Seminário Brasileiro de Análise - SBA Instituto de Matemática e Estatatística - USP Edição N 0 67 Maio 2008 INTRODUÇÃO À TEORIA KAM R. L. RIBEIRO & M. V. P. GARCIA Resumo No estudo da mecânica celeste nos deparamos com sistemas hamiltonianos que são próximos de sistemas integráveis, muitas vezes não degenerados, e uma qualidade de sistemas integráveis é a presença de toros invariantes pelo fluxo do sistema. A teoria KAM descreve, por uma teoria perturbativa, o destino dos toros que verificam algumas propriedades diofantinas. Por ser uma ferramenta importante, principalmente utilizada em aplicações à física, tornase importante o conhecimento de uma demonstração rigorosa do principal teorema KAM. Para tanto introduzo sistemas hamiltonianos em variedades a partir de uma forma simplética e também um pouco de cálculo em espaços de Fréchet e, consequêntemente, o teorema das funções inversa e implícita (por Nash e Moser) nesses espaços. 1 Alguns fatos relevantantes sobre sistemas dinâmicos hamiltonianos integráveis 1 Definição 1.1. Uma varidade simplética é um par (M, ω) onde M é uma variedade e ω é uma forma simplética (2-forma fechada não degenerada). Supported by CNPq Mathematics Subject Classifications: 37J40 Key words: Sistemas hamiltonianos, teoria KAM, toros invariantes, teorema de Nash- Moser. Instituto de Matemática e Estatística, Universidade de São Paulo, SP, Brasil, ricardo@ime.usp.br Instituto de Matemática e Estatística, Universidade de São Paulo, SP, Brasil, mane@ime.usp.br 1 [1], [2], [3] 1
2 Introdução à teoria KAM 67 0 SBA Teorema 1.2. Seja f : M N um difeomorfismo entre as variedades M e N, o levantamento de f, definido por F : T M T N (x, ξ x ) ( f (x), ξ x d f (x) 1) é um simplectomorfismo entre as variedades T M e T N. Lema 1.3. Outra classe de simplectomorfismos é dada por certas translações ao longo das fibras. Considere a função F associada à 1-forma µ que leva cada (x, ξ x ) a (x, ξ x +µ x ). F é simplectomorfismo se e somente se a forma µ é fechada. Teorema 1.4 (Darboux). Uma variedade simplética (M, ω) de dimensão 2n é localmente simplectomorfa a um aberto de (R 2n, Ω 0 ). Definição 1.5. Um sistema hamiltoniano numa variedade simplética M de dimensão 2n é integrável (no sentido de Liouville), se seu hamiltoniano H admite n integrais primeiras independentes F 1, F 2,..., F n em involução. Ou seja, em toda a variedade M, 1. {H, F i } = 0 para 1 i n, 2. {F i, F j } = 0 para 1 i, j n e 3. df 1 df 2 df n 0 Exemplo 1.6. Nas coordenadas ângulo-ação (θ, I) T n R n, qualquer hamiltoniano que não dependa das coordenadas θ é integrável com integrais primeiras dadas por F i = I i para 1 i n. De fato, se H θ forma: = 0, então as equações de Hamilton tomam a simples θ = H I = ω(i) İ = 0 que têm solução explícita: θ(t) = θ 0 + ω(i 0 )t (1.1)
67 0 SBA Ricardo de Lima Ribeiro 3 Para se ter uma visão (descrição) geométrica de um sistema integrável, considere um número arbitrário de funções diferenciáveis independentes F 1, F 2,..., F m em M. Seja F = (F 1, F 2,..., F m ) : M R m. Esta função é uma submersão e todo valor de F é regular. Toda folha não vazia M c = F 1 {c} = {p M : F(p) = c} é uma subvariedade diferenciável de M de codimensão 2 m e toda a variedade M é folheada desta forma. Teorema 1.7 (Liouville-Arnol d-jost). Sejam (M, ω) uma variedade simplética de dimensão 2n, F j F (M) independentes e em involução para 1 j n e F = (F 1,..., F n ). Suponha que para algum c = (c 1,..., c n ) o conjunto M c = F 1 {c} é compacto e conexo. Então M c é um toro de dimensão n mergulhado 3 em M e existem U M vizinhança de M c, D R n vizinhança de c e um difeomorfismo Ψ : T n D U que introduz coordenadas de ângulo-ação, com Ψ ω = ω (forma simplética canônica em R 2n ) e Ψ(T n {x}) = M x x D, tal que F i Ψ não depende das coordenadas angulares. Definição 1.8. Dadas as condições iniciais (θ 0, I 0 ), ω(i 0 ) é o vetor de frequências de (1.1). Definição 1.9. O vetor ω R n é (c, τ)-diofantino se k, ω c k τ 1 k Z n \{0} e c, τ são reais positivos. O vetor ω é diofantino se for (c, τ)-diofantino para algum par (c, τ). Definição 1.10. O sistema hamiltoniano, em coordenadas ângulo-ação, é não degenerado em I 0 se [ ] ω det I (I 0) 0 2 Codimensão é a dimensão do complementar. Por exemplo, uma reta tem codimensão 1 no plano e codimensão 2 no espaço (de dimensão 3). 3 A topologia no toro é compatível com a topologia induzida de M.
4 Introdução à teoria KAM 67 0 SBA 2 Cálculo em espaços de Fréchet Referências para esta seção são [4], [5], [6]. Sejam E e F dois espaços vetoriais topológicos (sobre R), U um aberto de E e f : U F. Dizemos que f é de classe C 1 se f é contínua e existe uma função contínua D f : U E F linear na segunda variável, tal que (x, y) U E. (x, y) D f (x, y) = D f (x) y D f (x) y = lim t 0 [ f (x + ty) f (x) ] As aplicações de classe C k são as aplicações de classe C 1 tal que D f é de classe C k 1 no aberto U E de E E. Vale a regra da cadeia para funções C k no sentido de Gâteaux. 2.1 Categoria de Nash-Moser Definição 2.1. Um espaço de Fréchet é um espaço vetorial topológico com um sistema fundamental de vizinhanças convexas da origem e com uma métrica compatível com a topologia τ, completa e invariante por translação. 2.1.1 Funções tame Um espaço de Fréchet munido de uma sequência crescente de normas que definem sua topologia é um espaço de Fréchet graduado. Como de costume, o espaço de Fréchet graduado ( E, ( i ) i N ) será denotado por E apenas. Definição 2.2. Sejam E e F espaços de Fréchet graduados e U um aberto de E. Uma função f : U F é tame se, x 0 U, existem V U vizinhança de x 0, r N e C n R + tais que, x V e n N, f (x) n C n (1 + x n+r ) Diz-se que f é uma função tame C k se f é C k, no setido de Gâteaux,
67 0 SBA Ricardo de Lima Ribeiro 5 e f e suas derivadas até ordem k são tame. Assim, f é tame C se é tame C k para todo k. Um exemplo de função tame C é a transformação de Fourier. As funções tame formam um grupo multiplicativo com a operação de composição. 2.1.2 Espaços de Fréchet tame Definição 2.3. Um espaço de Fréchet graduado E é um espaço tame se existe uma família de aplicações lineares e contínuas S t : E E com 1 < t < e existem constantes C p,q R + com índices p e q naturais tais que, se k n e x E, S t x n C n,k t n k x k (2.2) [Id S t ]x k C k,n t k n x n Os operadores S t são chamados de operadores de aproximação. O espaço de Fréchet graduado F (T n ) é tame. 2.2 Os teoremas das funções inversa e implícita Teorema 2.4. Sejam E e F espaços tame, U aberto de E, f : U F função tame C k com 2 k e f (x 0 ) = y 0. Suponha que existe V 0 U vizinhança de x 0 onde a equação D f (x) x = η tem solução única x = L(x) η, e L : V 0 F E é uma função tame contínua, linear na segunda variável. Então x 0 e y 0 admitem vizinhanças V V 0 e W F entre as quais f é um difeomorfismo tame C k. Teorema 2.5. Sejam E, F e G espaços tame, U um aberto de E F e f : U G tame C k. Suponha que existe uma vizinhança V 0 U de (x 0, y 0 ) onde D 2 f (x, y) y = η tem solução única y = L(x, y) η,e L : V G F é uma função tame contínua, linear na segunda variável. Então x 0 admite uma vizinhança W sobre a qual se define uma função tame C k g : W F tal que g(x 0 ) = y 0
6 Introdução à teoria KAM 67 0 SBA x W, (x, g(x)) U e f (x, g(x)) = z 0 se f (x, y) = z 0 então y = g(x). Proposição 2.6. A função J : Diff (T n ; 0) Diff (T n ; 0) h h 1 é tame C e sua derivada é dada por DJ : Diff (T n ; 0) C (T n, R n ; 0) C (T n, R n ; 0) ou Diff (T n ; 0) (h, h) DJ(h) h = ( h h 1) 1 h h 1 2.3 Propriedade (P) Sejam E, F e G espaços de Fréchet graduados, Ω aberto de E, e k linear na segunda variável: k : Ω F G (x, y) k(x) y Diz-se que k tem a propriedade (P) em Ω se existem naturais s, l e uma sequência de constantes positivas (A m ) m N tais que, para todo x, x Ω, m N e y F, k(x) y m A m (1 + x m+s ) y l (P 1 ) k(x) y k( x) y m A m ( x x m+s + x m+s x x s ) y l (P 2 ) Exemplo 2.7. Se k é tame C 1 sobre Ω F e se k(ω) F pertence a um subespaço de dimensão finita de G, então k tem a propriedade (P) numa vizinhança de todo ponto de Ω. Lema 2.8. Sejam E, F e G espaços de Fréchet graduados, Ω aberto de E, x 0 Ω e L, l : Ω F G funções lineares na segunda variável.
67 0 SBA Ricardo de Lima Ribeiro 7 Suponha ainda que L(x) é inversível para x Ω e L 1 : Ω G F (x, y) L(x) 1 z (2.4) é uma função tame C 1, l tem a propriedade (P) numa vizinhança de x 0 e l(x 0 ) = 0. Então x 0 tem uma vizinhança aberta Ω Ω, tal que (L + l)(x) é inversível para x Ω e (L + l) 1 : Ω G F (x, z) (L(x) + l(x)) 1 z (2.5) é uma função tame contínua. 3 Teoremas KAM e demonstrações Definição 3.1. L α : C (T n, R p ) C (T n, R p ) u L α u = u α = n j=1 α j u θ j Lema 3.2. 1. A imagem de L α está contida no conjunto C 0 (Tn, R p ) definido por { v C (T n, R p ) : T n v(θ) θ = 0 } 2. Se α é não-ressonante então L α C (T n,r p ;0) é injetora. 3. A função L α é uma bijeção entre C (T n, R p ; 0) e C 0 (Tn, R p ) se e somente se o vetor α é diofantino. Neste caso, valem as desigualdades L 1 α v m A m v m+r (3.6) para todo v C 0 (Tn, R p ) e m N, onde A m e a norma define a topologia C m.
8 Introdução à teoria KAM 67 0 SBA Teorema 3.3. A função Φ α : Diff (T n ; 0) R n X (T n ) (h, λ) λ + h α = λ + h h 1 α é tame C para todo α R n. Ainda, se α é um vetor diofantino, então Φ α é um difeomorfismo entre vizinhanças abertas de (id, 0) Diff (T n ; 0) e α X (T n ). Demonstração. O objetivo é mostrar que Φ α satisfaz as condições do teorema 2.4. DΦ α (h, λ) ( h, λ) = λ+ h h 1 α 2 h h 1 (( ) ) h h 1 1 h h 1, α Mudam-se as variáveis, h = h E com E C (T n, R n ; 0) e DΦ α (h, λ) ( h E, λ) = λ + ( h E) h 1 α Dado η X (T n ), a equação DΦ α (h, λ) ( h, λ) = η é equivalente a L α E = ( h) 1 (η h) ( h) 1 λ Para que a equação acima tenha solução em E, pelo lema 3.2 é necessário que a integral em T n do segundo membro seja nula, ainda, se h V vizinhança aberta (suficientemente pequena na topologia C 1 ) de id Diff (T n ; 0) a equação [ ] ( h) 1 (θ)dθ λ = ( h) 1 (η h)(θ)dθ T n T n tem solução única λ = L 2 (h, λ) η. Mais ainda, a função L 2 : V R n C (T n, R n ) R n é tame contínua. Assim, ( h, λ) = ( h L 1 α [ ( h) 1 η h ( h) 1 L 2 (h, λ) η ], L 2 (h, λ) η )
67 0 SBA Ricardo de Lima Ribeiro 9 Ainda, L : V R n C (T n, R n ) Diff (T n ; 0) R n é tame contínua. Teorema 3.4 (KAM). Sejam H 0 F (D n R ) e I 0 D n R tal que H 0 é não degenerado e seu vetor gradiente é diofantino. Então existem uma vizinhança W de H 0 F (T n D n R ) e uma função tame C : tais que: W F (T n ; 0) R n Diff (T n ; 0) H ( f H, t H, g H ) 1. para todo H W, se u H = f H + t H então (a) u H (T n ) D n R (b) H (id, u H ) é constante em T n (c) H I (id, u H ) = (g H ) α ( C (T n, R n ) X (T n )) 2. f H0 = 0, t H0 = I 0, g H0 = id Lema 3.5. Definidos o conjunto U = { (u, t) C (T n, R n ) R n : θ T n, u(θ) + t D n R } e a função Afirma-se: X : F (T n D n R ) U X (T n ) (H, u, t) H I (id, u + t) 1. U é uma vizinhança aberta de (I 0, 0) C (T n, R n ) R n e X é tame. 2. Existem uma vizinhança aberta V de (H 0, I 0 ) F (T n D n R ) C (T n, R n ) e funções tame T : V R n e ϕ : V Diff (T n ; 0) tais que X (H, u, T(H, u)) = H I (id, u + T(H, u)) = [ ϕ(h, u) ] α
10 Introdução à teoria KAM 67 0 SBA para todo (H, u) e com T(H 0, I 0 ) = 0 e ϕ(h 0, I 0 ) = id. Demonstração. Defina a função tame C X : F (T n D n R ) U Diff (T n ; 0) X (T n ) (H, u, t, g) X(H, u, t) g α = = H I (id, u + t) g g 1 α (3.7) que se anula em (H 0, I 0, 0, id). Um simples cálculo (muito parecido com o da demonstração do lema 3.2) mostra que D 3,4 X : R n C (T n, R n ; 0) X (T n ) C (T n, R n ) ( t, g) 2 H I (id, u + t) t g 2 g 1 α (( + 2 g g 1 ) g g 1 1 g g 1, α) (3.8) satisfaz as hipóteses do teorema das funções implícitas 2.5. Lema 3.6. Dado V, do lema 3.5, definem-se o conjunto V = { (H, f ) C (T n D n R ) C (T n, R; 0) : (H, f + I 0 ) V } e a função G : V C (T n ) (H, f ) H (id, f + I 0 + T(H, f + I 0 )) Afirma-se que: 1. V é uma vizinhança aberta de (H 0, 0) C (T n D n R ) C (T n, R; 0) e G é tame C. 2. Existem uma vizinhança aberta W de H 0 C (T n D n R ) e uma função tame C F : W C (T n, R; 0) tal que G(H, F(H)) = H (id, F(H) + I 0 + T (H, F(H) + I 0 )) é constante para todo H W e F(H 0 ) = 0
67 0 SBA Ricardo de Lima Ribeiro 11 Demonstração. A função tame C definida por G : V R C (T n ) (H, f, E) G(H, f ) E = H (id, f + I 0 + T(H, f + I 0 )) E se anula em (H 0, 0, H 0 (I 0 )). Note que G(H, f ) é constante se e somente se existe E R tal que G(H, f, E) = 0. O lema estará provado assim que a invertibilidade de D 2,3 G(H, f, E) por uma função tame contínua numa vizinhança de (H 0, 0, H 0 (I 0 )) for verificada. D 2,3 G : C (T n, R; 0) R C (T n ) Onde ( f, E) [ D 2,3 G(H, f, E) + K(H, f, E)]{ f, E} D 2,3 G(H, f, E){ f, E} = H I (id, f + I 0 + T(H, f + I 0 )) ( f ) E K(H, f, E){ f, E} = H I (id, f + I 0 + T(H, f + I 0 )) D 2 T(H, f + I 0 ) f Pelo lema 2.8 com E = C (T n D n R ) C (T n, R; 0) R, F = C (T n, R; 0) R, G = C (T n ), Ω = V R, L = D 2,3 G, l = K e x 0 = (H 0, 0, H 0 (I 0 )), D 2,3 G(H, f, E) satisfaz as hipóteses do teorema 2.5. O teorema 3.4 decorre diretamente dos lemas 3.5 e 3.6 fazendo f H = F(H) t H = I 0 + T (H, F(H) + I 0 ) g H = ϕ(h, f H + t H ) Referências [1] Ralph Herman Abraham and Jerrold Eldon Marsden, Foundations of mechanics, Benjamin/Cummings Publishing Co. Inc. Advanced Book Program, Reading, Mass., 1978, Second edition, revised and
12 Introdução à teoria KAM 67 0 SBA enlarged, With the assistance of Tudor Raţiu and Richard Cushman. MR MR515141 (81e:58025) [2] Vladimir Igorevich Arnol d, Mathematical methods of classical mechanics, second ed., Graduate Texts in Mathematics, vol. 60, Springer-Verlag, New York, 1989, Translated from the Russian by K. Vogtmann and A. Weinstein. MR MR997295 (90c:58046) [3] Ana Cannas da Silva, Lectures on symplectic geometry, Lecture Notes in Mathematics, vol. 1764, Springer-Verlag, Berlin, 2001. MR MR1853077 (2002i:53105) [4] Richard Streit Hamilton, The inverse function theorem of Nash and Moser, Bull. Amer. Math. Soc. (N.S.) 7 (1982), no. 1, 65 222. MR MR656198 (83j:58014) [5] Walter Rudin, Functional analysis, second ed., International Series in Pure and Applied Mathematics, McGraw-Hill Inc., New York, 1991. MR MR1157815 (92k:46001) [6] François Trèves, Topological vector spaces, distributions and kernels, Dover Publications Inc., Mineola, NY, 2006, Unabridged republication of the 1967 original. MR MR2296978 (2007k:46002)