A DISLEXIA COMO METÁFORA 1
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- Moisés Vieira de Figueiredo
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1 A DISLEXIA COMO METÁFORA 1 Ione Silva 2 A leitura de mundo antecede a leitura da palavra. Paulo Freire. Todos nós estamos inseridos em uma cultura que busca um significante (representação) para os sintomas e, a partir do seu conhecimento, significamos o sujeito portador do mesmo e buscamos significados (esquemas de relações) para tratar do sujeito assujeitado a esse significante cultural. Em detrimento disso, deixamos de pensar e de sentir os processos verdadeiros de humanização, nos quais se dão as relações que, se bem cuidadas, poderiam gerar uma ética que legitimasse positivamente a possibilidade de ser no mundo. A dislexia é um dos significantes que nos faz pensar e sentir esses efeitos na cultura. Dispomos de muitas teorias e afirmações que nos remetem a uma explicação. Dentre elas, destacamos: a dislexia tem causas genéticas: é provocada por alterações nos cromossomos 6 e 15; os disléxicos são mais criativos e inteligentes; não é uma doença, mas um distúrbio; não tem cura, mas pode ser amenizado; é hereditário e com incidência maior em meninos (3/1) do que em meninas; no disléxico, normalmente o lobo temporal direito é maior que o esquerdo; faz vítimas em todas as camadas sociais, muitas vezes impedindo o progresso e a ascensão social das mesmas, não sendo isso uma regra; tem dificuldades de estabelecer a relação correta entre letra e som, trocam as letras, fazem inversões, separações e junções de palavras; ectopias (células fora de lugar) e displasia (células com funções diferentes) são causas que provocam o distúrbio, segundo o neurologista norte-americano Albert M. Galaburda, uma das maiores autoridades internacionais no assunto, após dissecar cérebros de disléxicos, e assim por diante. Ao se pensar a dislexia, gostaria de antes pensar o sujeito que a carrega consigo, a partir da análise de seu desenvolvimento. Sabemos que a aprendizagem se dá num processo dialético de conscientização, no qual a semântica (arte da significação que 1 Brasília, Abril/ Pedagoga, Psicopedagoga, Psicanalista 1
2 promove relações de significação nos signos e da representação do sentido dos enunciados), a sintaxe (disposição das palavras na frase, das frases no discurso e da relação lógica das frases entre si) e a pragmática (relação entre o signo e o usuário deste) farão emergir um sujeito capaz de significar-se e de significar o mundo. Em outras palavras, somos seres da intersecção entre pensamento e linguagem. E essa intersecção se constitui na intersubjetividade das relações. Nesse processo dialético de conscientização, é fundamental que se conheça o contexto de interação social no qual se deu o desenvolvimento do disléxico. Assim, algumas questões relativas às relações intersubjetivas emergem: como se deram as relações de significação dos signos? Como foram representados os sentidos dos enunciados? Como foram organizadas as expressões no discurso e como estas se dispunham numa relação lógica? Como as experiências proporcionaram uma linguagem capaz de se transformar em símbolo, algo distinto de si mesmo? Esse algo distinto de si mesmo é tão distinto que não consegue se representar? Ao longo dos anos, tem-se construído um jeito de viver no mundo em que as categorias de construção da história cognitiva (noções de espaço, tempo, objeto e causalidade) não têm sido desenvolvidas em um cotidiano espaço-temporalmente favorável de elaboração de sentido. As crianças hoje em dia têm sido alvo de muitas exigências precoces em seu desenvolvimento, que se dão num viés de desafeto e de falta de vínculo que, num processo contínuo, comprometem assustadoramente a construção de sentido. E sentido não se dá ou se recebe. Sentido se constrói na intersubjetividade das relações com o outro e com o objeto de conhecimento. É preciso descontinuar para se elaborar, para se relacionar, para fazer emergir o sentido do signo e da linguagem existente na intersecção das relações. Em todo o seu desenvolvimento, o homem perpassa pelas experiências construindo imagens mentais (relações intra-objetais), relacionando-as simetricamente e agrupando-as (relações inter-objetais) e construindo uma estruturação disposta numa rede de relações (relações trans-objetais) que vão possibilitá-lo reconstruir o conhecimento numa socialização crescente e ativa. Assim, de 0 a 2 anos, essas relações serão construídas em nível sensório-motor, quando, na ação da criança, se dará o início do estabelecimento do sistema simbólico. Segundo Piaget, nesse momento a criança irá fazer um jogo simbólico e representará em sua ação o que percebe em suas experiências. Irá, portanto, imitar. Imitando na reconstrução de suas experiências, fará coordenação de ações, agrupará relações 2
3 significadas, representará mentalmente, exteriorizará suas experiências numa linguagem oral que dará inicio à sintaxe, diferenciando-se do objeto de conhecimento. Objetivamente, parece claro, mas não podemos nos esquecer de que, concomitantemente, as relações intersubjetivas estão paralelamente presentes construindo ou desconstruindo toda uma possibilidade de simbolização. Se a criança não é confirmada pelo outro num sentimento de pertença que favoreça a reconstrução de experiências e a coordenação de ações, possivelmente poderá estar iniciando uma estruturação distorcida e confusa favorecedora de uma dislexia, pois significantes e significados estão sendo vivenciados, sentidos e fundados. Na continuidade, de 2 a 7 anos, há inicialmente uma irreversibilidade no pensamento e a imagem mental não tem ainda um caráter dinâmico. Assim, a criança, ao coordenar suas ações, ainda não terá condições de conceber o todo por suas características genéricas e diferenças específicas, mas poderá conceber partes e seriá-las figurativamente em função das relações assimétricas. Na evolução desse quadro há, aos poucos, um avanço na capacidade pré-operatória da criança, favorecendo, por volta dos 7 anos, o surgimento do número como síntese da classificação e da seriação, e da medida, como síntese entre a parte tomada como unidade e o seu deslocamento sobre o todo. A partir desse momento, quantifica extensivamente (matemática) e intensivamente (lógica), ou seja, passa a manipular de forma mais analítica as qualidades próprias das classes e a perceber a lógica dos conceitos de todos, algum, nenhum, um (quantificadores). Neste período, muitas crianças podem precocemente vivenciar suas experiências num contexto em que se exige delas reversibilidade no pensamento a partir de imagens completamente dinâmicas, sem ainda ter maturidade para tanto, atropelando seus processos de elaboração de sentido. Outras, dependendo das experiências intersubjetivas, podem prolongar essa irreversibilidade no pensamento e essa imagem mental estática por muito mais tempo, comprometendo o surgimento do número e da medida, tão necessários à construção simbólica alfabética da língua escrita. Essas possibilidades, podem fazer emergir a fundamentação de uma dislexia em função da falta de coordenação e de diferenciação entre compreensão e extensão das classes lógicas, subentendidas na operação de inclusão. Subjetivamente, a falta de coordenação e de diferenciação do sujeito, do outro e do objeto que se dá a conhecer, pode implicar numa dificuldade interna de coordenação e de diferenciação de significantes e significados, ocasionando sintomas de trocas, inversões, substituições, omissões, entre outros sintomas disléxicos. 3
4 Finalmente, no período de 7 a 11 anos, a criança se apoiará essencialmente na ação para construir conceitos e diferenciar significante de significado, desenvolvendo a reversibilidade de pensamento. Para tanto, o agrupamento de relações possibilitará conservação de aprendizagens. Essas relações somente serão possíveis de ser agrupadas se estiverem dentro dos parâmetros de realidade da criança. Portanto, a sensopercepção concreta de tudo precisa ser vivenciada na ação para possibilitar uma representação e possível construção conceitual, por ainda não diferenciar significante de significado. Gradativamente, a ampliação de seus esquemas possibilitará, por volta dos 12 anos, operacionalizar reflexivamente, sem bases reais de existência, isto é, chegará à fase do desenvolvimento do raciocínio formal. Remetendo-nos à subjetividade das relações, nesse momento há uma coincidência com o período de alfabetização. Essa alfabetização vem sendo significada desde o nascimento da criança em que ia lendo objetiva e subjetivamente suas experiências com o outro e com o objeto de conhecimento. Como num processo de bordado, em que a agulha perfurando lá e cá, vai formando o matiz da forma, a criança também, vivenciando o externo e o seu reflexo no interno e vice-versa, também foi formando o seu matiz, ou seja, o seu jeito de ler o mundo e de ser lida em sua escrita pelo outro. Se isso se transcorreu num processo de relações em que foi possível uma tranquilidade na elaboração de sentido, é possível que, chegando nessa fase, possa imprimir o seu matiz também na leitura e na escrita dos significantes e significados alfabéticos. Mas ainda corre um grande risco, pois se não for proporcionada uma alfabetização fundamentada em coordenação de ações, num processo verdadeiro de vinculação e de continuidade gradativa e dentro de seu parâmetro de realidade, poderá gradativamente evoluir para um quadro disléxico. Somos seres da intersecção entre pensamento e linguagem. Linguagem e pensamento que se constituem na relação com o outro e com o mundo. Outro e mundo que na experiência real são simbolizados a partir de um significante e de um significado pelo sujeito que os incorpora. Nessa intersubjetividade, relações de significação emergem das experiências e encontram sentidos que são representados e expressados na reconstrução de experiências, buscando uma organização, uma relação lógica entre o que já simbolizou e o que está para ser simbolizado. A cada nova representação, o sujeito estabelece relações entre o signo e o que ele já sente e representa e assim por diante. Essa reconstrução de significados, feita minuto a minuto na vida da criança, vai lhe proporcionar um jeito de perceber e sentir o que de real se lhe apresenta, impulsionando-a para uma elaboração na qual irá utilizar os significantes e significados 4
5 já construídos e, se conseguir, vai simbolizar, ou seja, vai representar algo abstrato, ausente e distinto de si mesmo. Ao longo do trabalho com disléxicos, percebemos que, na maioria dos casos, eles passam por experiências afetivas e cognoscitivas que não permitiram a lida sadia com o que de concreto se apresentava em sua vida, adentrando por processos de elaboração confusos que não correspondiam à maturidade cognoscitiva, psicomotora, linguística, grafoperceptiva e psíquica e, por conta disso, não conseguiram encerrar numa simbolização sadia dessas experiências. Essa significação dada às experiências foi transferida como matiz para a significação alfabética da língua escrita, ou seja, não lidaram bem com as caracterizações físicas e reais do símbolo alfabético e, consequentemente, adentraram por processos confusos de elaboração fonêmica, grafêmica, espacial, temporal entre outros, gerando um comportamento elaborativo permanente por não conseguirem simbolizar o signo linguístico. A partir desse lugar de abordagem e de interpretação dos traços disléxicos, em muitos casos foi possível dispensar a reeducação alfabética e os processos de maturação psicomotora, grafoperceptiva e linguística, para centrar na interpretação das construções, das reconstruções e das significações e ressignificações de suas experiências na intersubjetividade das relações. A partir dessa interpretação, muitos puderam tecer as relações existentes com a dislexia e, assim, interpretar a translação, a relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado, ou seja, puderam entender a metáfora do sintoma. Para ilustrar, pedi licença à Marcela Alves de Santana e Cunha que aos 15 anos iniciou um trabalho intersubjetivo com a Psicopedagogia, no qual interpretou sua modalidade de aprendizagem e as metáforas de seus sintomas disléxicos, exteriorizando-se, sobremaneira, não só como autora de suas leituras e escritas, mas, sobretudo, como autora de sua vida: Do interno pro externo, do externo para o interno Um dia saí de dentro de mim. Saí do meu país. Com tantas mudanças de um país para outro, a minha vida foi difícil. Por causa dessas mudanças, 5
6 minha adaptação foi devagar e as coisas foram complicadas. Retornando a mim mesma e ao meu país, tenho tantas amnésias da vida que tive. Mas hoje e agora quero começar uma nova experiência, uma nova vida para avançar na aprendizagem, na vida Agora é a hora. A hora de ser feliz. Feliz é uma pessoa. Essa pessoa vai evoluir. Essa pessoa sou eu. Eu vou conseguir viver. Eu vou gostar de me soltar, de mudar, de aprender com minhas novas amizades. Vou ensinar o que eu sei Para o meu novo mundo. Marcela Alves de Santana e Cunha 6
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