Cardiologistas de um Hospital Escola Adotam as Diretrizes para o Tratamento da Insuficiência Cardíaca?
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- Ruth Bonilha de Sequeira
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1 Artigo Original Cardiologistas de um Hospital Escola Adotam as Diretrizes para o Tratamento da Insuficiência Cardíaca? Antonio Carlos Pereira Barretto, Moacyr Roberto Cucê Nobre, Inês Lancarotte, Airton Roberto Scipioni, José Antonio Franchini Ramires São Paulo, SP Objetivo - Analisar se diretrizes preconizadas para o tratamento da insuficiência cardíaca vêm sendo adotadas em um hospital escola, como o uso de inibidores da enzima conversora da angiotensina; digital e diuréticos de betabloqueadores e de espironolactona. Métodos Analisamos a prescrição dada a 199 pacientes, com fração de ejeção (FE) <0,50 e idades variando de 25 a 86 anos, sendo 142 homens. A cardiomiopatia foi o diagnóstico mais freqüente: 67 (33,6%) casos de cardiomiopatia dilatada, 65 (32,6%) de cardiomiopatia isquêmica. Resultados - A maioria dos pacientes estava em uso de vasodilatadores. Inibidores da enzima conversora da angiotensina prescritos para 93% dos pacientes. 71,8% tinham também prescrição de digital, 86,9% de diuréticos, 27,6% de espironolactona, 12% de betabloqueadores, 37,2% de ácido acetilsalicílico, 6,5% de antagonistas dos canais de cálcio e 12,5% de anticoagulantes. Quanto aos vasodilatadores, 71% recebiam captopril (85,2mg/dia), 20% enalapril (21,4mg/dia), 3% hidralazina e nitratos, 1,5% lisinopril e 1,5% losartan. Estavam medicados com doses preconizadas pelos grandes estudos 71,8% dos casos. Conclusão A maioria dos pacientes recebeu prescrição de doses recomendadas pelos grandes estudos, especialmente os pacientes mais graves. Nossos resultados, também, permitiram concluir que os pacientes brasileiros toleram bem as doses preconizadas pelos estudos, e que a sua não utilização pode decorrer do receio do médico em prescrevê-la e não da intolerância do doente. Palavras-chave: insuficiência cardíaca, inibidores da enzima conversora da angiotensina, betabloqueadores, anticoagulação Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP Correspondência: Antonio Carlos Pereira Barretto InCor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, São Paulo, SP - pereira.barreto@incor.usp.br Recebido para publicação em 7/6/00 Aceito em 1/11/00 Com a demonstração, ultimamente, de que novos esquemas terapêuticos induzem grande redução na morbimortalidade, o tratamento da insuficiência cardíaca vem sendo modificado. Desde a publicação dos estudos realizados com espironolactona e betabloqueadores, concluiu-se que essas drogas devem ser associadas ao tratamento convencional de insuficiência cardíaca com inibidores da enzima conversora da angiotensina, digital e diuréticos, pois com essa associação os pacientes tornam-se menos sintomáticos, descompensando menos, necessitando ser hospitalizados com menor freqüência e apresentando menor mortalidade na evolução 1-4. Os estudos epidemiológicos realizados em vários países mostram que essa conduta não vem sendo adotada pela maioria dos cardiologistas, com motivos diversos 5,6. Não possuindo ainda dados brasileiros consistentes sobre o tema, procuramos verificar, durante um mês, como os médicos de um hospital terciário de São Paulo estavam tratando a insuficiência cardíaca e quantos vinham adotando as diretrizes atualmente recomendadas. Métodos Durante o mês de outubro de 1999, analisamos a prescrição feita a 199 pacientes com disfunção ventricular (fração de ejeção 0,50), com insuficiência cardíaca sintomática, classificada em classe funcional II a IV, segundo os critérios da New York Heart Association, tratados por diferentes equipes do ambulatório de especialidades do Instituto do Coração do HCFMUSP. Esses 199 pacientes corresponderam a todos os pacientes com disfunção ventricular atendidos pelas equipes de Cardiologia Geral, Coronária, Geriatria, Valvopatia e de Insuficiência Cardíaca em 16 (40%) períodos de um total de 40 períodos possíveis durante o mês. Neste estudo denominaremos as equipes por letras (Serviço A, B, C, D e E) que não correspondem à ordem de apresentação acima. Esses ambulatórios foram selecionados por atenderem a quase totalidade de pacientes com disfunção ventricular acompanhados no InCor. Arq Bras Cardiol, volume 77 (nº 1), 23-9,
2 Arq Bras Cardiol Essa população tinha idade, variando de 25 a 86 (média 58,4±13,8) anos, sendo 142 masculinos e 57 femininos. A avaliação realizada pelo ecocardiograma (módulo M) identificou ventrículo esquerdo com diâmetro médio de 57,9±8,5mm, fração de ejeção de 0,40±0,07 e átrio esquerdo com diâmetro médio de 44,9±8,8mm. No Serviço de Ecocardiografia, onde foram realizados todos os ecocardiogramas, considera-se como valores normais (para indivíduos adultospeso entre 51 e 90kg) para o ventrículo esquerdo, diâmetros diastólicos com valores entre 38 e 52mm, para o átrio esquerdo, diâmetros entre 28 e 40mm e, para a fração de ejeção (avaliada pelo método do cubo), valores entre 0,58 e 0,80. A disfunção ventricular teve como diagnóstico principal cardiomiopatia dilatada em 67 (33,6%) casos, cardiopatia isquêmica em 65 (32,6%), associada à doença de Chagas em 21 (10,5%), relacionada à hipertensão arterial em 23 (11,5%) casos, secundária à valvopatia em 20 (9,5%) e cardiomiopatia alcoólica em 3 (1,5%). Esses 199 pacientes estavam sendo tratados em diferentes serviços do hospital, sendo 90 (45,2%) no ambulatório de Cardiologia Geral, 44 (22,1%) no de Coronariopatia Crônica, 28 (14,0%) no de Geriatria, 25 (12,5%) na Unidade de Insuficiência Cardíaca e 12 (6,0%) no ambulatório de Valvopatia. A tabela I contém algumas características da população estudada, conforme a etiologia principal da cardiopatia. Analisamos as medicações prescritas para esses pacientes, a sua dosagem e verificamos o percentual de prescrição em que as doses preconizadas pelas diretrizes estavam sendo observadas 7. Consideramos como doses preconizadas para inibidores da enzima conversora valores de no mínimo 75mg de captopril, ou 20mg de enalapril ou 20mg de lisinopril (drogas padronizadas no Hospital), 25mg de carvedilol/2xdia e 25mg de espironolactona. Verificamos também qual a prevalência de fibrilação atrial e qual a freqüência de prescrição de aspirina e anticoagulantes orais, qual o tipo de prescrição conforme o diagnóstico principal, o grau de disfunção ventricular e a equipe responsável pelo doente. Resultados Na população estudada, os pacientes com cardiomiopatia alcoólica eram mais jovens que os de outras etiologias, os com doença de Chagas mais jovens que os com cardiomiopatia dilatada, hipertensiva e isquêmica, e os demais tinham idades semelhantes. Foi analisado se o comprometimento ventricular seria semelhante nas diferentes cardiopatias e não se encontraram diferenças significantes no grau do comprometimento ventricular avaliado pela fração de ejeção. Houve tendência da fração de ejeção maior nos pacientes com cardiomiopatia hipertensiva do que nos com cardiomiopatia chagásica (p=0,088), dilatada (p=0,055) e isquêmica (p=0,09). Analisou-se também se o grau de disfunção ventricular seria semelhante entre os pacientes das diferentes equipes do InCor, encontrando-se que a fração de ejeção foi menor nos pacientes do Serviço A do que em todos os pacientes dos outros serviços. A fração de ejeção foi de 0,36+0,06 no serviço A, de 0,40+0,06 no B; (p=0,008), de 0,40+0,08 no C; (p=0,042), de 0,42+0,08 no D; (p=0,0004) e de 0,42+0,06 no E; (p=0,012). A função ventricular foi também diferente entre os serviços B e D (p=0,04) e semelhantes entre os outros serviços. Apresentaram fibrilação atrial 32 (16,08%) pacientes, sendo mais freqüente entre os valvopatas. Todos os pacientes estavam em uso de alguma medicação. Somente 5 (2,5%) doentes não estavam recebendo medicação vasodilatadora. Receberam prescrição de inibidores da enzima conversora da angiotensina 185 (93%) pacientes, 6 (3,0%) de hidralazina associada a dinitrato de isossorbida e 3 (1,5%) de antagonista dos receptores da angiotensina II. Receberam prescrição de diuréticos 173 (86,9%) pacientes, sendo 121 (60,80%) furosemida, 92 (46,2%) tiazida e 40 (20,1%) ambas as drogas. Amiloride foi utilizada por 15 (7,5%) casos e a digoxina em 143 (71,8%) pacientes (fig. 1). Os pacientes receberam também prescrição de: espironolactona 55 (27,6%) casos, betabloqueadores 24 (12,0%), ácido acetilsalicílico 74 (37,1%), antagonistas dos canais de cálcio 13 (6,5%), anticoagulantes 25 (12,5%), potássio 12 (6,0%) e amiodarona 18 (9,0%). Em relação aos inibidores da enzima conversora da angiotensina, 142 (71,3%) receberam captopril, com dose média de 85,2mg/dia, sendo que 102 (71,2%) pacientes receberam doses consideradas adequadas (acima de 75mg/dia). Trinta e nove (19,5%) receberam enalapril, com dose média de 21,4mg/dia, e 29 (74,3%) com doses adequadas, acima de 20mg/dia, lisinopril foi prescrito para três (1,5%) pacientes, todos em doses adequadas. Tabela I - Cardiopatia principal, valores médios da idade, sexo, valores médios dos dados da avaliação ecocardiográfica e a prevalência de fibrilação atrial Dados do ECO Prevalência relativa da FA Cardiopatia N Idade Sexo Masc. VE FE AE FA Alcoólica 3 47,3+9,0 3 69,3+6, ,05 49,6+15,3-0,0% D. de Chagas 21 51,5+14, ,0+8, ,06 46,5+6,4 3 (14,2%) Dilatada 67 57,9+15, ,4+9, ,06 46,2+9,5 20 (29,8%) Hipertensiva 23 59,8+13, ,5+8, ,08 42,6+8,7 1 (4,3%) Isquêmica 65 61,4+10, ,9+5, ,07 42,4+7,1 4 (6,1%) Valvopatia 20 57,5+16, , ,07 48,50+10,8 8 (40%) VE - diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo; FE - fração de ejeção do ventrículo esquerdo; AE - diâmetro do átrio esquerdo; FA - fibrilação atrial. 24
3 Frequência de prescrição (%) Digoxina Diuréticos Disfunção Ventricular FE < 0,50 (199 pacientes) Tiazídicos Furosemida Espironolactona Fig. 1 - Gráfico de barras mostrando o percentual de pacientes que recebia os diferentes tipo de medicação. (92,5% estava recebendo inibidores da enzima conversora da angiotensina). Dig- digital; Tiaz- tiazídicos; Fur- furosemida; Spir- espironolactona; IECA- inibidores da enzima conversora da angiotensina; Carv- carvedilol; AAS- ácido acetilsalicílico; Ant Cál- antagonista dos canais de cálcio; Am- amiodarona; Ant Coag- anticoagulantes. Os tiazídicos foram receitados em dosagem que variou de 12,5mg a 50mg/dia (dose média 42,7mg/dia). Furosemida foi receitada em doses de 20 a 240mg/dia (dose média de 40,3mg/dia). Espironolactona foi empregada em doses de 25 a 200mg sendo que 43 (78,18%) dos 55 pacientes tomaram 25 ou 50mg/dia. A dose média utilizada foi de 62,72mg/dia. Carvedilol foi receitado para 19 (9,54%) pacientes em doses que variaram de 3,125mg uma vez ao dia a 12,5mg duas vezes ao dia (dose média de 6,5mg ao dia); cinco pacientes receberam prescrição de outros betabloqueadores (4 propranolol, um atenolol). Antagonistas dos canais de cálcio foram prescritos em 13 casos, sendo em seis diltiazem, em cinco amlodipina, em um nitrendipina e em um nifedipina. Aspirina foi prescrita em doses que variaram de 100 a 300mg/dia, em 64 casos (dose média 125mg/dia). Anticoagulação com cumarínicos estava sendo realizada em 25 (12,5%) casos, e em 17 casos os pacientes tinham fibrilação atrial: 13 sem medicação antitrombótica ou anticoagulante, 10 recebendo aspirina e os 17 anticoagulados. Na tabela II apresentamos a freqüência de prescrição das principais drogas, conforme o diagnóstico principal de cardiopatia, onde se observa que a prescrição em geral é semelhante nas diferentes cardiopatias, com exceção da digoxina, que foi menos prescrita, e da aspirina e os antagonistas dos cálcios mais prescritos nos pacientes com cardiopatia isquêmica. Inibidor da ECA Betabloqueador AAS Antagonistas dos canais CA Amiodarona Anticoagullante Discussão O manuseio farmacológico dos pacientes com insuficiência cardíaca vem sofrendo modificações em função da divulgação dos resultados recentes de grandes estudos. Desde a publicação do estudo RALES, US-Carvedilol, CI- BIS II, MERIT-HF, os pacientes com insuficiência cardíaca devem receber, além de inibidores da enzima conversora da angiotensina, digital e diuréticos, espironolactona e betabloqueadores 1-4. Embora esses estudos demonstrem, de maneira inconteste, que essas drogas melhoram a evolução dos pacientes com insuficiência cardíaca, elas não estão sendo prescritas pela maioria dos pacientes. A prescrição de menor freqüência decorre de vários fatores com destaque para um: a demora na adoção da conduta a ser tomada pelo cardiologista, pois sem a experiência necessária, a adota lentamente e, a adapta, prescrevendo doses menores que as recomendadas e estabelecidas como eficazes. Em vários países do primeiro mundo, a análise da prescrição dos médicos mostra que a maioria não adota integralmente as orientações 5,6. No Brasil, não temos dados confiáveis de como são tratados os nossos pacientes com insuficiência cardíaca. Em conversas informais com os médicos durante congressos e palestras, têm-se a impressão de que as recomendações são obedecidas, mas com adaptações citadas. Procurando verificar de maneira mais científica esses dados, realizamos o levantamento em um grande hospital de referência de São Paulo, de como o tratamento de pacientes com disfunção ventricular esquerda e insuficiência cardíaca vem sendo realizado pelos médicos dos diferentes serviços do hospital. Foi critério de inclusão no estudo, presença de disfunção ventricular sistólica, caracterizada por redução da fração de ejeção do ventrículo esquerdo, analisada pelo ecocardiograma (valor <0,50,) e insuficiência cardíaca em classe funcional II a IV (NYHA). Identificamos em dias subseqüentes, nos ambulatórios do hospital, os pacientes que apresentavam disfunção ventricular e analisamos a terapêutica prescrita. Foram desprezados os casos de primeira e segunda consultas, procurando-se assim evitar a inclusão de terapêuticas iniciais ou não estabilizadas. Pudemos verificar que a maioria dos pacientes recebeu, conforme o esperado, o esquema considerado clássico, composto de digital, diuréticos e inibidores da enzima conversora da angiotensina Tabela II - Tratamento conforme a etiologia Cardiopatia N Digital Furosemida Tiazida Espironolactona Potássio Betabloqueador IECA AAS Ant. cálcio Ant. coagulante Alcoólica D. de Chagas Dilatada Hipertensiva Isquêmica Valvopatia IECA- inibidores da enzima conversora da angiotensina; AAS- ácido acetilsalicílico. 25
4 Arq Bras Cardiol A etiologia da disfunção ventricular e a sua intensidade parecem influenciar a prescrição dessas drogas. Assim, o digital é menos prescrito nos portadores de miocardiopatia isquêmica e os inibidores da enzima conversora da angiotensina mais prescritos para aqueles com miocardiopatia hipertensiva, dilatada ou decorrente da doença de Chagas, em concordância com as evidências de que o digital pode não ser benéfico em pacientes com cardiopatia isquêmica e que os inibidores da enzima conversora da angiotensina modificam a história natural nessas cardiopatias em que a disfunção ventricular é o processo principal 14. Na análise quantitativa do tratamento, pudemos observar que 97,5% dos pacientes estavam medicados com vasodilatadores: inibidores da enzima conversora da angiotensina em 93%, hidralazina e nitrato em 3%, antagonista da angiotensina II em 1,5%. Somente cinco (2,5%) pacientes não estavam medicados com vasodilatadores, 71% tinham prescrição de captopril, 20% de enalapril, 3% de hidralazina e nitratos, 1,5% de lisinopril e 1,5% de losartan. A dose média de captopril utilizada foi de 85,2mg/dia e de enalapril de 21,4mg/dia. Considerando essas doses, 71,8% estavam medicados com as doses preconizadas nos grandes estudos (captopril 75mg/dia e enalapril 20mg/dia) Nenhum paciente tinha prescrição de dose inferior a 25mg/dia de captopril ou 5mg de enalapril. Dos pacientes com fração de ejeção inferior a 0,35 e entre aqueles com fração de ejeção superior a 0,36, 74% e 66%, respectivamente, recebiam as doses preconizadas (fig. 2). Dos cinco pacientes sem medicação vasodilatadora, todos tinham disfunção ventricular secundária à doença coronariana (quatro casos) ou valvopatia (um caso), situação em que muitas vezes o médico encontra-se mais preocupado com a doença de base do que com a disfunção ventricular, sendo que em três desses a função ventricular era de 0,50, ocorrência em que a indicação dos inibidores da enzima conversora da angiotensina não é baseada em evidências. Fig. 2 - Setenta e dois porcento dos casos tinha fração de ejeção >0,36. Nos pacientes com fração de ejeção <0,35, maior percentual de pacientes recebeu prescrição das doses preconizadas de inibidores da enzima conversora da angiotensina nos grandes estudos. Esses resultados permitem algumas inferências. É conduta médica rotineira dentre os médicos prescrever antagonistas dos receptores da angiotensina II para pacientes que não toleram os inibidores da enzima conversora da angiotensina por apresentar tosse. Como somente 1,5% dos pacientes estava recebendo os antagonistas dos receptores da angiotensina, pode-se concluir que a tosse, limitante, é fato mais raro do que usualmente considerado. Resultados semelhantes foram encontrados no estudo SPICE 15. Os dados de registro desse estudo mostraram que, em uma população de pacientes em tratamento de insuficiência cardíaca, onde se procuravam pacientes intolerantes aos inibidores da enzima conversora da angiotensina, identificaram-se 3,6% de casos com tosse, número que documenta uma baixa incidência desse efeito colateral em pacientes com insuficiência cardíaca. O mesmo em relação à insuficiência renal, que seria induzida ou agravada pelos inibidores da enzima conversora da angiotensina. Nesta situação, em nosso serviço, o inibidor da enzima conversora da angiotensina é substituído por hidralazina e nitrato, e nossos resultados mostram que somente 1,5% estava recebendo essa medicação. No estudo SPICE 15, a insuficiência renal foi detectada em 2,2% dos casos, número bastante semelhante aos que encontramos em nossos pacientes. Os dados sugerem que insuficiência renal agravada pelo uso dos inibidores da enzima conversora da angiotensina, é de tal magnitude que seria necessário suspendê-los, o que não é fator freqüente, em pacientes com insuficiência cardíaca, em tratamento ambulatorial. Esses dados mostram que os médicos do InCor, de maneira geral, adotaram as diretrizes quanto à dosagem dos inibidores da enzima conversora da angiotensina. Um dado importante que se pode depreender sobre as doses empregadas, é que a grande maioria dos pacientes tolera doses plenas das drogas, e que em nossa Instituição, mesmo as doses baixas são maiores que as que a maioria dos cardiologistas utiliza em seus consultórios. Outro dado interessante, já observado na análise anterior de 1997, é que os pacientes com maior comprometimento ventricular estavam recebendo doses maiores de inibidores do que os com menor comprometimento 8. Esse achado merece consideração, pois poder-se-ia esperar que esses pacientes, mais graves, não tolerassem as doses preconizadas, e o constatado foi exatamente o oposto. Por serem pacientes mais graves, os médicos procuram intensamente otimizar o tratamento, aumentando o percentual de casos utilizando as doses recomendadas. Fato que deve ser destacado é a tolerância dos pacientes a essas doses. Nossos resultados levam-nos a concluir que o não aumento de dosagem, baseado na possibilidade de que os pacientes não tolerariam doses maiores, é infundado, pois, considerando que os pacientes em nosso hospital tendem a ser mais graves, e que a maioria deles tolera as doses altas, sendo que mesmo as doses baixas foram mais altas que as usualmente prescritas, o não aumento provavelmente decorreu muito mais do receio do médico em aumentá-la, do que da não tolerabilidade dessa dose pelos pacientes. 26
5 Procuramos verificar se essa conduta teria sido uniforme entre os vários serviços do InCor e verificamos que não. De um modo geral, todos prescrevem inibidores de enzima conversora da angiotensina para os pacientes com disfunção ventricular, com doses que vêm sendo elevadas nos últimos dois anos. Em 1997, em levantamento semelhante, encontramos como dose média para o captopril 71,9mg e em 1999 de 85,29mg 16. Também houve maior freqüência de prescrições dessas drogas: de 87% para 97.5% (fig. 3). Entretanto, observamos que em determinadas equipes os pacientes não estavam medicados com as doses preconizadas pelos grandes estudos (fig. 4). Os pacientes tinham também prescrição de digital 71,8%, diuréticos 86,9%, espironolactona 27,6%, betabloqueadores 12,0%, ácido acetilsalicílico 37,2%, antagonistas dos canais de cálcio 6,5% e anticoagulantes em 12,5% (fig. 1). Considerando os resultados do estudo RALES, os pacientes com insuficiência cardíaca em classe funcional III ou IV deveriam receber espironolactona 1, e constatamos que no Fig. 3 - O percentual de pacientes tratados com inibidores da enzima conversora da angiotensina ou outros vasodilatadores e dos recebendo as doses preconizadas nos grandes estudos aumentou de 1997 para ambulatório do InCor, 27,6% dos pacientes a recebem. Já nos diferentes serviços, observamos que 52% dos pacientes do Serviço A recebem espironolactona, 33,3% no B, 28,5% no C, 9,0%, no D e nenhum no E (fig. 5). Observamos também que 25 pacientes tomavam 25mg, 18 doentes 50mg, 11 casos 100mg e um paciente 200mg. Considerando que o estudo RALES preconiza 25 a 50mg, seria interessante verificar porque estariam sendo utilizadas doses mais altas. A partir de 1998, com os resultados do estudo US-Carvedilol e, em 1999 com os estudos CIBIS-II e MERIT-HF, os betabloqueadores devem ser prescritos para pacientes com disfunção ventricular em classe funcional II ou III 2-4. Observamos que somente 24 (12.06%) pacientes estavam com prescrição de carvedilol, na dose média de 6,57mg duas vezes ao dia. Outros quatro pacientes tomavam propranolol e um atenolol, para controle da hipertensão ou coronariopatia. No ambulatório do Serviço A, 44% tinham prescrição de carvedilol, no C, 14,2%, no D, 4,5%, no B, 2,2% e no E, nenhum. Não foi observada prescrição de 25mg 2 vezes ao dia. Antagonistas dos canais de cálcio foram prescritos para 13 pacientes, especialmente hipertensos e coronariopatas. Observamos que seis pacientes tinham prescrição de diltiazen, um, nitrendipina e um, nifedipina. Somente cinco recebiam amlodipina, que dentre os antagonistas dos canais de cálcio parece ser o que menos interfere na função cardíaca, segundo o estudo PRAISE 17. A publicação dos resultados do estudo PRAISE I e II e V-HeFT-3 preconiza para os casos de disfunção ventricular, que necessitem de antagonistas dos canais de cálcio, a prescrição de amlodipina ou felodipina (antagonistas de 3 a geração), pois estes não acentuam as manifestações de insuficiência cardíaca 17,18. Por outro lado, diltiazem e nifedipina deveriam ser suspensos, pois, reconhecidamente, acentuam essas manifestações. Na figura 6 apresentamos os dados da freqüência de prescrição ao lado dos observados nos estudos SPICE 15 e SOLVD 8,9, onde se observam diferenças sobretudo em relação aos betabloqueadores. Em nosso estudo houve uma freqüência de prescrição inferior à detectada no estudo SPICE, mas semelhante à do estudo SOLVD de Esse resultado, provavelmente, decorre do receio de muitos cardiologistas de prescreverem betabloqueadores para seus pacientes. O mesmo se dando em relação à anticoagulantes e antiplaquetários que são prescritos com mais freqüência nos dois estudos internacionais. Por outro lado, utilizamos Frequência de prescrição (%) Fig. 4 - O percentual de pacientes recebendo prescrição de inibidores da enzima conversora da angiotensina e de doses plenas variou conforme o Serviço em que os pacientes encontravam-se matriculados. Serviço: Fig. 5 - Percentual de pacientes que recebeu prescrição de espironolactona nos diferentes Serviços analisados. 27
6 Arq Bras Cardiol Frequência de prescrição (%) Digoxina Diuréticos IECA B B A A S Ant. Cálcio Am Ant. Coag Fig. 6 - Gráfico mostrando a freqüência de prescrição das drogas empregadas no tratamento da insuficiência cardíaca em nosso estudo e nos estudos SOLVD e SPICE. IECA- inibidores da enzima conversora da angiotensina, BB- betabloqueadores, AAS- ácido acetilsalicílico, Ant. Cálcio- antagonistas dos canais de cálcio, Amiodamiodarona e Ant Coag- anticoagulantes. menos antagonistas dos canais de cálcio, já que na nossa casuística encontramos predominância de casos de miocardiopatia dilatada, enquanto que nos dois estudos predominavam os isquêmicos. Outro aspecto controverso, que merece discussão, é a conduta para os pacientes com fibrilação atrial, situação que aumenta importantemente a incidência de fenômenos tromboembólicos. A anticoagulação seria a melhor forma de prevenção das embolias, mas aspirina ou outro antiplaquetário poderia ter indicação nos pacientes com contra-indicação para os anticoagulantes Fibrilação atrial foi observada em 40 casos, sendo que 17 estavam anticoagulados, 10 em uso de aspirina e 13 sem nenhuma medicação. Seria conduta correta? Esses números mostram que ainda não adotamos integralmente a conduta correta de anticoagulação nos pacientes com fibrilação atrial. Outro ponto que merece consideração é a prescrição de aspirina para pacientes em uso de inibidores da enzima conversora da angiotensina, considerando-se que ela poderia reduzir seus efeitos, pela sua ação sobre a bradicinina Observamos que 64 pacientes estavam tomando aspirina, sendo que 49 pacientes 100mg, 14 casos 200mg e um paciente 300mg. Considerando o diagnóstico da cardiopatia, observamos que a aspirina foi prescrita para 69,2% dos portadores de miocardiopatia isquêmica, para 21,7% dos hipertensos, para 30% dos valvopatas, para 20,8% dos com miocardiopatia dilatada e para 19,0% dos pacientes com doença de Chagas. Alguns artigos da literatura e uma tese de nosso Instituto mostraram que aspirina pode reduzir ou bloquear o efeito vasodilatador dos inibidores da enzima conversora da angiotensina, especialmente nas doses de 200 ou 300mg Em nosso ambulatório, e na prática clínica diária, é comum esta associação. Deveria mudar-se o antiplaquetário nos pacientes com insuficiência cardíaca? Este aspecto de uso da aspirina é controverso e vem sendo discutido e analisado na literatura. Há sugestão de que, nos pacientes com coronariopatia, onde seu benefício é bem demonstrado, sua prescrição deve ser mantida, embora alguns pesquisadores sugiram que possa ser substituída por outros antiagregantes plaquetários que não interfiram com a ação dos inibidores da enzima conversora da angiotensina. Nos casos de insuficiência cardíaca de outras etiologias, a aspirina deveria ser evitada, pois o seu benefício na prevenção de fenômenos embólicos não foi demonstrado, e há evidências como a do estudo WASH, de que o seu emprego aumentaria eventos como hospitalização e morte. Procuramos, finalmente, verificar se o grau do comprometimento ventricular poderia explicar a diferença de conduta observada entre os diversos serviços, uma vez que o Serviço A é o que mais parece obedecer as diretrizes, prescrevendo doses altas de inibidores da enzima conversora da angiotensina, espironolactona e betabloqueadores para seus pacientes. O Serviço E não parece se guiar por estas diretrizes, pois nenhum paciente recebe doses altas de inibidores da enzima conversora da angiotensina, espironolactona ou betabloqueadores. Os outros Serviços estão entre as duas condutas. Embora o Serviço A trate os pacientes mais graves, os pacientes dos outros serviços são semelhantes em gravidade, de tal forma que não podemos admitir que as diferenças de conduta sejam decorrentes somente da intensidade de comprometimento cardíaco. Quanto à pergunta se o tratamento dos pacientes com insuficiência cardíaca deveria ser realizado por equipe especializada?, nossos dados permitem sugerir que sim, pois o Serviço A, é a Unidade de Insuficiência Cardíaca, e os resultados mostraram que ali são tratados um percentual mais significativo de pacientes com os medicamentos e doses preconizadas pelas diretrizes 25,26, fato não observado com a mesma freqüência nas demais Equipes. Concluindo, a orientação de prescrever inibidores da enzima conversora da angiotensina para pacientes com disfunção ventricular é adotada pelos cardiologistas, uma vez que somente 2,5% dos pacientes não receberam esse tipo de medicação. Apesar de mais recente, a prescrição de espironolactona já é mais adotada que a de betabloqueadores. Apesar dos efeitos deletérios, os antagonistas dos canais de cálcio foram prescritos em 6,5% dos casos. A aspirina, que pode reduzir o efeito dos inibidores da enzima conversora da angiotensina, foi receitada em 37,2% dos pacientes. A diferença de conduta entre os vários Serviços do Instituto do Coração permite supor que equipes mais especializadas no tratamento da insuficiência cardíaca, adotam, de forma mais completa, as diretrizes para seu tratamento. 28
7 Referências 1. Pitt B, Zannad F, Remme WJ, et al. The effect of spironolactone on morbidity and mortality in patients with severe heart failure. N Engl J Med 1999; 341: Packer M, Bristow MR, Cohn JN, et al. Effect of carvedilol on morbidity and mortality in chronic heart failure. N Engl J Med 1996; 334: CIBIS II investigators and committees. The cardiac insufficiency bisoprolol study II (CIBIS-II). Lancet 1999; 353: Merit-HF Study group. Effect of metoprolol CR/XL in chronic heart failure: Metoprolol CR/XL randomized intervention trial in congestive heart failure (ME- RIT-HF). Lancet 1999; 353: Edep ME, Shah NB, Tateo IM, Massie BM. Differences between primary care physicians and cardiologists in management of congestive heart failure: Relation to practice guidelines. J Am Coll Cardiol 1997; 30: Greenfield S, Nelson EC, Zubkoff M, et al. Variations in resource utilization among medical specialties and systems care: results from the Medical Outcomes Study. JAMA 1992; 153: II Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia para o Diagnóstico e Tratamento da Insuficiência Cardíaca. Arq Bras Cardiol 1999; 72(supl. I): The SOLVD Investigators. Effect of enalapril on mortality and the development of heart failure in asymptomatic patients with reduced left ventricular ejection fraction. N Engl J Med 1992: 327: The SOLVD Investigators. Effect of enalapril on survival in patients with reduced left ventricular ejection fraction and congestive hear failure. N Engl J Med 1991; 325: Packer M, Poole-Wilson A, Armstrong PW, et al. Comparative effect of low and high doses of the angiotensin-converting enzyme inhibitor, lisinopril, on morbidity and mortality in chronic heart failure (ATLAS study). Circulation 1999; 100: The CONSENSUS trial study group. Effects of enalapril on mortality in severe congestive heart failure: results of the Cooperative North Scandinavian Enalapril Survival Study (CONSENSUS). N Engl J Med 1987; 316: Pfeffer MA, Braunwald E, Moye LA, et al. Effect of captopril on mortality and morbidity in patients with left ventricular dysfunction after myocardial infarction. Results on the survival and ventricular enlargement trial (SAVE). N Engl J Med 1992; 327: The Acute Infarction Ramipril Efficacy (AIRE) Study Investigators. Effect of ramipril on mortality and morbidity of survivors of acute myocardial infarction with clinical evidence of heart failure. Lancet 1993; 342: The Digitalis Investigation Group. The effect of digoxin on mortality and morbidity in patients with heart failure. N Engl J Med 1997; 336: Bart BA, Ertl G, Held P, et al. Contemporary management of patients with left ventricular systolic dysfunction. Results from the Study of patients intolerance of Converting Enzyme Inhibitors (SPICE) registry. Eur Heart J 1999; 20: Barretto ACP, Wajngarten M, Serro-Azul JB, et al. Tratamento medicamentoso da insuficiência cardíaca em hospital terciário de São Paulo. Arq Bras Cardiol 1997; 69: Packer M, O Connor CM, Ghali JK, et al. The effect of amlodipine on morbidity and mortality in severe chronic heart failure. N Engl J Med: 1996; 335: Cohn JN, Ziesche S, Smith R, et al. Effect of the calcium antagonist felodipine as supplementary therapy in patients with chronic heart failure treated with enalapril (V-HeFt III). Circulation 1997; 96: The Stroke Prevention in atrial fibrillation investigators. Predictors of thromboembolism in atrial fibrillation: I. Clinical features of patients at risk. Ann Intern Med 1992; 116: Hart RG, Benavente O, McBride R, Pearce LA. Antithrombotic therapy to prevent stroke in patients with atrial fibrillation: A meta-analysis. Ann Intern Med 1999; 131: Golzari H, Cebul RD, Bahler RC. Atrial fibrillation: Restoration and maintenance of sinus rhythm and indications for anticoagulation therapy. Ann Intern Med 1996; 125: Viecilli PN, Park M, Santos SR, et al. Antagonism of captopril by aspirin in severe heart failure: Hemodynamic and Neurohormonal demonstration. Circulation 1999; 100(suppl): I Spaulding C, Charbonnier B, Cohen-Solal A, et al. Acute hemodynamic interaction of aspirin and ticlopidina with enalapril. Results of a double-blind, randomized comparative trial. Circulation 1998; 98: Hall D, Zeitler H, Rudolph W. Counteraction of the vasodilatatory effects of enalapril by aspirin in severe heart failure. J Am Coll Cardiol 1992; 20: Hanumanthu S, Butler J, Chomsky D, et al. Effect of a heart failure program on hospitalization frequency and exercise tolerance. Circulation 1999; 96: Fonarow GC, Stevenson LW, Walden JA, et al. Impact of a comprehensive management program on hospital readmission and functional status of patients with advanced heart failure. J Am Coll Cardiol 1997; 30:
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