72 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com uma linguagem particular, os advogados, como locutores/enunciadores, gerenciaram as diversas vozes/ enunciadores existentes na petição inicial e na contestação em ação de união estável. O entrecruzamento de vozes, com o apoio da análise linguística, mais especificamente, por meio das expressões nominais, tornou possíveis a identificação e a caracterização dos tipos de pontos de vista. Com base na nossa análise de PDV, confirmamos a teoria de Rabatel: em textos argumentativos narrativos, o PDV predominante é o afirmado. Como o corpus analisado foram a petição inicial e a contestação documentos jurídicos escritos por advogados, o segundo tipo de PDV mais frequente foi o PDV afirmado e representado. Os advogados recorreram a outras vozes consoantes à sua a fim de dar maior credibilidade à própria argumentação, ao próprio PDV. Esses enunciadores, então, coenunciaram com a voz principal do locutor/enunciador; portanto, os advogados assumiram toda a responsabilidade, toda a veracidade das informações contidas na respectiva peça jurídica, intensificando, auxiliando, assim, seus pontos de vista. Pode-se dizer que, no caso em tela, houve prise en charge (PEC) e imputação por parte do locutor/enunciador. Contudo, apesar de os referidos documentos estarem cheios de vozes, de pontos de vista e de os locutores/enunciadores gerenciarem todas elas, predominam as dos advogados, responsáveis pela orientação argumentativa, mesmo escrevendo em nome de seus clientes. Esse processo é dialógico, apesar de parecer que o locutor/enunciador assume um PDV sozinho. Logo, podemos dizer, há jogo de vozes na construção do ponto de vista. Em relação ao gerenciamento de posições na petição inicial e na contestação, constatamos que esses documentos não diferem quanto aos procedimentos de representação do PDV, ou seja, quanto à relação L1/E1 com os outros enunciadores, ficou evidente no capítulo da análise que tanto o advogado da parte autora quanto o da parte contestante usaram o mesmo recurso. O embate discursivo ocorreu na contestação, porque o advogado dos requeridos refutou muitas afirmações do advogado da parte autora. Desse modo, percebemos claro diálogo, conflito de ideias, de afirmações e de PDV entre as duas peças jurídicas. Inclusive, o advogado da parte contestante inseriu a voz da requerente e a do respectivo advogado para refutar e fortalecer os seus argumentos, construir seu PDV e, consequentemente, persuadir o juiz.
73 Com base nos enunciadores, confirmamos, na fundamentação teórica, que houve debreagem enunciativa mínima, intermediária ou máxima. A construção do PDV por meio das expressões nominais nos levou a concluir que elas auxiliam a construir argumentos para persuadir o leitor no caso em questão, o juiz. Logo, pode-se dizer, elas têm um teor argumentativo. A especificidade do campo jurídico nos levou ao questionamento de como se constroem objetos de discurso, até mesmo contrários, edificando-se verdades discursivas sobre a mesma verdade factual. Conforme já dissemos, os recursos usados pelos advogados das duas partes em contenda foram os mesmos. A questão da mesma verdade factual é interessante. É verdade para quem? Para a parte autora? Para os réus? Daí a necessidade da argumentação, da persuasão, porque o locutor/enunciador precisa chamar a atenção do juiz para o ponto de vista em construção. Vale ressaltar que os objetos de discurso não são fixos e apriorísticos (CORTEZ, 2003, p. 95), pois são construídos com base em um ponto de vista e de uma perspectiva no discurso. Diante do jogo dos PDV, identificamos e consideramos a polifonia como relevante para o processo da argumentação. Os referentes, por sua vez, foram importantes para identificarmos as expressões nominais e, consequentemente, chegarmos ao ponto de vista. Porém, segundo Cortez (2011, p. 188), deve-se observar a perspectivação dos referentes e seu modo de apresentação, ou seja, as expressões nominais, como estratégias de referenciação, atuam na construção textual-discursiva do PDV e, consequentemente, todo objeto de discurso é perspectivado. Assim, neutro ou objetivo, o referente é perspectivado. Contudo, ainda segundo Cortez (2011, p. 190), as expressões nominais são também estratégias de representação do PDV que, ao perspectivar um referente, podem atuar em conjunto com os verbos de dizer, percepção/pensamento e ação. Em virtude da diversidade de vozes controversas na contestação, podemos dizer que aí está presente a polifonia, ou seja, ocorrem os dilemas, o embate discursivo, o que implica argumentação necessária para persuadir o juiz. Além disso, percebemos nas duas peças jurídicas o dialogismo e a heterogeneidade enunciativa. Neste trabalho, ficou evidente que a referenciação dos objetos de discurso (as expressões nominais) não é o único recurso usado para a identificação dos pontos de vista. Segundo Cortez (2011, p. 189), a análise pode dedicar-se aos recursos metalinguísticos e metadiscursivos que atuam na representação do discurso do outro. A identificação dos referentes foi de extrema relevância nesta pesquisa, para entendermos as expressões nominais e chegarmos à construção do ponto de vista.
74 Por fim, nossa pesquisa confirmou a teoria de Rabatel em relação ao PDV, pois a petição inicial e a contestação, por meio de enunciadores, expressaram pontos de vista gerenciados pelos locutores/enunciadores advogados, com o objetivo de persuadir o juiz em função do objetivo de cada parte.
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