar o contínuo semântica-pragmática estabelece um amálgama entre a constituição da significação (objeto mesmo da semântica) e os efeitos que o sentido pode produzir, por meio de implícitos e de atos de fala, por exemplo; bem como o
estatuto de sua arquitetura formal, uma espécie de gramática do discurso, em que categorias como enunciação e interação seriam partes de sua organização. Assim, para dar conta dos objetivos apresentados, busco compreender como a linguagem põe e dispõe de categorias próprias para o fenômeno semântico-enunciativo da argumentação, procurando observar como se efetua e efetiva a manipulação dos recursos lingüísticos no momento do dizer, na orientação argumentativa que constitui os diferentes textos em análise. Apresentação do corpus Para o presente trabalho, procuro cotejar dois textos, quais sejam: (i) EUA: católicos querem partir do zero (Jornal Correio do Povo, 2013: 08) e (ii) o texto de uma conferência apresentada pelo publicitário Alex Periscinoto, à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, em 1977, publicado posteriormente em Mais vale o que se aprende que o que te ensinam (Periscinoto, 1995). Análise de dados O jornal Correio do Povo, ao anunciar católicos querem partir do zero, apresenta um argumento que, inicialmente, aponta para uma perspectiva de renovação, de reformulação da própria Igreja. Entretanto, uma leitura mais atenta
leva à pergunta: em que situação tal estaria uma instituição para pensar que partir do zero seria vantagem? No caso da Igreja Católica Romana, implicaria abandonar cerca de 2000 anos de história. Não existe instituição tão antiga em atividade, nem com a força que tem, apesar de suas dificuldades estruturais. Qual seria, então, a vantagem argumentativa de partir do zero? O vetor argumentativo que surge a partir da manchete do jornal autoriza tal questionamento. A unidade linguística partir do zero é uma expressão que, semanticamente, possibilita evocar: começar de novo, fazer melhor, fazer mais bem feito, reconhecer e abandonar erros e equívocos. Apresentar tal expressão, do ponto de vista da constituição do ethos daquele a quem é conferido o dizer, daquele que se apresenta como enunciador da manchete, deixa entrever uma perspectiva positiva na suposta intenção da Igreja. A perspectiva parece, realmente, ser a de que partir do zero remeta, evoque renovação ; entretanto, o argumento esvazia-se, falha, na medida em que a orientação argumentativa instaurada não considera a informação de que se trata de uma instituição religiosa vinculada a todo processo de constituição histórica do próprio ocidente. Assim, a arquitetura semântica da construção partir do zero, na verdade, é forjada não somente pelas relações explicitadas entre os elementos linguísticos, mas sobretudo nos sentidos suscitados pela orientação argumentativa que, na verdade, é estabelecida enunciativamente. Tal processo se efetiva justamente pelas relações intersubjetivas que evoca: o enunciador de partir do zero/ renovação instaura a figura de um enunciador a quem seria atribuído algo como a Igreja Católica Romana está afundada em escândalos comprometedores. Na esteira dessas considerações, cabe destacar a situação com que a Igreja Católica começou o ano de 2013, e a própria imagem do papa Bento XVI:
Contrariamente ao vetor argumentativo estabelecido pela manchete do jornal, o texto do publicitário Alex Periscinoto, em conferência à CNBB, começa da seguinte maneira: Em vez de uma palestra, vamos fazer um bate-papo informal, porque nós, profissionais da comunicação, descobrimos que há muito o que agradecer a vocês. Todas as ferramentas de trabalho que usamos hoje na nossa profissão, todas, sem tirar nenhuma, foram inventadas por vocês, os religiosos (Periscinoto: 1995:143).
Dessa forma, o publicitário reconhece a importância e o alcance da Igreja Católica e constrói sua argumentação justamente com base nessa prerrogativa. Assim, a direção argumentativa dos dois textos se contrapõe, na medida em que o segundo visa a recuperar a história da Igreja, justamente para uma renovação da própria Igreja: Mas, falando em comunicação, vamos a outro ponto da nossa analogia. Vocês sempre tiveram um produto a ser propagado, a ser oferecido, o produto de vocês chama-se fé. Fé. Eu tenho uma boa notícia para vocês: esse produto está fazendo falta na praça, e muita falta, mesmo porque vocês não propagam mais a fé (Periscinoto, 1995:146-7). Neste ponto, o texto do publicitário não poderia ser mais atual e propício para o momento que a Igreja Católica viveu, se considerados os fatos que levaram à transição do papa Bento XVI para o papa Francisco. Periscinoto, ao referir a maneira como a Igreja apresentava-se, então (1977), afirma que Hoje se lê nos jornais muito mais sobre divergências entre bispos, entre vocês e o governo. Quase não se lê sobre o produto que vocês oferecem, sobre a fé. Fé é algo que minha mãe ia buscar na igreja. Ela vinha de lá recheada de algum raciocínio, acreditando não só em Deus como nela própria e no próximo. É como se uma empresa parasse de anunciar seus produtos e passasse a anunciar a briga da diretoria (Periscinoto, 1995: 147). De acordo com a orientação argumentativa que instaura em seu texto, o autor fala de um ideal, de uma Igreja sem divergências internas, despolitizada, envolvida apenas com as questões da alma humana, uma vez que Fé é algo que minha mãe ia buscar na igreja.... Em seu fazer argumentativo, Periscinoto instaura uma Igreja asséptica, e abre a possibilidade de entrever que os problemas atuais já eram recorrentes na década de 1970. O importante, para a analogia proposta entre os textos em análise, está em compreender que, mesmo reconhecendo, em 1977, os problemas que a Igreja já apresentava, o publicitário faz justamente um movimento contrário ao suscitado pela manchete do jornal, pois o vetor argumentativo com que discorre apresenta a Igreja Romana, sua estrutura e alcance na vida das pessoas, há séculos, como força da própria Igreja Romana. Assim, se considerada a língua enquanto assumida pelo homem que fala (Benveniste, 1991: 293), o argumento do publicitário não está relacionado com o papel político-social que a Igreja (toda e qualquer igreja) desempenha. Em nenhum momento há referência a rever, explicar publicamente o que acontece entre padres ou bispos e os fatos que geram escândalos. A questão de Periscinoto, um publicitário, se concentra na melhor maneira de apresentar o produto Igreja Católica Romana, em explorar seus aspectos fortes e, dessa
forma, ofuscar os problemas. Em contraposição, a questão suscitada pela manchete do jornal traz para a constituição argumentativa a necessidade de a Igreja Católica Romana repensar-se e reformular-se, enquanto instituição. Por ser um noticiário, há o trabalho com os acontecimentos do dia a dia e as demandas que os envolvem. Para Periscinoto, não importam as divergências de 1977 nem importariam as atuais, mas sim o como reconfigurar a Igreja e apresentá-la naquilo que teria de melhor. Considerações Finais A Igreja Católica Romana, assim como toda e qualquer instituição, forja-se na arena social em que as relações de intersubjetividade se efetivam. Dessa maneira, é claro que não é possível uma Igreja como aquela romanticamente construída pela bela - provavelmente, esta seja a força de seu argumento - e consistente argumentação de Periscinoto; uma vez que, no vetor de significação por ele estabelecido, jamais, partir do zero seria vantagem. Aproximar a história da Igreja Católica à própria história de nossas mães é orientar a argumentação, valendo-se da força afetiva que tem a figura materna. De acordo com Tavares (2007), argumentar consiste em estabelecer um vetor para a significação; assim, compreendo o fazer argumentativo do texto de Periscinoto (1995), e do Jornal Correio do Povo (2013), como constituídos em direções opostas - ainda que ambos tomem, como vetor argumentativo inicial, a necessidade de renovação da Igreja. A maneira como cada texto explora as relações semânticas das unidades lingüísticas possibilita compreender que é na malha enunciativa que a argumentação se constrói. Numa palavra, o fazer argumentativo dos dois textos respondem às vinculações dos espaços enunciativos aos quais estão atrelados, quais sejam: uma fala com características de peça publicitária e uma manchete e notícia de jornal. Referências Bibliográficas BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. São Paulo: Pontes, 1991. EUA: católicos querem partir do zero. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 8, 14 fev. 2013. PERISCINOTO, Alex. Mais vale o que se aprende que o que te ensinam. São Paulo: Best Seller, 1995.
TAVARES, Eliana. Competência e argumentação nas afasias: um estudo enunciativo. 2007. 108f. Tese (Doutorado em Linguística) Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas.