Invertendo a lógica Teatro de Rua para o da Rua feito teatro

Transcrição

1 Invertendo a lógica Teatro de Rua para o da Rua feito teatro por Silvianne Lima... Borbulhas de pensamentos sobre o processo de montagem do espetáculo Assunção 285, do Grupo Pavilhão da Magnólia a partir da leitura do artigo Sobre um ator para um teatro que invade a cidade de André Carreira. Tomando como base o texto Sobre um ator para um teatro que invade a cidade, o qual defende que o teatro deve ser feito para além de sua encenação e sua posição sócio-política, traz um novo conceito de teatro de rua, o espaço e a cidade sendo usado como matéria de construção da cena, absorvido por ela. Não podemos simplesmente achar que o teatro de rua é o ato de levar o teatro para quem está nas ruas, ou para quem não tem costume de ir ao teatro, a proposta agora é modificar, intervir naquele espaço narrado sobre vários olhares, inclusive pela mídia. Assunção 285, montagem do Grupo Pavilhão da Magnólia, tem a cidade de Fortaleza para além de um pano de fundo. A proposta inicial era montar Nelson Rodrigues na rua, mas a obra Senhora dos Afogados nos aproximou de perceber a cidade de Fortaleza, tão gloriosa e banhada pelo mar, por outro olhar. Uma cidade de várias facetas, definida por períodos, por status, tão grande que seus próprios habitantes

2 se tornam turistas dela mesma. O nome escolhido por conta do primeiro nome da cidade, Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, é como uma linha de ônibus coletivo que conduz seus espectadores para uma rota desconhecida. É preciso tomar as ruas como matéria do próprio espetáculo, mesmo que esse teatro, que nasce da invasão, tenha nada ou pouco a ver com aquele teatro de rua mais tradicional, pois estamos falando de uma nova forma de conceber e estruturar aquilo que chamamos genericamente de teatro de rua (CARREIRA) De acordo com Argan (1998) citado nesse artigo, podemos entender a cidade não no seu conceito de civilização como ela foi criada, para um lugar de proteção, mas como um espaço de medo, de insegurança. Ou seja, o ator corre riscos, é assim na cena também, o ator está à prova de qualquer intervenção e insegurança do cotidiano, pois a cidade continua com seu ritmo, sua pulsação. Numa das cenas de Assunção 285, a cena ocorre em trânsito, onde um ator na moto persegue o ônibus que conduz um público e onde também ocorre uma cena. A duração, a excitação e a pulsação da cena variam quanto aos semáforos, à quantidade de carros, ao dia da semana, e em contraponto a isso o ator que dirige em alta velocidade tem que ultrapassar limites, que variam de medos pessoais do ator e adrenalina, até sair da zona de conforto de um espaço fechado onde há público pagante e consciente de uma cena, na rua, em movimento o ator enfrenta o cotidiano e o ritmo da cidade, como se a encenação permeasse nas veias e nas entranhas da cidade como uma drogada sendo injetada por um corpo estranho, causando mudanças. Podemos propor assim uma encenação-habitat partindo do conceito de que habitar é definir lugares, é construir zonas relacionais, é estabelecer territórios culturais. O teatro de rua deve ser entendido como uma prática construtiva da cidade, e partindo do princípio de que a cidade não pára, e não estará de braços abertos a receber um espetáculo de teatro, entendemos que o Assunção 285 chega de forma diferente para os públicos diferentes que encontraremos naqueles espaços. Mesmo assim o espetáculo tem que comunicar, diante de um público não preparado a uma relação inter atorespectador as sensações e as percepções que a cena proporciona não deve escolher classe, gênero ou idade. Por exemplo, se deslocarmos o espetáculo feito para um determinado espaço externo (caixa cênica à rua) para a caixa cênica à italiana não será o mesmo espetáculo, mas se levarmos esse público que costuma se preparar, se deslocar,

3 adquirir ingresso para a rua, a teatralidade acontecerá tanto para o público passante como para o público pagante. O público que assiste a peça desde seu início na saída do ônibus do teatro Morro do Ouro é diferente do público que está na Beira-Mar e se depara com uma cena, e o espetáculo tem que funcionar para ambos os públicos. Esses públicos, espectadorestranseuntes e espectadores-cidadãos por sua vez transcreverão essa história de diferentes ópticas assim como é o habitar e o seu olhar sobre a cidade. Ouvimos do público de Assunção 285 relatos como: eu nunca pensei que a Barra do Ceará fosse tão bonita ou eu não sabia que havia tantas famílias morando sob esse viaduto, vemos a Fortaleza assim de três ângulos, a narrada pela mídia, a Fortaleza cartão postal, e a real cidade, aquela muitas vezes esquecidas pelo olhar do poder público, e nós como atores-encenadores-habitantes temos o dever de intervir e modificar esse cotidiano ou essa narrativa predominante. Quando partimos do texto de Nelson, deparamo-nos com a tragédia da família Drummond que se assemelhava a tragédia de Fortaleza, assim como um crime ocorrido há dezessete anos atrás vem a tona destruindo a família tradicional carioca, Assunção 285 surge como uma denúncia a um tipo de crime que diariamente ocorre na cidade e anuncia uma tragédia vivida a cada dia, caso ninguém venha a querer modificar isso. A exemplo da Avenida Beira-Mar, cartão postal da cidade, temos a mesma calçada que serve de turismo sexual, comércio de peixe, local de Cooper, passeio de crianças, venda de crack, e todos sabem, mas fingem não saber assim como a morte da prostituta na obra Senhora dos Afogados. A partir de inquietações do Grupo diante dessa cidade Fortaleza, o texto foi construído, como desabafo, protesto, denúncia, ou como pura declaração de amor a cidade, compreendendo seus defeitos que a convivência diária vai dando-lhe uma normalidade. Quando no referido artigo de Carreira o autor fala de teatro de invasão no qual os espectadores sabem que é uma encenação. Esse ato de invadir é se utilizar daquele espaço para além de mera cenografia, é utilizar a cidade como texto, como dramaturgia. Em Assunção 285, uma cena é realizada sob um viaduto onde ocorre o banquete, depois a cena prossegue no ato de jantar com moradores do local. Não há texto propriamente dito nessa cena, porque o próprio local é a dramaturgia, diz o que é a cena, sem parafernálias textuais desnecessárias, as ações em acordo com o local falam por si. Observando a cidade, e tudo que ela podia nos ofertar como aparato para criação cênica, a pesquisa de campo dentro e fora de Fortaleza ampliou a visão de uma cidade

4 ainda mais desconhecida por seus habitantes. A fala de um pescador do Mucuripe que fala do comércio dos peixes, de donos de barcos, a inflação dos restaurantes na orla e do mundo do crack difere da fala de um pescador na praia de Almofala no município de Itarema(CE) que fala da pesca como seu único sustento. O pescador que chega a passar nove dias a 60 km da praia, e que muitas vezes por não ter quem compre a mercadoria é necessário trocar os peixes com agricultores para manter o sustento da família. A fala de uma senhora da alta sociedade de Fortaleza que afirma que o grupo dos Estressados, grupo de coopistas da Avenida Beira Mar é um grupo aberto a todos os cidadãos da cidade, porém é contraditório quando as regras de participação deixa claro que o coopista estressado, como gostam de ser chamados, deve diariamente caminhar na Beira-Mar de 5h às 7h com a blusa do patrocinador do dia, contribuir com uma taxa para manutenção da praça criada num local público além das festinhas sociais feitas no natal. Ou ainda o discurso de uma moradora do viaduto do Antônio Bezerra que diz há doze anos morar no local, o lote está saindo a R$ 300,00 com as tábuas pra montar seu barraco, recebe políticos em época de eleição e até hoje não tem um lugar digno para morar. É a partir dessa dramaturgia, desses corpos e habitat diferentes, que o texto de Assunção 285 e a criação de personagens-denunciadores foi criado, entendendo a realidade a fim de depois modificá-la. Considerando que o teatro de invasão toma a cidade, e modifica seus fluxos instaurando uma prática criativa, cuja matriz é o ambiente da cidade, é importante pensar sobre os procedimentos de atuação que esta linguagem teatral demanda. Estamos frente a uma atuação, uma performance, que será necessariamente ambiental (SCHECHNER, 1995). No artigo de Schechner (1995), o autor afirma que é necessário que o espectador saiba que é uma encenação que está ocorrendo naquele lugar cotidiano para daí se estabelecer o lúdico. Mas como fazer isso para além da teatralidade, além da gestualidade, figurinos, ou aparatos tecnológicos? É necessário chamar a atenção de forma criativa. Em Assunção 285, conduzimos atores e atrizes a frente de um shopping vestidos de mendigos até então normais, mas quando os mesmos estão com notebooks, a encenação é percebida através de adereços, logo o público percebe por conta dos adereços, e quando colocamos o ator em pleno morro de uma favela vestido de mototaxista falando de que não agüenta mais tanta incoerência na cidade a ponto de chamar a atenção pelo sentimento suicida dele, estamos trazendo aí a partir de um

5 acontecimento urbano que sempre chama a atenção, assim como acidente ou assalto, o foco de espectadores-transeuntes. CONCLUSÃO Não abrimos mais rodas em teatros de rua, a roda vai abrir a partir da encenação daquele ator-invasor. Quando iniciamos o processo de montagem de Assunção 285, o desejo era simplesmente levar a obra de Nelson Rodrigues às ruas. O espetáculo tomou uma dimensão ainda não mensurável. Há muito mais por trás do ato de encenar na rua, e isso pelo Módulo 1 Teatro e Cidade do Curso Conexões Contemporâneas da Escola Pública de Teatro de Fortaleza (CE), ministrado por André Carreira, na leitura desses artigos, o urbanismo de Argan, tudo me faz repensar enquanto artista. A montagem do Assunção 285 dialoga com a prática da dramaturgia da cidade, e como temos muito ainda a fazer, muito o que aproveitar dessa cidade na construção da cena, há muito o que intervir, fazer teatro de rua, na rua, fazer da rua teatro. *Os escritos acima fazem parte do processo de montagem (outubro/2010 a agosto/2011) e do ensaio aberto (setembro/2011) do espetáculo Assunção 285 do Grupo Pavilhão da Magnólia com estréia prevista para agosto de 2012.